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Em depoimento exclusivo, o músico e lingüista Luiz Tatit conta como trabalha com o popular e o erudito

Luiz Tatit, 53 anos, compõe, toca viola e dá aulas de lingüística, teoria do texto e de semiótica da canção na Universidade de São Paulo. Parece complicado, mas ele tenta "descomplicar": "Trata-se do estudo do sentido em qualquer sistema. Pode ser no cinema, nos quadrinhos. No meu caso, é na canção. Como é que ela passa os seus significados?" Atrás do significado do cancioneiro popular brasileiro foi que Tatit iniciou-se na carreira de música em 1974 com a fundação do Grupo Rumo. "Não só compúnhamos e arranjávamos nossas músicas, mas também estudávamos a produção do passado, especialmente da década de 1930. Queríamos desvendar elementos da linguagem cancional de todos os tempos, a começar dessa época." O grupo, que era formado por Paulo Tatit, Ná Ozzetti, Gal Oppido, Hélio Ziskind, Zé Carlos Ribeiro, Pedro Mourão, Akira Ueno, Ciça Tuccori e Geraldo Leite, obteve destaque na época com um novo modo de cantar, o chamado "canto falado", em que as letras, geralmente longas, eram meio cantadas, meio faladas, ostentando a entoação da fala cotidiana. Só nos anos de 1980 eles lançaram seu primeiro disco. A banda se separou em 1992, mas continua junta "de coração". Cada um tomou seu rumo e Tatit, hoje, tem dois discos solos. A seguir, principais trechos de seu depoimento:

Era do rádio
"Encontrei a música no rádio. Portanto, não foi bem a música, mas a canção popular. Seguia diversos programas semanais, várias paradas de sucessos e, um pouco depois, acompanhei toda a hegemonia musical da TV Record, de O Fino da Bossa à Jovem Guarda, passando pelos programas do Chico (Buarque)/Nara (Leão), (Wilson) Simonal, Ronnie Von e os célebres festivais. Nessa época, ganhei um violão e comecei a tocar imitando os acordes feitos por colegas da minha rua. Foi tudo 'de ouvido'. Só vim a aprender música, no sentido de alfabetização, na faculdade (ECA)."

Resgate e rearranjo da MPB
"Esse foi um aspecto decorrente de nossa atividade semanal no Grupo Rumo. Não só compúnhamos e arranjávamos nossas músicas, mas também estudávamos a produção do passado, especialmente da década de 1930. Queríamos desvendar elementos da linguagem cancional de todos os tempos, a começar dessa época. Desse trabalho de reflexão para a prática foi um pulo. Logo estávamos rearranjando canções, às vezes conservando o tratamento antigo, às vezes adaptando-as ao nosso estilo. Claro que acabamos integrando tudo isso em nossos shows e, em 1981, resolvemos dedicar um dos discos de estréia a esse trabalho."

Grupo Rumo
"Ele nasceu porque nos preocupávamos com a linguagem específica da canção de consumo. Desconfiávamos que canção não era nem música (no sentido estrito), nem literatura (idem) e, no entanto, era julgada com parâmetros dessas duas áreas. A particularidade da canção está na relação entre melodia e letra - complementada pelo arranjo instrumental -, mas como explicar a sensação de compatibilidade entre esses componentes que sentimos ao ouvir uma composição? Essa foi a questão que desencadeou a formação do grupo. Mas claro que queríamos também apresentar uma nova proposta de criação cancional a partir dessas conclusões, algo que inaugurasse uma nova sonoridade sem se confundir com a vanguarda que já havia na música erudita (serialismo, dodecafonismo), música concreta (eletrônica, aleatória etc.) ou mesmo na literatura (o concretismo, por exemplo). Dessa busca resultou o princípio de 'entoação', nossa melodia natural da fala, como algo que está na base de composição e tratamento musical de todo cancionista em todos os tempos. Ou seja, suas melodias vêm da fala, e não propriamente de uma concepção musical, como se faz na área erudita ou mesmo no jazz. O fato de a maior parte dos cancionistas (Noel, Luiz Gonzaga, Caymmi, Chico, Jorge Ben, Milton Nascimento, Caetano etc.) não ter formação musical só confirma essa hipótese. E quando a têm, pouco acrescenta a sua habilidade de compor canções. Nossos melhores cancionistas, os mais prolíficos, não conhecem - e não precisam conhecer - música. Por isso, as canções do Rumo, principalmente na fase inicial, ostentam a presença da entoação da fala cotidiana."

