Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Encontros
A Bela Adormecida

por Ana Luiza Martins

Continuando a série de encontros que discutem a cidade de São Paulo no ano de seus 450 anos, a escritora e historiadora Ana Luiza Martins, autora do livro Revistas em Revista (Edusp/2001), em encontro com o Conselho Editorial da Revista E falou sobre a metrópole e seus hábitos de leitura. A seguir os principais trechos:

"Ao entrar no Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) há vinte anos, fui trabalhar com a identificação e preservação de nosso patrimônio cultural. Na ocasião, me ressentia da ausência de políticas culturais definidas para esta área e comecei a me interessar por projetos ligados à cultura e à educação, procurando conhecer aqueles que já haviam sido pensados para o País e, particularmente, para o Estado de São Paulo, que era o meu foco imediato. Por coincidência, no começo dos anos de 1980, fui incumbida de analisar um Gabinete de Leitura na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo, que me deixou estupefata. Eu cheguei para estudar arquitetonicamente um imóvel do final do século XIX, e quando abri a porta do edifício antigo me deparei com algo como na história da Bela Adormecida: um cenário de época inteiramente preservado, com estantes de livros intactas, repletas de exemplares de obras que eram lidas num período muito especial de nossa história, isto é, ao final da Monarquia, às vésperas da República. Aquilo foi impactante, pois, a despeito da costumeira destruição de nosso patrimônio cultural, era surpreendente encontrar numa cidade do interior um acervo intocado, guardando obras - do Contrato Social, de Rousseau, ao Espírito das Leis, de Montesquieu - que haviam sido lidas por gerações que fizeram campanhas sociais e políticas decisivas para o Brasil, a exemplo daquelas da Abolição e da República. Era um material riquíssimo a ser estudado.
Uma vez proclamada a República, o projeto Gabinete de Leitura perdeu sua razão de ser e desapareceu, pois o Estado, em princípio, assumiu a tarefa de alfabetizar e educar a população. Sabemos que isso não se efetivou na prática, quando novamente apenas grupos privilegiados tiveram acesso às escolas, ainda que públicas. Mais que isso, não houve respaldo e subsídios para uma política editorial livreira, a tal ponto que só a partir de 1918, quando Monteiro Lobato criou a Editora Revista do Brasil, pudemos conhecer uma produção de livros genuinamente nacional, que dava espaço para autores brasileiros, com temas alusivos à nossa realidade. Em São Paulo, uma rede de ensino público expressivo - da qual a Escola Caetano de Campos, na praça da República, foi referência - passou a formar a população leitora da cidade. Livrarias eram pouquíssimas: a primeira de expressão, ainda no final do século XIX, foi a Livraria Casa Garraux, na rua Quinze de Novembro, onde não se vendiam apenas livros, mas, como numa espécie de empório, encontravam-se desde vinhos até guarda-chuvas e pomadas. Outra rara livraria da época vinha a ser a Livraria Saraiva, mais freqüentada pelos estudantes da Faculdade de Direito, pois sua especialidade era o livro jurídico. E a Livraria Teixeira, ponto de reunião dos literatos da cidade, à qual se seguiu a Livraria Jaraguá. Mais que as livrarias, os encontros entre os cultores do livro e da leitura se davam nos cafés, onde se debatiam idéias e idealizavam-se novos projetos culturais. O Café Guarani, na rua XV de Novembro, freqüentado por Monteiro Lobato e jornalistas do Estadão e do Correio Paulistano, foi um dos pontos de encontro afamados.
O estudo das revistas tornou-se meu tema de doutorado - hoje publicado sob o título Revistas em Revista - Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República. Neste trabalho, vali-me da revista como fonte histórica para estudar São Paulo e inferi que este impresso - em geral considerado uma publicação menor - fora ao iniciar da República mais consumido que o livro, preenchendo a vida cultural da cidade, antes que surgisse uma editora do porte da Editora de Monteiro Lobato e demais subseqüentes.
No caso de São Paulo, esta explosão de revistas foi um espanto! Inúmeros títulos foram postos em circulação, tendo a cidade que crescia vertiginosamente como tema - Ilustração Paulista, Ilustração de São Paulo, São Paulo Ilustrado, Vida Paulista, São Paulo Magazine, O Álbum Paulista -, todos eles exaltando seu progresso. A cidade tornou-se a principal reportagem dessas publicações, com o cortejo de novidades introduzidas pela modernidade importada com o dinheiro do café. Era a cidade que mais crescia no mundo. Por outro lado, o grande mercado consumidor em que se transformava a capital contou com as revistas de variedades como o suporte ideal para divulgação dos produtos de mercado, a grande e sedutora vitrine de exposição dos artigos de consumo em voga. A Cigarra, Vida Moderna, Revista Feminina, A Lua, Panóplia foram títulos que fizeram cabeças e sinalizaram mercados. Foi o boom das revistas no Brasil. Porque também nas demais capitais do País, com mais expressão no Rio de Janeiro - capital da República -, as revistas proliferaram a ponto de criar grandes conglomerados.
Em São Paulo, contudo, esse veículo foi muito forte. No palco em que se transformou a cidade, cuja população não parava de crescer, novos bairros nasciam da noite para o dia, as chaminés das fábricas suplantando as antigas torres das igrejas e os arranha-céus despontando na paisagem - em meio a enormes diferenças que coexistiam de raças, capitais e grupos sociais -, a revista foi a sinalizadora sutil e perspicaz da grande transformação. Neste quadro, um dos legados mais importantes destas publicações residia no fato de trazerem em seu bojo um projeto cultural, senão uma política cultural. Fazer a população ler era sua função primordial. Ainda que, por vezes, tão só para criar um mercado consumidor, que garantiria a sustentação da publicação. E os títulos que circularam deixaram suas políticas muito claras. A começar pelas revistas educacionais, disseminadoras da educação em amplo espectro, que era o projeto republicano por excelência. Um segundo grupo muito forte, das revistas agrícolas, que também advogava uma política não só de modernização técnica do campo como do incentivo à pequena propriedade. Havia também as revistas religiosas católicas, empenhadas em reforçar o papel da Igreja. Um segmento importantíssimo, que se destacou neste conjunto de publicações, foi aquele das revistas femininas, que veicularam novas condutas para a mulher. Com muito sucesso chegavam as revistas cinematográficas, decalcadas em Hollywood. E num outro pólo, imbuídas de doutrinação política, as revistas de esquerda - anarquistas e anarco-socialistas. Como novidade, as revistas infantis, das quais o Tico-Tico foi exemplar por cinco décadas. De lá para cá, São Paulo tornou-se o principal centro do mercado editorial do País, seja no âmbito da publicação de livros, como naquele dos periódicos.
Não obstante, hoje, a população leitora ainda deixa a desejar no consumo das letras. Nesse sentido, a cidade ainda é a Bela Adormecida que guarda estantes preciosas com obras que permanecem intactas, seja por falta de leitores ou por falta de recursos institucionais que viabilizem a abertura pública desses acervos. Neste último caso estão as bibliotecas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e a Biblioteca John Kennedy, ligada à Biblioteca Mário de Andrade, com acessos inviabilizados, tristes exemplos para uma das mais ricas cidades das Américas."

Ana Luiza Martins, historiadora e escritora, esteve presente na reunião de pauta da Revista E, que traz na seção Encontros uma série sobre São Paulo e seus 450 anos