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Futebol também rima com arte

Garrincha rompe pela ponta. Breca. Encara o beque adversário. Finge que vai, mas fica... Pisa na bola e, finalmente, cruza em direção à área. A bola encontra Pelé, cercado de oito adversários, amansa no peito, fuzila o goleiro. Gol.

O lance descrito acima, imita em parte a locução dos narradores esportivos pelo rádio, que a partir de instrumentos restritos tentam traduzir o que vêem em campo para o ouvinte. Recitada da maneira acima, a jogada fica besta, enxuta demais, insossa. A imagem criada pelo radialista, que demanda calejo do ouvinte para compreensão, consiste de certa forma poesia. Banal, é verdade, o locutor metaforiza o lance para o ouvinte que tenta imaginar a realidade crua do que o outro enxerga e depois relata.

Mostrar a arte da bola, não aquela criada pelos nossos craques, mas as expressões oriundas da paixão que o futebol desperta no brasileiro foi o intuito do Sesc durante o mês da Copa do Mundo.

O casamento entre futebol e arte, sua beleza e possibilidades, foi celebrado em inúmeras unidades que, de quebra serviram de arquibancadas para os torcedores anônimos, com telões e eventos especiais.

Paulinho, Pepe e Jair

No intervalo entre os jogos, nos raros refrescos que a Copa permite, é possível constatar que futebol e arte combinam. Na véspera da estréia do Brasil, prenunciando o sucesso (magro, é verdade), o Sesc Pompéia estrelava a primeira rodada do Copa e Cozinha, misto de show musical e conversa de bar. O evento exibido no teatro contou com a presença de Paulinho da Viola, Jair Rodrigues, o grupo Heartbreakers e o coral feminino Vésper, que rememoraram as canções que fizeram sucesso em 1958, ano em que o "Escrete Canarinho" levantou seu primeiro título mundial na Suécia.

O saudosismo daquele tempo pródigo foi resgatado pelo ex-jogador Pepe, ponta-esquerda do Santos e da seleção, que formou no grupo campeão na Suécia. O grupo Heartbreakers abriu o encontro entoando o decantado: "A Copa do Mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa...", samba composto especialmente para a campanha européia. Depois, Paulinho da Viola cantou sambas e boleros que explodiram corações em 58, como Chega de saudade e Vai, com jeito vai.

Antes de Jair Rodrigues entrar no palco, o público teve uma surpresa. No melhor estilo mesa de bar, Pepe, Paulinho e Jair discutiram o time de 58 e a seleção atual. A presença do ex-jogador, segundo artilheiro da história do Santos, autor de 485 gols, atrás apenas de (adivinhem)... Pelé, rendeu uma bela homenagem da dupla de sambistas. O refrão do samba Tristeza: "Amo meu samba querido, porque ele tem telecoteco" foi substituído por "Amo meu Santos querido, porque ele tem Pelé e Pepe".

Nas semanas seguintes, o Copa e Cozinha exibiu canções que foram sucessos durante as Copas de 62 e 70, com a presença de Elza Soares, Miltinho, Dominguinhos, entre outros. Nos dias 7 e 8 de julho será homenageada a Copa de 70. Depois, a conquista de 94 e, para finalizar, uma jam session com os melhores momentos.

Samba na arquibancada

A proposta do Copa e Cozinha não visava mostrar músicas que abordassem diretamente o futebol, mas canções que foram influenciadas pelos eflúvios da bola em época de vitória. Mas ela, a bola, serviu de inspiração para muitos compositores ordenarem claves e colcheias.

Pixinguinha e Benedito Lacerda serviram-se de um placar magro, no jargão da crônica, para batizar um dos mais populares choros: Um a zero, de 1954. "A década de 30 marca o início da profissionalização do futebol no Brasil. É também nessa década que o músico popular, principalmente no Rio de Janeiro, conseguiu sobreviver, ainda que precariamente, da música", explica José Geraldo Vince de Moraes, professor de História da Unesp. "Músicos e jogadores começaram então a criar uma história muito próxima, alcançando reconhecimento social através da arte."

