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Entrevista
Milton Santos
A constatação pode soar desvairada em um primeiro momento. Mas esse baiano, nascido em 26, bacharel em Direito e doutor em Geografia, nem de longe tangencia a insanidade. Se admira profundamente o brasileiro, sua cultura e a sua capacidade de improvisação, nutre críticas profundas pela classe média, "sem graça e vazia".
À carência de emprego ("trabalho sempre se acha"), o geógrafo impõe o lazer, fonte fecunda e barata. Qual a função do tempo livre neste acirrado fim de século?
A noção de tempo livre vagamente dava a idéia de progresso. O fato de o resultado do trabalho ter se tornado maior com o progresso técnico deixou ao homem a idéia de que ele estava muito próximo de alcançar seu tempo livre. Neste fim de século, com essa fantástica mudança nas relações técnicas dentro do trabalho, criou-se essa visão do tempo livre que na verdade é uma miragem. Você o vê, mas tem dificuldade para alcançá-lo. Como outras tantas miragens criadas com tudo o que a globalização trouxe. A exacerbação da noção do turismo é um exemplo. As pessoas são instadas a acreditar que têm liberdade de se mover, conhecer outros países, entrar em contato com outras civilizações, com outras culturas, outras paisagens. E, de repente, a segurança da impossibilidade de alcançar. O aumento do número de turistas não é um aumento real, pois o número de pessoas que não podem se locomover aumentou em uma proporção muito maior. Então as pessoas se encontram diante, digamos, de uma quantidade de tempo livre insuficiente não devido ao relógio, mas sim com uma capacidade econômica pequena para utilizar esse tempo.
Existe alguma maneira para tornar o tempo livre uma contingência apenas do relógio?
Eu não sou um político, sou um intelectual, então eu discuto as idéias. Não tenho nenhum compromisso em encontrar soluções. Não é meu trabalho. O tempo livre não chega a ser imaginário, ele é livre mesmo. O que ocorre é que você é rodeado da propaganda, se cria uma espécie de ideologia do uso desse tempo livre.
Nesse caso, qual seria uma ocupação viável para o tempo livre em face dos recursos econômicos escassos da maioria da população?
Há um fator importante aí. Nos habituamos a tratar as coisas com uma posição de classe média. Os pobres encontram saídas porque são pessoas para as quais a festa não é resultado de uma programação, é a vida normal deles. Viver, trabalhar, fazer festa, se encontrar, conversar com o outro é estar disponível. O importante é que haja essa enorme produção, essa capacidade de produzir festa, pois a festa carrega uma enorme força associativa, em conseqüência uma enorme força na produção de idéias sobre o mundo, sobre o país, sobre o outro, sobre si mesmo. Esse fato possui um enorme potencial de emprego.
O emprego oriundo da capacidade associativa...
Sim. É assim que o pobre subsiste e cria emprego para ele próprio. Se não o país estaria já conflagrado. Caso o povo não soubesse descobrir, ele mesmo, seus caminhos, nós já estaríamos numa guerra civil. Só não estamos porque o pobre é imaginativo, tem uma enorme riqueza, uma capacidade de improvisação. E ele improvisa ao mesmo tempo o trabalho e o lazer. Isso é extraordinário. Nós sabemos que o trabalho não é emprego. Você tem o emprego, que é aquela coisa bem catalogada. E o trabalho. A maior parte da população brasileira sempre trabalhou sem ter emprego. Para os paulistas é mais difícil ver isso, porque durante muito tempo havia emprego aqui, agora quase não há mais. Mas no Nordeste e Norte havia trabalho e não emprego como está nas estatísticas. O nosso grande problema atual é criar trabalho, e o lazer é um grande produtor de trabalho que pode depender de um investimento muito pequeno. Ou você monta um teatro ultramoderno ou você pode, simplesmente, encorajar as pessoas a se encontrar. O que está me interessando agora é ver como, com apenas um pequeno aceno, você consegue colocar gente junta. E é impressionante como gente junta cria emprego. Gente junta para se divertir cria mais ainda.
O senhor é consultor e conferencista do 5o Congresso Mundial de Lazer a ser realizado no Sesc Vila Mariana em outubro próximo. Qual a importância de um congresso mundial de lazer?
