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Entrevista
Antônio Abujamra

O diretor e ator defende que a televisão é sempre um rascunho e que gostaria de ver os jovens desafiando sua geração

Antônio Abujamra pode ser descrito como um diretor talentoso - já encenou espetáculos poderosos com Cleyde Yaconnis, Denise Stoklos e Irene Ravache -, como ator premiado ("fiquei quarenta anos dirigindo bons e maus atores; há treze virei ator") em teatro e cinema, além de mestre de cerimônia do programa Provocações (Rede Cultura) - espaço de inteligência e humor na televisão brasileira. Porém, Antônio Abujamra, aos 72 anos, deve ser visto como um artista fortemente instigante, capaz de surpreender seus interlocutores, seja com auto-elogios ("eu estava ótimo em Mephistópheles"), seja com críticas pesadas ("eu queria que essa garotada pisasse na minha geração"), e como um agitador de idéias e de conceitos: "Por que nós, da minha geração, preferíamos os policiais da censura aos intelectuais de direita? Porque os intelectuais de direita faziam um tipo de crítica que não adiantava nada e eram mais perigosos que a polícia. A própria polícia tinha medo da gente". A seguir os principais trechos de sua entrevista exclusiva à Revista E:

Essa história de contraluz no seu programa é muito legal. Por que você quis essa forma, esse modelo? É que melhor se amolda à idéia estética do Provocações?
Em primeiro lugar, a televisão brasileira não existe. Ela é muito medíocre. Ela tem de ser um rascunho constante. Em televisão é preciso sempre rascunhar e, de repente, aparece alguma coisa boa. Se perguntarem para mim o que fiz de maravilhoso em televisão, eu respondo que fiz alguns segundos em quarenta anos. Televisão não sabe fazer futebol, não sabe fazer Carnaval. O Brasil é pentacampeão e não sabe fazer futebol na televisão. Eu já fiz de tudo em televisão, já dirigi novela, já fiz Zé do Caixão, já fiz Caso Especial. Provocações foi uma idéia que a gente teve há muitos anos, mas nunca pensado como algo a ter um estilo definido. Foi mais por acaso. Quando eu fiz Marisa, primeiro musical em cores da TV Cultura, ela estava bêbada, caía no chão cheio de fios e a gente mandava ela ir para o cenário, e ela não queria; eu gravei ali mesmo. Algo que a Globo jamais fará: deixar aparecer o fio ou o refletor. Tudo isso que eles fazem é uma televisão para a América, para vender; e eu não sou assim. Eu não quero ser clean. Eu quero ser medíocre, quero ser brasileiro, quero saber o que nós somos. Eu não tenho medo de ser medíocre, eu não quero chegar a Marte. Ou seja, Provocações foi pensado como uma série de treze programas, e está há quase quatro anos em cartaz, é considerado um ícone da televisão e a gente recebe mais de cem e-mails por dia, 90% deles enviados por jovens querendo aprender. Mas eu não sou professor.

Isso talvez porque o seu estilo provocador escape do conservadorismo da maioria da televisão. O jovem acaba se agarrando a algo que seja mais interessante do que o grosso da grade de programação.
Mas eu sempre falo no programa que não sou provocador; eu sou provocado. As pessoas que vão lá são mais provocadoras do que eu. E me perguntam quem mais eu gostei de entrevistar. É a rua, eu adoro entrevistar as pessoas da rua, que falam o que querem. Muitas vezes tem gente falando de economia na rua melhor do que qualquer economista no poder. Agora, os jovens me adoram, me acham formidável. Um dia eu perguntei: "Se um louco como eu quisesse ser candidato, vocês votariam em mim?" A unanimidade disse que sim. Mas, como disse Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. Então são todos burros, porque todos querem votar em mim. Eu quero que essa garotada se dane. Eu não quero saber. Eles têm é de não me respeitar. Garoto que me respeita eu desprezo, tem mais é que pisotear a minha geração. E a minha geração é uma guerra: Flávio Rangel, Amir Haddad, Zé Celso, (Augusto) Boal... E o que nós fizemos para a geração depois da nossa? Eu acho que nada. O Sabato (Magaldi) acha que sim, eu acho que não. O Antunes (Filho) e o Zé Celso, que daqui a pouco estarão num convento, acham que sim também. Nós somos uma geração que tem uma cumplicidade sem palavras entre nós. Nós nos amamos, jamais alguém fala mal um do outro. E o Amir Haddad acha que nós somos a melhor geração. Foi a última grande geração de teatro. Depois apareceram o bom diretor, o mau diretor, a porcaria de diretor, um genial diretor, mas não mais uma geração. Geração mesmo só a nossa, que, segundo o Amir, ainda é a mais moderna e a melhor. Que país ruim é esse?