Dessa aproximação cultural revelaram-se inúmeras músicas cujo futebol era o tema central. Além de Um a zero, o samba Um a um, de Edgard Ferreira, além dos hinos extra-oficiais compostos por Lamartine Babo para as equipes cariocas. A música sertaneja também homenageou o futebol pela viola fagueira de Raul Torres, em Futebol dos bichos. Jorge Ben, com Fio maravilha e Zagueiro e em País tropical, quando declama sua dileção pelo Flamengo. Recentemente o grupo mineiro Skank compôs É uma partida de futebol, na qual exaltaram em sons e letras a beleza do futebol.

Embora seja referência constante, o futebol não seduz diretamente a obra de Paulinho da Viola. Vascaíno convicto, o compositor da Portela, como todo molecote, gastava horas nas ruas ásperas atrás da bola. Mas indagado sobre o motivo pelo qual o futebol não o induziu a fazer música, fez longa pausa: "Não sei responder. Muitos amigos me perguntam por que nunca compus para o Vasco... Não sei responder."

Se o futebol não inspira o cavaco de Paulinho, aguça, e muito, a imaginação de artistas plásticos. O tema foi explicitamente abordado nas obras de 29 artistas encomendadas para a exposição Futebol e Arte. Cada expositor escolheu uma faceta particular do futebol para ser trabalhada com as técnicas mais variadas. Enquanto Guto Lacaz, João Câmara, Roberto Magalhães e Maurício Nogueira Lima retrataram o goleiro, Ivald Granato retratou uma cobrança de falta e Carlos Vergara pintou o drible.

A exposição em cartaz no Sesc Itaquera exibe as reproduções dos originais que, justificadamente, migraram para Paris durante o período da Copa do Mundo. Em meio a motivos eufóricos, ora coalhados de verde e amarelo, ora estampando a plasticidade dos movimentos, o artista carioca Daniel Senise resolveu buscar a várzea como expressão real e mais crua do futebol. "Para cada Ronaldinho, existem milhares de jogadores que têm na várzea o fim inglório. Decidi, portanto, descrever a realidade mais fria do futebol."

Voltando de Paris, os trabalhos originais serão leiloados e o valor arrecadado será revertido para a Associação de Apoio ao Programa Comunidade Solidária e ao Programa Esporte Solidário.

No Sesc Consolação, o futebol é tema para painéis espalhados por todas as dependências da unidade. A obra ficou a cargo dos alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie. Mario Lupion, professor de Expressão no Plano, coordenador do projeto, lamenta que o futebol seja "tão pouco representado pelas artes plásticas. Se houvesse mais painéis espalhados pela cidade, o vínculo dos cidadãos com seus ídolos e mitos aumentaria".

Paralelamente aos painéis, o público que comparecer ao Consolação terá disponível uma vasta programação acerca da Copa, o Vi Vendo a Copa. Até o dia 12 deste mês, haverá inúmeras atrações relacionadas ao futebol. Dentre os tradicionais futebol de mesa e transmissão ao vivo dos jogos, será montada uma quadra de futebol society de grama sintética e, o mais inusitado, um pebolim humano, instalado sobre uma superfície inflável.

A Graça da Bola

O futebol, importado da Inglaterra em fins do século passado, cativou rapidamente o povo pobre. Em um primeiro momento, o jogo oficial, restrito a clubes de elite, alijava o populacho dos estádios. A popularidade que o jogo angariou entre as classes desfavorecidas forçou o ingresso da turba no futebol oficial. Em pouco tempo, a resistência da elite foi cedendo espaço para o talento inequívoco dos negros, antes impedidos de jogar. A partir da democratização da bola e da verve tupiniquim para o futebol, a irreverência extravasa o campo e arredores e invade a crônica social e o jornalismo.