Vidas complicadas
"Hoje todos temos vidas complicadas, tanto na área musical como em outras áreas. Entre os integrantes do Rumo há arquitetos, professores universitários, fotógrafos, homem de mídia e até... músicos! Mas eles trabalham em segmentos um pouco mais rentáveis do ponto de vista financeiro. Em 1992, resolvemos interromper a atividade de shows, pois estava muito difícil mantê-la sem prejudicar as carreiras individuais. Agora em março, para relançar nossos discos em CD, faremos três shows de celebração no Sesc Pompéia (19, 20 e 21 de março)."

Parceiros
"Gosto de trabalhar com quem trabalho: Ná Ozzetti, Zé Miguel Wisnik, Dante Ozzetti, Fábio Tagliaferri, Chico Saraiva, Sandra Peres, Paulo Tatit, enfim, meus parceiros mais constantes. Já tive experiências de show com Tom Zé, Suzana Sales e Zélia Duncan, que também adorei. Não consigo pensar em algo que esteja fora de alcance. Isso não faz parte da minha vida. A gente em geral fica empolgado com a última canção feita em parceria, com quem quer que seja."

Repertório
"É difícil pedir para que eu analise meu repertório, nunca fiz isso... A única coisa óbvia para quem acompanha a minha produção é a presença constante de diversas mulheres como personagens das canções. Creio também que não tenho muita versatilidade. No final dos anos de 1970, pelos motivos que já relatei, lidei com Noel e outros autores da mesma época. Depois, nunca mais. Hoje, praticamente só toco minhas próprias canções. Quanto às músicas infantis, atendo às encomendas de meu irmão (Paulo Tatit) e de Sandra Peres, quando precisam de letras para o repertório de um novo disco. Jamais produziria música infantil por conta própria. Não é a minha."

Sucesso
"Compositor, instrumentista, arranjador, popular, erudito... O sentimento de realização é diferente para cada um desses casos. No âmbito do consumo, a realização está muito associada ao sucesso popular de uma composição. Todos querem ter pelo menos uma música reconhecida como hit. É um destaque necessário à atividade profissional, para fazer shows pelo Brasil e poder viver disso. Ser reconhecido como autor de uma música de sucesso abre as portas para a carreira."

Mercado fonográfico: a revanche
"O fato de ser muito restrito, num país onde reina a diversidade. Isso é negativo. As grandes gravadoras só funcionam com uma enorme margem de lucro, o que as impede de arriscar. As filiais precisam exibir cifras espetaculares para satisfazer as matrizes. Nos anos 80, quando estávamos mais disponíveis, como grupo, para a atuação no mercado, sentíamos o mercado completamente fechado ao nosso trabalho, sendo que contávamos com excelente repercussão junto ao público. A platéia reflete o interesse brasileiro por canções. Não há nada importante no País que não passe pela canção (em forma de gravação, trilha de novela, rádio, show etc). É uma platéia sempre ávida, às vezes de novidade, às vezes de participação (o que é mais comum), às vezes ainda de nostalgia. Há público para tudo. A situação não é mais a mesma, sobretudo pela intervenção de selos menores que acabam dando vazão à diversidade. Mas poderia ainda ser bem melhor, justamente pelo prestígio especial que a canção popular tem no Brasil. Agora as regras estão em franca mudança. As majors vêm levando um banho da eletrônica, por meio da pirataria caseira e profissional. É a revanche. Algo deve mudar."

Um pé na estrada e o outro na sala de aula
"Decididamente não sou um músico típico: durmo cedo, levanto cedíssimo, trabalho melhor pela manhã e, à noite, estou um caco. Só quero cama. As únicas atividades que consigo exercer no período noturno são justamente shows e aulas, pois ambas me mantêm acordado. Mas para compor, criar e escrever, faço tudo pela manhã e, um pouco, à tarde. Viagens, até que faço muitas em conseqüência da atividade musical, mas não gosto. Preferiria permanecer por aqui, se o salário permitisse. Enfim, vivo como acadêmico, mas volta e meia me fantasio de artista."

Luiz Tatit se apresentou no Sesc Pompéia dentro do projeto São Paulistas: Vanguardas. Fará shows em março na mesma unidade.