Uma das coisas interessantes que ele pode fazer é mostrar exatamente como você pode multiplicar as fontes de emprego, utilizando dessa propensão inata de as pessoas estarem juntas, festejarem etc.
Essa característica imanente do povo que o senhor acabou de pontuar é bem recebida pelos governantes?
Eu não freqüento o poder para te dizer isso com exatidão. Os pobres estão excluídos da globalização. Os aparelhos de Estado que olham só para a globalização não podem olhar para os pobres. O aparelho intelectual dos que mandam não é capaz de perceber isso, porque eles escolheram um pedaço limitado da realidade e a esse pedaço eles dão uma importância enorme. O que eles consideram como uma nação ativa, o Brasil ativo, que cresce, que merece ser olhado, é para eles um Brasil onde essas pessoas não estão.
Então quem deve olhar para os que o senhor caracteriza de excluídos?
Eles próprios. E é nesse sentido que eu digo que os pobres fazem política. Quanto aos intelectuais, alguns deles trabalham com a idéia de que a classe média é a matriz do pensamento. Há uma parte dos cientistas sociais que começa a estudar o problema pela ótica da classe média, depois coloca o pobre para enfeitar. Mas toda a nossa teoria é copiada da Europa, onde isso é verdade. Lá, a pobreza está chegando há 50 anos. Antes, o movimento era contrário: havia a diminuição da pobreza nesses países. Agora ela está, felizmente para eles, chegando.
Felizmente?
Sim porque a chegada dos pobres está melhorando a Europa. Com a chegada dos migrantes, está ficando muito melhor.
Em que sentido?
No sentido de que se há um suplemento de humanidade, há a possibilidade da surpresa, tem uma nova música, novos cheiros, novos sabores, novas culturas se acotovelando. E daí vai surgir um outro mundo, um mundo mais rico. Com o racionalismo estéril, o mundo europeu estava empobrecendo. A chegada dos africanos, dos árabes, asiáticos está enriquecendo a Europa. E há os pobres europeus que também estão se criando e que estão redescobrindo seus países. O contraste com a chatice da globalização é a grande riqueza. No Brasil nós temos essa riqueza. Nós somos muito mais afortunados. É beleza em estado puro.
Mas esse processo de "invasão" de culturas na aridez européia, na sua mesmice e retidão, não é também um processo de globalização?
Claro. É o outro lado. Havia um lado da obediência, regras, verticalidades. E eles não imaginavam que estavam criando um vulcão, que agora não têm mais como segurar. Então eu creio que no caso de um país como o Brasil, onde a globalização entrou sem nenhuma precaução, fronteira, medida ou cautela, houve uma ampliação no processo da contradição. Eu não creio que o lazer vá ser a solução. Não é que as pessoas vão sair para dançar pelo fato de não terem comida em casa. O que eu digo é que a festa reúne e a reunião ajuda a produzir as idéias. Enquanto eu estou sozinho no meu canto, a minha produção de idéias é mais lenta, mais pobre, mais tênue, mais débil. Sobretudo quando eu encontro o outro que descubro que o outro, não é igual a mim, embora nós tenhamos queixas parecidas. E, sobretudo, quem convoca para essa reunião não somos nós, intelectuais chatos, são os compositores, os músicos, os cantores, os rapistas. Nós fazemos discursos. Alguns fazem melhor, outros pior, mas todos discursos de Universidade. Mas não somos nós quem arrasta as pessoas.
Essa oposição entre trabalho e tempo livre é válida?
Eu não concordo com essa definição. Porque isso também é trabalho. É isso que a gente tem de mostrar: a festa produz trabalho. Essa oposição já é preconceituosa, vem da cabeça dos europeus, que nos ensinaram que não tem que se divertir, a não ser três ou quatro dias no ano. Foi isso que eu aprendi, pois estudei e ensinei lá. Esse mesmo preconceito o paulista também demonstra em relação aos baianos porque fazem festa. Mas são todas idéias que vêm da Europa e que sem querer reproduzimos.