A partir daí o futebol vira assunto obrigatório no cotidiano das cidades e os jogadores assumem olimpicamente seu espaço. De atletas, tornam-se ídolos. A presença marcante dos craques é notada em vários aspectos. No tempo pré-televisão, figuravam em fotos e principalmente desenhos, que ilustravam os periódicos. Para relembrar o tempo romântico do esporte bretão (mais um chavão), o Sesc Pinheiros montou o Se Pinta o Penta, programação especial com a exposição do trabalho de 13 cartunistas que retomam a caricatura como referência intrínseca ao futebol. "Fazer cartum sobre esporte, especialmente sobre futebol, no Brasil é chover no molhado. Todo cartunista pelo menos uma vez na vida fez alguma coisa sobre futebol. O espírito de quando você vai a um estádio é o espírito que o cartunista tem quando ele está criando seu desenho", explica Jal, cartunista experiente e curador da exposição.

A mostra de cartuns não veio sozinha. Para criar um espaço alternativo que permitisse ao público vizinho da unidade assistir aos jogos do Brasil, o Sesc Pinheiros foi todo ambientado para dar mais emoção aos gols de Ronaldinho e companhia. A frente da unidade foi transformada em arquibancada e bonecos gigantes perpassavam as emoções do jogo, alguns tensos, outros alegres. Em clima de geral, houve distribuição de pipocas; a retreta de coreto chamou a atenção do público que prestigiou em massa o evento. Na abertura da festa, dia 9 de junho, um jogo exibição entre o cestinha Oscar e o músico André Cristovam precedeu as emoções da estréia do Brasil.

Cuidando para não formular estereótipos, o Brasil é o país do futebol. E o mês da Copa do Mundo prova o jargão. A bola correndo serena de pé em pé, a bulha irascível da torcida e as jogadas milagrosas dos nossos craques não deixam dúvida que futebol inspira a arte e, (por que não?) vice-versa.

Gol de Letra

Se na música o futebol encontra guarida de respeito, os críticos acreditam que a literatura é terreno estéril para a bola. Quando o futebol abarcou por aqui, a maioria dos intelectuais duvidava que o esporte tivesse boa acolhida entre a turba. Entre os céticos estavam entre outros, Graciliano Ramos e Lima Barreto. Aquele, inclusive propunha a aculturação do vocábulo emprestado do inglês. Felizmente, bulopédio, ludopédio e outras aberrações prosódicas renderam-se a simples adaptação do football/futebol.

Retornando à constatada aridez da literatura brasileira quando o tema é a bola, uns reputam à grandeza do futebol e à capacidade de expressar-se em si mesmo como fator do acabrunhamento ficcional. O escritor Plinio Marcos, ex-ponta-esquerda, segue esse raciocínio: "O futebol é muito grande e as pessoas se amedrontam diante dele." Já o carioca Sérgio SantAnna (Fluminense doente) escreveu dois contos cujo assunto central é futebol. "Apesar de eu ter escrito apenas dois contos que tratem explicitamente de futebol, os elementos que o cercam são muito presentes na minha obra."

Se a ressalva do escritor fosse observada pelos críticos, talvez a antologia futebolística ganhasse mais volumes. Na verdade, esse tema ao mesmo tempo prosaico e grandioso conta com títulos insuficientes considerada a paixão que o assunto desperta. Origenes Lessa, Alcântara Machado e os parnasianos Olavo Bilac e Coelho Neto (pai do atacante Preguinho, craque carioca na década de 30) alinhavaram os primeiros poemas e crônicas sobre futebol. Depois Ruben Fonseca, João Antônio, Renato Pompeu, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond e vários outros conseguiram abstrair o futebol de dentro e de fora do campo. Para evitar cometer injustiças ao deixar de citar um ou outro nome, um escritor representa a paixão de todos os outros pelo futebol. De Zé Lins do Rego (Flamengo roxo), o esporte bretão recebeu a defesa mais inflamada. O afã era tanto que Graciliano Ramos, do alto de seu despeito incondicional, reclamava que na casa do parceiro dava-se mais atenção a Leonidas da Silva, o Diamante Negro, do que a Dostoiewsky.