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Geração Beat
Aquela estrada

Música e literatura caminham lado a lado em homenagem à produção cultural da beat generation

Busca pela real identidade norte-americana, não importando qual fosse, motivou dois jovens a abandonar tudo e sair, de carro, em louca velocidade, pelas estradas do país. Era início dos anos de 1950, o mundo vivia um delicado pós-guerra, milhares de vidas haviam desaparecido sob as bombas nazistas, os EUA construíam o que seria chamado depois de American dream (sonho americano), e sua juventude encontrava-se perdida em meio a um ritual de costumes que não mais correspondiam àquela nova época. O jeito era pisar fundo no acelerador, sem destino.
Este é o mote de On The Road (algo do tipo "na estrada"), escrito por Jack Kerouac, e que entrou para a História como uma das obras que fundou o movimento beatnik, dando origem à mítica beat generation (sim, geração batida, os que haviam sobrevivido à guerra, à bomba atômica).
Ao lado de escritores e poetas como Allen Ginsberg, William Burroughs e Neal Cassady, Kerouac tornou-se símbolo da geração que deixaria marcas profundas na juventude americana mundial, subvertendo a ordem e os costumes do American way of life (estilo de vida americano) na esperança de uma nova liberdade. A literatura beat, embora nascida em textos poéticos ou de prosa, trazia forte componente filosófico e musical. Ginsberg lia seus poemas sob os solos incandescentes de Charlie Bird Parker; Kerouac também. É Ginsberg quem caminha rumo ao oriente - guiado pela poesia - e de lá traz fundamentos estéticos e religiosos depois captados pelos Beatles e pela geração hippie. Marlon Brandon e James Dean, em suas calças jeans e camisetas brancas, encarnando personagens contestadores dos modelos vigentes, dão rosto ao que era martelado em versos e parágrafos imagéticos pela turma beat. E vivido por eles dentro do conceito de que arte é vida, vida é arte - sem distinção. Jamais poderiam ser confundidos com intelectuais de gabinete.
"Não devemos esquecer - e eu insisto muito nisso nos prefácios para as minhas traduções de Ginsberg - que beat foi uma manifestação em primeira instância literária", esclarece o poeta Cláudio Willer, importante e pioneiro tradutor de literatura beat no Brasil. "Eles leram muito, eram leitores vorazes, assimilaram a informação que circulava no ambiente universitário norte-americano na época. Sem considerar a dimensão mais erudita da beat, a coisa torna-se um oba-oba." Willer explica que a beat existiu em um contexto relativamente curto no tempo - encerrando-se em seu formato original no final dos anos de 1950 - embora extremamente abrangente no espaço e nas influências. Foi a partir dele que o movimento de contracultura começou a ser gerado. "Os hippies cronologicamente vieram depois", retoma Willer esclarecendo uma comum confusão. "Digamos que os beatniks do final dos anos 1950 e começo dos 1960 foram substituídos ou sucedidos pelos hippies a partir de meados da década de 1960. A contracultura nasce dentro da geração beat ou a partir dela." Nessa linha do tempo, o poeta aponta como decisivo fato desencadeador a participação de Allen Ginsberg em manifestações pacifistas a partir de 1963, quando o autor voltou de uma longa viagem ao Oriente e passou a prestar especial atenção a tudo o que fosse alternativo. "Além de sua aproximação com Bob Dylan e grupos de rock", complementa. Pois a partir dos principais nomes da beat, a questão política - direitos humanos, igualdade racial, livre expressão, amor livre, entre outros temas hoje absorvidos na agenda da humanidade - é assumida com fé e força pela juventude e classe artística. Quando John Lennon escreve Imagine ele estava em estado beat. O fato é que o movimento beat auxiliou a tornar o mundo mais permeável a temas então intocáveis - como o sexo e a cidadania plena.