O senhor se referiu à propensão do povo em se agrupar e fazer festa. A espontaneidade desse movimento é suficiente para a plena fruição do tempo livre?
Aí nós chegamos a um outro problema importante desse fim de século: a informação. Grande parte das atividades de lazer não existia há 30 anos. Não havia meios de se convocar essas pessoas. Hoje não. O turismo não seria possível sem informação e em festas como essa da Águas Espraiadas (em referência ao CarnaSampa, realizado em junho) onde se reuniram centenas de pessoas. Hoje existe, por outro lado, uma espontaneidade industrializada. Ou seja, você industrializa a espontaneidade através do uso orientado da informação. E aí está talvez a base de produção de empregos. Outro exemplo: na Bahia, onde eu nasci e deixei de viver há 30 anos, havia aquelas festas tradicionais herdadas dos primeiros negros. Elas tinham uma base e uma produção local de uma história. As roupas as músicas consistiam uma produção local fundada numa tradição. Aí, o baiano descobriu que se podia criar a partir da tradição. A partir daí, ele começou a criar outras tradições que deixam os paulistas contentes de participar de novas tradições que eles não sabem que foram criadas na véspera. Dessa forma, existe um número de baianos que vive e trabalha nisso. São muitas pessoas para quem o lazer se tornou uma coisa contínua. Através da informação, multiplica-se a possibilidade de trabalho para um grande número de pessoas. A própria noção de felicidade hoje, com a quantidade brutal de informação, é também industrializada. Você diz ao sujeito que ele vai ser feliz em tal lugar e a pessoa viaja com a obrigação de voltar dizendo que ficou feliz. Se eu descubro como funcionam as coisas, com um pequeno empurrão, eu aumento as chances dos encontros, por conseguinte a possibilidade de emprego.
Mas os detentores dessas informações têm o interesse de disponibilizá-las?
Há dois tipos de informação: a vertical e a horizontal. A maioria da população produz formas de informação que nos escapam, pois somos de classe média e, por isso, somos estúpidos. Nós apenas vemos a informação vertical, que nos diminui. Então na grande cidade, como São Paulo, Campinas, Salvador ou Belo Horizonte, há uma enorme produção de informação mais ou menos espontânea, não industrializada.
Como o tempo livre auxilia a reciclagem de conhecimentos?
A reciclagem hoje é cada vez mais um processo de estreitamento intelectual, porque te ensina a dar a mesma resposta. E você tem o pobre que todo dia se enriquece. Porque ele tem de descobrir como fará para continuar a viver nessa selva. Daí a nossa riqueza: ter tantos pobres. É a sorte do Brasil. Imaginou se fôssemos todos de classe média? Seria um desastre. Como os pobres são muito mais sagazes e sabem que não podem contar com ninguém, são obrigados a ter atitudes de alerta todos os dias. Eles vão refazer o país.
Então o senhor propõe que não se melhore a condição econômica da população?
Isso já seria outra coisa. É necessário educar as pessoas e não apenas instruí-las. Fazer com que as pessoas sejam capazes de entender o mundo. É preciso educar a pessoa para que ela se torne um cidadão e não unicamente para o mercado de trabalho. Porque cada vez que se prepara alguém para o mercado de trabalho, você está bitolando o sujeito. Ele aprende uma coisa, depois um outro pedacinho etc. e não vê o mundo, o seu movimento. Isso não é progresso cultural. Aparece como se fosse, mas não é. É atraso.
Mas cursos ajudam a empregar...
Não penso que as pessoas devam ficar sem emprego. Agora penso, por outro lado, que atingem apenas momentaneamente um emprego, porque daqui a pouco você tem de fazer outro curso e outro e outro. E aí o lazer para essas pessoas aparece apenas como mais um gesto, um status.
A quem o senhor se refere?
À classe média sobretudo. A classe média vai ao teatro e isso é um gesto e não porque você tenha aquele gosto de saborear a ocasião. Tirar dos momentos uma substância.
E os pobres quando praticam lazer têm essa consciência?
Não é preciso uma consciência, é a vida. Quando você vive está vivendo, não?
Então essa capacidade superior das classes pobres de conseguir produzir a partir de quase nada material, se extinguiria com o fim da pobreza?
