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O maestro Lutero Rodrigues afirma que o Brasil perdeu em sensibilidade ao abolir o ensino musical nas escolas

É preciso "entender" música erudita para apreciar boas peças? O maestro Lutero Rodrigues, regente da Orquestra Sinfonia Cultura, responde que não. Segundo ele, qualquer pessoa pode gostar das notas de uma orquestra; basta deixar a sensibilidade fluir. A seguir, principais trechos da conversa:

"Somos conhecidos por ser um povo musical e nós mesmos nos reconhecemos assim. É fácil perceber isso. Basta olharmos o quanto gostamos da nossa música popular, que é muito rica. Só que somos um povo que, apesar de sermos chamados de "musical", não temos conhecimento musical básico. No Brasil, tem-se a impressão generalizada de que ler uma partitura de música é um mistério, um dom divino reservado a poucos. Só que isso não é verdade. A música deveria fazer parte da nossa educação básica e todos deveríamos ter o direito de conhecer essa linguagem.
No que diz respeito à música erudita, a situação é ainda mais difícil. Na maioria dos países onde música é levada a sério, o aprendizado musical é feito desde o início da idade escolar como qualquer outra matéria. Assim como se estuda a língua se aprende música. Na Alemanha, onde estudei, era possível facilmente encontrar um motorista de caminhão que soubesse ler música. É comum também que, durante o ensino básico, as crianças toquem tão bem seus instrumentos que a escola tem sua própria orquestra sinfônica e executa sinfonias inteiras como muita orquestra sinfônica profissional.
No Brasil, infelizmente, não temos mais educação musical na escola. Ainda estamos discutindo se a música deve ou não fazer parte de nossa educação. É como se estivéssemos na idade da pedra em relação a essa questão. Por isso, acredito que as pessoas que trabalham com música, principalmente aqueles que são regentes de uma orquestra, enfim, deveriam preocupar-se sempre em tentar suprir as falhas básicas da educação musical do nosso povo com atividades que possam compensar isso. Uma dessas possibilidades é justamente a série Concertos Sesc & Sinfonia Cultura, que realizamos a cada 15 dias nas manhãs de domingo, no Sesc Belenzinho. É fundamental termos essa preocupação em um país como o Brasil. Essa falta de educação, de costume é o que gera esse abismo entre as pessoas e a música erudita.

Música erudita e popular
Em alguns casos, a fronteira entre música erudita e popular é muito bem delineada. As músicas populares têm um processo de criação em que já se parte de uma limitação de tempo padronizada pela indústria fonográfica. Trata-se de composições mais espontâneas. O compositor popular não está preocupado com a forma de sua música, mas sim com a maneira como ela pode servir de canal para expressar suas idéias. Já o compositor erudito também quer se expressar, mas ele tem, sobretudo, grande preocupação com a organização da música, ou seja, com a seqüência de sons. É fundamental para o compositor erudito que a música obedeça a uma lógica formal. Não é que seja uma música sem emoção, mas é resultado de um processo cerebral em que o compositor tem domínio e quer que as coisas se dirijam de uma determinada forma, que a sucessão dos sons tenha uma lógica. Outra diferença entre as canções populares e eruditas é que o compositor erudito também não se limita a padrões como minutagem de música. Às vezes sai uma peça curta e outras uma imensa, até de horas. Esse tipo de compositor não se limita a qualquer outra coisa, a não ser a sua própria sensibilidade e necessidade de expressão.
Outra diferença entre o trabalho do compositor erudito e do popular é que no primeiro caso não há o compromisso de fazer com que a música seja agradável ou facilmente assimilada. Já a música popular tem a pretensão de se tornar querida, vendável, há um formato que possibilita que ela seja também um produto comercial. Tem uma duração determinada, é de fácil entendimento e tem repetições sistemáticas para que as pessoas a memorizem com facilidade. A princípio a música erudita não tem um compromisso de tornar-se atraente e vendável. Logicamente nenhum compositor quer compor para as gavetas, mas seu principal objetivo não é facilitar sua música para que as pessoas gostem dela.

Instrumental e erudita
Quando nos referimos à música instrumental, as fronteiras se diluem. Uma música instrumental pode ser popular ou erudita. Depende da sua forma. Um exemplo dessa confusão está no trabalho de Ernesto Nazaré. Suas canções eram de um determinado gênero instrumental que foi desprezado inicialmente pelos eruditos, apesar de possuir características de música erudita. Isso porque caiu nas graças do povo. Vieram, então, Mário de Andrade e outros nacionalistas que enxergaram valor nessa música, pois era carregada de "raízes brasileiras". Foi só assim que as canções de Nazaré passaram a ser tocadas em salas de concerto. Atualmente, elas são consideradas músicas que não estão nem no âmbito do erudito nem no do popular. Nesse ponto, a distinção entre a música instrumental e erudita é de mais difícil definição do que a música vocal popular e a música vocal erudita. Pois a diferença entre as duas é declaradamente imensa. O canto popular tem uma emissão vocal completamente diferente do canto erudito. Já na música instrumental, as coisas se confundem. É comum não saber se é uma coisa ou outra.

Questão de sensibilidade
Apesar de todas as diferenças entre o erudito e o popular, é importante que as pessoas saibam que há muitos níveis de escuta da música erudita. Você pode escutar como um erudito, como um compositor, ou seja, decifrar cada nota da música, mas também pode simplesmente escutar com sua sensibilidade. As pessoas têm que entender que qualquer um pode desfrutar uma música erudita porque para isso é necessário somente sensibilidade e isso está dentro de todos. É uma música que pode causar emoção em qualquer pessoa. Basta não se fechar para isso, não barrar esse prazer. Abrir mão da idéia de que é necessário entender música erudita. É necessário apenas senti-la. Nós, músicos eruditos, precisamos de público e não fazemos músicas somente para especialista. Evidente que ao longo do tempo se o ato de escutar música erudita passar a ser um hábito, o entendimento chega. Pouco a pouco os ouvidos começam a detectar o fluido da música erudita. Fica mais fácil distinguir música barroca da música romântica ou clássica. A música erudita tem vários níveis de complexidade também. Comece por conhecer o básico e depois, aos poucos, se tornará cada vez mais fácil reconhecê-la. Mas a ferramenta essencial é a sensibilidade e isso todos temos. Só precisamos derrubar o preconceito."

As apresentações da série Concertos Sesc & Sinfonia Cultura acontecem no Sesc
Belenzinho a cada 15 dias, às 11h dos domingos. Confira a programação