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Além de metrópoles, aventuras, rotinas e províncias

Ricardo Muniz Fernandes

Em um livro pouco conhecido, do conhecido sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, chamado Aventura e Rotina, ele conta dos portugueses e sua coragem de lançarem-se aos mares desconhecidos, descobrindo novas terras, redesenhando o mundo. E de como nestes paraísos também corajosos se estabeleceram, construindo um novo mundo dentro de uma rotina necessária e quase absurda. E ultrapassando a história ele divaga sobre o espírito - primeiro português e depois já brasileiro, miscigenado destes senhores do mundo, sempre aprisionados entre a ousadia e a monotonia.

É com este mesmo espírito de curiosidade, esta brasilidade e também esta capacidade de rotina, além dos pesos e contrapesos das instituições, que nos lançamos nas aventuras das diversas parcerias com as coisas do mundo.

Dentro destas expedições que descobrimos a rotina, não como imaginam alguns monótona, mas eu diria mínima. Os passos de uma produção, seu planejamento, com quaisquer povos do mundo, são sempre aqueles: as mesmas perguntas, as mesmas respostas, tantas previsíveis surpresas. As rotinas de uma produção, sejam elas de um grupo vindo de uma aldeia indiana, ou de apresentações de uma "performer" norte-americana, são idênticas, mas necessárias, e as únicas capazes de erguer com solidez estes surpreendentes mundos, e assim como aqueles argonautas, somos aventureiros, e também agricultores, nômades e sedentários. Abrindo as portas ao mundo, descobrindo e construindo novos continentes.

Enxergando muito além desta enfadonha rotina, vamos reinventando novos lugares, redescobrindo a Terra, agora redonda, global, humana. A sensação da globalização não é um mero discurso estampado nos jornais, mas se faz presente no dia-a-dia da produção cultural.

Todos e tudo circulam, talvez o velho espírito ibérico, por quase quinhentos anos esquecido, tenha sido também redescoberto e contagiado o mundo neste estonteante movimento, nesta alucinante órbita.

Porém, é sabido que toda travessia tem seus perigos, todo oceano tem seus monstros marinhos e aqui vem o medo desta circulação alucinada gerar os tais dragões dos desacontecimentos. Nesta feérica aldeia global, onde nada mais é uma surpresa, a verdadeira manifestação artística corre o risco de não circular frente a outras manifestações chamadas de tal, mas que estão e sempre estiveram além delas, atreladas a interesses econômicos, políticos, utilitários. O Dragão da Maldade contra o qual temos de nos vestir em Santos Guerreiros é aquele espetáculo/fórmula/business, conhecido, repetitivo, estereotipado.

Foi sempre contra esta super-exposição que nos unimos a tantos parceiros corajosos que ousam também outros continentes, além dos aceitáveis e previsíveis.

Querendo ir cada vez mais longe vamos procurando e apregoando estarmos com o espírito aberto a novas relações além daquelas já conhecidas e vamos assim tentando descobrir novas rotas, outros caminhos e nos aproximar dos povos de outras florestas, de tantas longínquas e esquecidas ilhas de todos os mares do mundo. De tantos lugares tão longe/tão perto.

Falar de parceiros é também falar não só de lá mas de tantas grotas daqui, perdidas neste "Mundão de Deus", estar aberto às missões do Jequitinhonha, às embaixadas da Floresta, aos cônsules do Gerais, capazes de nos trazer, ou melhor de nos devolver, a surpresa do bonito e "aspro" olhar da violeira, a voz da lavadeira, o maravilhamento dos bugres, diminuindo assim cada vez mais as fronteiras, destruindo essas certezas de províncias, de metrópoles, ampliando de uma vez por todas e definitivamente a igualdade dos homens, como diria desta vez não um pernambucano mas qualquer cidadão de qualquer parte do mundo.

Ricardo Muniz Fernandes é sociólogo e técnico do SESC/SP