Esse grupo que você citou pode ser visto como a primeira geração de teatro do País, não? Antes o que havia era um teatro muito colonizado, sem uma ansiedade em buscar uma identidade brasileira, não? Então, o seu pessoal é a primeira geração de diretores brasileiros?
É, antes não existia. Nós somos a primeira, a modificação ética e estética do teatro brasileiro. Mas a revolução de 1964 acabou com a possibilidade de gerações depois da nossa, assim como acabou com a geração de químicos, cientistas, professores. A revolução foi vitoriosa nessa aspecto; ela arrebentou com tudo. Mas, depois que ela passou, até poderia surgir uma geração. Agora, onde está?

Havia um debate cultural até 1964, um diálogo entre as pessoas que faziam a cultura desse País. Hoje você não tem um autor vivo escrevendo sobre outro autor vivo. Assim é no cinema etc. O que falta, então, é um debate cultural, porque o que se verifica é uma contemporização.
Em 1968 veio o ato institucional e cessou qualquer possibilidade. Mas acontece que o Brasil é um país medíocre culturalmente, um país medíocre principalmente na educação, um lugar onde ninguém sabe o que vai acontecer. Culturalmente ninguém sabe nada. A Organização Mundial de Saúde chega a anunciar que nós temos 50 milhões de indigentes, pior que pobreza. Quarenta milhões de analfabetos! Eu não quero ter a consciência pesada, porque assim não se faz nada. Por que eu vou pegar um diretor jovem, num país horrível, que dirige uma peça, fracassa e larga a direção? Eles não sabem que o sucesso e o fracasso são iguais, os dois são impostores. Eu não vou ficar me desgastando para criticar a geração que está aí fazendo teatro, ou esses garotos que fazem teatro de quintal, ou esses garotos que pensam que a crítica tem importância, ou os que pensam que escrevendo bem no O Globo ou no Estado de S. Paulo quer dizer alguma coisa, ou fazer uma ou duas novelinhas. Eles não são nada. Alguém achar alguma coisa nesse país é uma bobagem. Veja bem: por que nós, da minha geração, preferíamos os policiais da censura aos intelectuais de direita? Porque os intelectuais de direita faziam um tipo de crítica que não adiantava nada e eram mais perigosos que a polícia. A própria polícia tinha medo da gente. Ela sabia que nós inspirávamos cuidado. Do tipo de discussão que as pessoas querem, eu enjoei, não agüento mais. Eu fui dar uma aula/espetáculo em Curitiba - coisa que somente duas pessoas sabem fazer: o Ariano Suassuna e eu; o Suassuna até faz melhor - durante três horas. E eram perguntas de lá e de cá, eu estava iluminado, estava maravilhoso, perguntavam e eu respondia, uma ovação em pé e eu pensando: "Meu Deus, que país horrível!" Todos querem aprender, mas eu não quero ensinar.

Mas esse raciocínio parece aquele do Delfim Netto: "É preciso crescer para depois dividir o bolo". Quer dizer, não criticar o outro diretor porque a realidade cultural é muito fraca ainda.
Eu jamais diria isso. Há uma cumplicidade sem palavras entre as pessoas da minha geração. Eu não acho que nós mereçamos algum tipo de crítica vinda de nós mesmos. Eu queria que esses jovens que estão por aí nos arrebentassem, nos pisoteassem. Eles deveriam chegar para nós e dizer que nós somos uma porcaria. Chegou um garoto de 20 anos para mim e disse: "Poxa, vocês falam da geração de vocês como se vocês fossem a resistência francesa. Mas vocês tiveram ditadura, e nós? Sabe do que eu preciso, Abujamra? De uma guerra!" Olha o que nós deixamos para essa garotada.

Mas isso é uma coisa comum do Brasil, não? Muitas coisas são esquecidas.
As palavras são perigosas. "Toda a palavra é fascista", já dizia Roland Barthes. As pessoas falaram muito sobre isso. O que é a palavra, o que não é... Mas eu vou te contar uma coisa: chegou para mim uma senhora, devia ter uns 80 anos, e disse: "Abujamra, que maravilha te encontrar!". E eu: "Pára, senhora, não chora". Mas ela continuava: "Eu estou atrás de você há tanto tempo, você se lembra que em 1953, no Clube da Chave, em Porto Alegre, você disse um poema chamado As Abelhas, eu preciso desse poema". Eu virei para ela e disse: "Minha senhora, eu tomo Lorax 2, esqueço o que fiz a semana passada, a senhora acha que eu vou me lembrar das abelhas? Não me encha!". 1953 - quanto tempo faz isso? 180 anos...