"O Brasil nasceu beat"
Embora nascido na literatura, o movimento beat não tardou a fecundar outros campos com sua filosofia politicamente anarquista e sua postura avessa ao formalismo vigente nas artes. Na música internacional dizem até que os garotos de Liverpool teriam se inspirado no termo beat para chegar a Beatles (o escritor Bruce Cook, em seu livro sobre o movimento, sugere o caminho).
Na época em que os jovens norte-americanos começavam a questionar os valores de sua sociedade, os brasileiros pareciam manifestar inquietação semelhante. Entre eles, o músico e escritor Jorge Mautner, autor de Kaos, que abriu a programação do projeto Geração Beat, realizado pelo Sesc Santo André. "Trata-se de um momento da cultura americana e do pensamento da literatura de lá no qual o escritor em vez de se identificar com a cultura erudita passa mais a se identificar com os batuques e bongôs da cultura negra." Mautner explica que sua ligação com o movimento acabou se dando de maneira quase coincidente. Afinal, se por um lado, a juventude americana estava interessada em elementos oriundos de culturas até então desconhecidas, o Brasil vivia em pleno processo antropofágico. "O Brasil sempre foi beat", afirma o poeta. "Ele sempre misturou essas influências indígenas e africanas, realizando essa constante criatividade que é própria da cultura beat - e que, ao contrário do que as pessoas pensam, também inclui a erudita e a clássica, só que ela dá mais valor à experiência. Foi um existencialismo americano que o Brasil já vivia bastante. O Kerouac, por exemplo, lia poesias ao som de batuques. Foi a primeira vez que a cultura norte-americana não só deu valor à cultura negra, mas a colocou como exemplo a ser seguido. Só que o Brasil sempre fez isso, com a nossa antropofagia, nosso Tropicalismo, enfim. A minha ligação com a geração beat é essa: pelo Brasil que muito antes disso tudo já nasceu assim antropofágico, absorvendo todas as culturas e imitando-as criativamente o tempo todo."
O escritor e dramaturgo Mário Bortolotto, que apresentou alguns de seus livros durante o evento - entre eles Para os Inocentes que Ficaram em Casa, "que aliás tem vários poemas orais bem na linha poema beat", como ele mesmo define - é outra figura que tem em Kerouac, Ginsberg e nos demais adeptos da filosofia on the road uma fonte de inspiração. "É bem simples: eu sou um curtidor de literatura beat assim como curto outros tipos de literatura também." Para Bortolotto, a nossa antropofagia é diferente da dos americanos, mas as duas, de qualquer maneira, não precisam se sobrepor, elas podem se complementar na busca pela fluência do discurso e das idéias e na fuga dos formalismos seja na literatura, seja na música. Na opinião do dramaturgo, para aqueles que se interessem em se aprofundar no universo beat, nomes como Roberto Piva, o próprio Cláudio Willer e Antônio Bivar - que também teve livros lançados no evento do Sesc Santo André - são alguns bons nomes. Porém, já adianta que não se trata de rotular esse ou aquele escritor. "Não acho que algum deles vá querer esse rótulo. Eu mesmo não sou a fim. Sou um curtidor de literatura beat, mas não bebo só dela."

Canções de viagem - Marcelo Nova e Carlos Careqa homenagearam ídolos da geração beat
Entre as atrações musicais presentes ao evento do Sesc Santo André, os shows de Marcelo Nova e Carlos Careqa trouxeram um pouco do clima de estrada que marcou a música produzida naqueles tempos. Interpretando respectivamente Bob Dylan e Tom Waits - muito particularmente, diga-se de passagem - ambos confessam a influência desses artistas em sua música. "Na verdade, eu fui conhecer esse pessoal do beatnik muito depois de ter conhecido Bob Dylan", conta Marcelo Nova. "Foi ele que me introduziu aos velhos. A minha ligação com Bob - e é por causa dele que eu participei do evento - vem do tempo em que eu era um moleque curioso e ficava invocado com a dimensão dos textos e das letras dele." Na época, "sem saber uma palavra de inglês", como se lembra, Nova começou a devorar os dicionários do idioma americano na ânsia de entender o que dizia seu ídolo. "Finalmente eu percebi que ele era - de toda aquela geração criativa e espontânea - o que mais violentamente me chamava a atenção. Eu percebi ainda numa idade muito tenra - um moleque de 15 ou 16 anos - as inúmeras possibilidades que ele colocava dentro de um texto. Através dele eu acabei me interessando por literatura, especificamente beat. O Dylan foi o cara que me botou on the road."
Já Carlos Careqa confessa não ser exatamente um especialista em cultura beat. Na verdade foi Mario Bortolotto quem o introduziu à turma de Kerouac, 20 anos atrás em Curitiba. Mas uma vez tendo tomado contato com esse universo, jamais foi o mesmo. "Quando assisti a uma peça dele [Bortolotto] chamada Feliz Natal Charles Bukowisky fiquei chapado", lembra-se. "Então comecei a ler todos os livros do Bukowisky e gostei muito. Confesso que foi o que mais gostei. É muito bem escrito, com muitas histórias fascinantes. Recomendo Mulheres e Confissões de um Velho Safado!" Quanto a Tom Waits, bem... é uma paixão antiga que veio muito a calhar. "Ah, sempre quis cantar as músicas desse cara", retoma Careqa. "'Conheci' o Tom Waits em Curitiba em 1984, através do Raul Cruz, meu parceiro em Cortei o Dedo. Ele fez uma peça homenageando a Maria Bueno (uma espécie de santa curitibana) e colocou a canção Innocent When You Dream, do Waits, na trilha. Eu fiquei maluco, queria saber quem era o cara e fui atrás. Fantástico."