Na Europa, quando se acabou com os pobres, no lugar surgiu uma classe média que tinha o teatro, tinha um partido, uma ideologia, uma crença, um caminho filosófico. É isso que temos de buscar. Não a classe média que está preocupada com o consumo, com o sapato da vizinha, ou o postal que diz 'eu estou aqui e você não'. Demonstração inútil de poder aquisitivo
Mas o pobre também não tem intenção de ascender?
Sim, porque ele vive neste mundo. E ele está incluído neste mundo da informação. Por isso eu disse que a informação é central. Somos mais que isso. Lutamos para sermos melhores do que somos. Só que a classe média tem mais dificuldade para mudar essa situação. Por causa do conforto, por causa da força política, pelo salário, quando não é o salário é o crédito, não é o crédito é o cartão de crédito. O pobre só tem uma vontade de futuro. E nós da classe média queremos o presente, que amanhã seja como hoje.
Na França houve, recentemente, uma votação onde foram aprovadas as 35 horas semanais. O senhor acredita que com a diminuição o tempo livre será melhor fruído?
Eu entendo de outra forma. Não há essa divisão emprego/tempo livre. Isso não existe. Porque desse modo tudo se tornaria contabilidade. Trabalhar menos é o ideal que todo mundo tem. Usar melhor o tempo para se educar, para bater papo. Nós não fazemos mais isso. A riqueza do tempo livre vem do qualitativo. No caso da França houve as duas coisas: uma resposta a essa vontade de ampliar, de dar ao homem mais tempo livre e a vontade de aumentar o número de empregos.
O senhor acredita que as pessoas têm receio de se divertir? Ou isso também é um conceito da classe média?
Depende de como você define "se divertir". No caso do Brasil eu creio que não. Em outros países você tem, digamos, um pensamento calvinista, em que você não tem de mostrar, não tem de se exibir. No Brasil, misturamos tudo. Desde o começo, nós esculhambamos tudo. Aqui a gente pode ter crise intelectual mas a população não tem vergonha de se divertir de jeito nenhum.
Haveria então uma ocupação ideal do tempo livre?
O que lhe traz plenitude? O tempo livre seria uma busca de plenitude? E o que lhe traz isso? É o cinema? O teatro? Andar? Creio que a partir dessas possíveis escolhas pode-se criar estruturas de oferecimento. O Sesc de alguma maneira faz isso: oferece estruturas. Essa postura deveria ser uma coisa banal, realizada por qualquer instituição. E vou além: a partir dessas realizações simples empregos seriam criados.
Explique melhor.
A idéia do emprego no Brasil é muito subordinada à cabeça dos economistas. E o economista, sobretudo atualmente, está por sua vez subordinado à idéia de globalização. Para eles, emprego é a indústria e a indústria que interessa é aquela que exporta, que está inserida no chamado mundo atual. Todas as outras oportunidades que vêm da sociedade não são consideradas. É preciso conhecer um pouco os mecanismos sociais para agir. Não sei se o Presidente será alertado para isso. Ele disse que descobriu que o emprego é importante, que vai se preocupar com isso agora. Quando eu tinha meus 20 anos, isso há meio século, no Brasil nós tínhamos 25% da população nas cidades. Hoje nós somos 130 milhões nas cidades. Isso é uma riqueza para criar empregos, só que nós não sabemos como fazer.
Então a criação de empregos nesse sentido é simples?
Muito mais que a gente imagina. É só descobrir os métodos, as formas de informação. Criar as estruturas, o que não custa tão caro, porque se pode fazer coisas pequenas. Essas atitudes podem desempenhar um papel importante. Cada um de nós hoje é muito limitado nas relações. Essa situação nos torna pessoas cuja intersubjetividade necessita de uma ajuda externa a nós. Quando eu tinha 18 anos ia jantar na casa das pessoas, hoje não têm mais isso. Primeiro porque você não bate em porta de ninguém, segundo que você não tem certeza se as pessoas tem jantar. As famílias como a minha, de pequena classe média, tinham sobra. Dizia-se que era feio comer até o fim. Hoje o errado é não se comer até o fim.