E que poema era esse?
Eu sei lá, não banque a velha você também. Aí passou um casal e o homem falou: "Nossa, um gênio na rua". Eu baixei a cabeça humildemente e saí andando... Aí, eu continuei e encontrei dois senhores e disse bom dia. Um deles me respondeu: "Bom dia, nada, seu Ravengar sem-vergonha, provocador safado". É o Brasil. Eu vou saber lá o que é o Brasil? Um país enigma. O que adianta eu ler Thomas Bernard, se ninguém sabe quem é ele? Ou ser o maior do século junto com Brecht? Um país medíocre. Eu estou pouco me lixando para todos nós. Lula é meu amigo, Zé Dirceu é meu amigo, Mercadante é meu amigo, mas não quero nem chegar perto deles, deixa eles lá. Eu sou insuportável.

Agora, voltando ao seu programa. É um programa jornalístico ou é entretenimento?
Ninguém sabe o que é o Provocações. Uns dizem que não é um programa jornalístico; outros dizem que não é um talk show. Não é isso, não é aquilo, ninguém sabe o que é. Sei lá o que é o programa. Eu sento lá e digo umas coisas. Até os 68 anos - e hoje eu tenho 72 -, ninguém ligava para a minha voz. Há três anos descobriram minha voz; eu faço locuções, faço carta de Pero Vaz Caminha, adoram a minha voz. Só que, então, eles não davam a mínima para ela. Então, agora, eu não agüento mais me ouvir recitando poema, eu chego lá e leio tudo rapidinho, e fica algo de melhor em dizer poemas nesse país. É um país horrível, mesmo... Ou seja, o Provocações é um programa que quando tem a pessoa na minha frente que é legal, o programa é legal; se não, eu fico melhor.

É o que dizem, não adianta você ser um bom jornalista se você tiver na sua frente um entrevistado ruim...
Aí eu sei como levantar um programa.

E como você faz para não esgotar?
Há coisas elementares que acontecem. A palavra humano eu proíbo de ser usada, porque a barbárie tem rosto humano. Importante também eu proíbo. Eu comecei a fazer proibições no programa como se fosse o Dogma 95, aquele movimento de cinema da Dinamarca. Mas acontece que qualquer um, por mais medíocre que seja, chora, e eu aproveito. Pergunto: "Tá chorando por quê? Você chora diante da beleza?" Aí, eu vou embora e começo a articular para a pessoa. Eu tento levantar o programa nessa base. Quando a pessoa é maravilhosa, eu calo a boca. Já peguei gente fantástica. Mas há coisas que você não pode acreditar. De repente eu entrevisto o Mino Carta; de repente me chega uma menininha de shortinho, topzinho...eu digo: "O que é isso, minha filha? Eu não sou o Ratinho para entrevistar essa garota desse jeito". Era uma atriz de filme pornô, eu falei: "Mas o que é isso? Vamos fazer o programa assim?" Ela botou o dedo na minha cara: "Não seja preconceituoso". Então, acontecem coisas loucas. Essa menina se chamava Isis Fischer; perguntei por quê?, e ela: "É uma homenagem a Vera Fischer!" Tinha outro cara, professor de filosofia da USP, só dá aula sobre Kant e faz dois filmes pornôs por mês. Olha, as pessoas que aparecem lá... Eu tento me divertir com as pessoas, eu estou velho, quero só me divertir, não quero ser sério. Quem quer ser sério, não consegue. Veja os políticos, todos querem ser sérios e ninguém acredita neles.

Como é feita a produção do programa?
Ah, é assim: você apareceu aqui em casa? Eu chamo você para o programa. Tem mil pedidos para entrar no programa.

Tem um monte de gente querendo ser provocada, então?
Eu não sei. Tem muita gente querendo falar.

Quem você gostou mais de entrevistar?
As pessoas da rua. Teve gente genial no programa. Teve Suassuna, que é genial; teve Nicolau Sevcenko, um demônio, fantástico. Mas, com quase quatro anos de programa, quantas pessoas eu já não entrevistei? Não agüento mais.

Você falou várias vezes sobre a rua, que as pessoas te cumprimentam...
Quando alguém me chama de gênio, eu respondo: "Deixa de ser besta, vocês lá leram Shakespeare?". Respondo dessa forma a qualquer elogio equivocado. Eu arrebento com todo mundo, e estão me amando cada vez mais. Eu não entendo...

Você acredita na chamada sabedoria popular?
Eu acredito, mas a acho covarde. A hora que eles saírem do Morumbi, do jogo do Corinthians, descerem até o palácio do governo e entrarem lá, eu vou gostar... Mas eles passam reto. Eu tenho 72 anos, já passei por tanta coisa, já vi tanta coisa, sou um armário cheio de coisas embutidas. As pessoas perguntam e eu respondo...

Quais as coisas mais marcantes dessa geração que, digamos, fundou o teatro?
Nelson Rodrigues, de Antunes Filho, a intuição fantástica do Zé Celso na América Latina, o Adhemar Guerra acertando as veias do Nelson Rodrigues, jogando o Suassuna para cá como ninguém, o Boal numa tentativa utópica de teatro do oprimido, o Amir Haddad fazendo teatro de rua, o Flávio Rangel, que era provavelmente o mais comercial de todos nós - portanto, o mais invejável -, As Fúrias, do Abujamra, com a Cleide Yaconnis... O resto está morto. Não sei... O efêmero maravilhoso do teatro fica eterno com a minha geração. Nessa turma que veio depois, o efêmero continuou efêmero. Eu fui a Mossoró dirigir um espetáculo, Chuva de Balas no País de Mossoró, com 83 pessoas em cena, eu adorei fazer. Fazer teatro na rua é maravilhoso. Talvez nós não sejamos nada, mas como o País é pior que nós, nós parecemos bons.

Você disse sobre as atrizes que era um grande treinador de éguas, que havia dirigido principalmente grandes interpretações femininas.
É que no Brasil as atrizes são melhores que os homens. E a pior coisa que acontece no teatro brasileiro é o seguinte: quando você viu, depois de Sérgio Cardoso, Procópio Ferreira, Cacilda Becker, Denise Stoklos, alguém fazendo uma grande criação de personagem em teatro no Brasil? Quem fez uma grande interpretação? Ninguém faz mais. Eu sei imitar todos eles.

Mas e essa garotada nova? A Bete Coelho, o Matheus...
Essas pessoas ameaçaram muito. O Selton Melo é um belíssimo ator jovem, mas está se repetindo. Como é que ele faz para sair disso? A Bete Coelho, a mesma coisa. Tem de esperar. É preciso saber que o sucesso exige a queda, quem não sabe da queda jamais aprenderá.

Nietzsche dizia da "memória da queda"...
Olha que ótimo autor. O ator precisa ter uma palavra como lâmina.

E por que você acha que as mulheres são melhores que os homens no teatro, dá para pensar num monte delas que ainda estão na ativa...
Denise Stoklos, Irene Ravache, Vera Holtz, Cláudia Abreu... Aconteceu que as mulheres levaram 2 mil anos para conseguir o orgasmo, e o que elas enchem a gente agora por causa disso não está no mapa. Então, elas evoluíram em tudo, elas não têm medo. Cacilda, por exemplo, entrava em cena sem rede de segurança. Que atriz faz isso hoje? Pouquíssimas... Ela, não. Ela errava, fazia Antônio e Cleópatra e caía uma vaia sobre ela. Entrava em cena para fazer Antígona e todo mundo amava. As mulheres compreenderam que nós somos uma porcaria.

E os atores de hoje? Você viu Marco Nanini em Morte do Caixeiro Viajante?
Não, mas o diretor do espetáculo (Felipe Hirzch) me interessa. O Nanini é um grande ator, provavelmente o melhor que existe hoje. Agora, você viu Mephistópheles? Eu estava maravilhoso. Ninguém percebeu muito, mas eu estava ótimo, eu deixei de ser canastrão.

E o que você mais aprecia, dirigir ou interpretar?
Interpretar. Ser ator é uma obra de arte em si mesmo. Eu sou diretor há 53 anos, tem hora que você tem de dizer para o ator: "Olha, esse espaço é seu, aqui não dá para eu entrar". Eu sou o rei do teatro gratuito. Cobrou 10 reais, não vai ninguém, mas de graça eu loto.

Dos textos que você já interpretou na carreira, qual deles soava mais fundo na sua consciência?
Eu levei quarenta anos dirigindo e comecei a ser ator há treze, quando eu fiz o Ravengar, na novela Que Rei Sou Eu?, papel que me deu o prêmio de melhor ator em televisão; fiz Contrabaixo, ganhei o prêmio de melhor ator de teatro; fiz um filme chamado Festa e ganhei um prêmio em Gramado de melhor ator. E até bem pouco tempo, eu era um ator que me dirigia em cena. Uma visão crítica total. Aos poucos é que isso foi saindo, e não é fácil sair. Por isso que é muito difícil um diretor virar ator, o contrário é até mais fácil, mas eu fiquei quarenta anos fazendo um vestibular: vendo todos os grandes atores e atrizes, e também os medíocres. Então, agora, quando eu pego um autor, eu o trato com o maior respeito. Mas a autoria do espetáculo é minha. Eu posso fazer o que eu quiser com esse autor, porque senão todos fariam Hamlet da mesma forma. O Hamlet é o meu conceito, minha leitura, meu cansaço. Eu quero que minha imaginação seja muito superior à razão. Sabe de uma coisa? Eu adoraria agora ser dirigido pelo Antunes, você fala isso para ele? Eu adoraria.