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Em Pauta
Cultura global

O mundo ficou menor com a última revolução tecnológica. Realidades distantes tornaram-se fatos vizinhos. Até que ponto um mundo sem fronteiras é prejudicial aos povos? O poder econômico irá extinguir todas as diferenças? Em artigos inéditos, o pesquisador e compositor Paulo Freire e a professora Jerusa Pires Ferreira apontam as armadilhas e benefícios da globalização



Qual é a graça de ser tudo igual? O bom está na diversidade

por Paulo Freire

Ano passado viajei para o Amapá. Fui de Macapá até Município de Amapá, trezentos quilômetros ao norte do Estado. Gosto muito de viajar, ainda mais com tanta novidade acontecendo, então estranhei que estava começando a achar chato. Olhava pela janela e dava sono. Até que descobri o motivo: eucalipto. Nada contra esta árvore, muito pelo contrário, mas, moço, dona, vão ouvindo, haviam arrancado uma grande parte de mata (amazônica!) para reflorestar com eucalipto. Sempre que me falam da tal globalização, vem esta imagem aborrecida. Qual é a graça de ser tudo igual, se o bom está na diversidade?
Lembro também de um conto de Edgar Allan Poe, chamado O Diabo no Campanário. Vou resumir o causo: diz que havia uma cidade com casinhas todas iguais, em cada uma delas moravam dois velhinhos e duas crianças, todos tinham uma hortinha de batatas e, todos os dias, precisamente ao meio-dia, a população se reunia em frente à igreja para ouvir as doze badaladas. Depois voltavam para casa, satisfeitos. Almoçavam, faziam a sesta, tudo juntinho e igualzinho.
Um dia, o diabo chegou por ali, seduziu a filha do guarda do campanário, subiu na torre onde ficava o sino e se escondeu. Ao meio-dia, quando toda a população se juntou na praça em frente à igreja, o diabo badalou o sino 13 vezes. Foi um Deus nos acuda, a população entrou em desespero, como aquilo era possível? Descontrolou todo o dia deles, ninguém sabia mais o que fazer. Enquanto o diabo sacou seu violino e tocou uma música alegre e enlouquecida do alto do campanário, a população se organizava para expulsá-lo dali e poder voltar ao normal, com medo do risco que surge com o inesperado.
Claro que a cultura popular sofre com a globalização. Os jovens brasileiros ficam no dilema entre dançar um catira ou sair por aí desfilando com a roupa da grife de um artista. Desprezando as festas populares, elas vão minguando e podem até desaparecer. Claro, existem também as que se modificam, em uma antropofagia toda brasileira. Temos uma capacidade rara de incorporar novos elementos em nosso dia-a-dia.
Acabo de voltar de uma nova viagem pelo sertão do Urucuia, norte de Minas Gerais, onde fui aprender a tocar viola na década de setenta. Seguindo uma indicação do violeiro Roberto Corrêa, fui conhecer o seu Rosa, folião de guia, que mora em um sítio, perto da cidade de Buritis. Chegando lá, seu Rosa, de 70 anos, foi logo disparando:
"Tudo no mundo é três: o pai, o filho e o Espírito Santo, os animais da terra, da água e do ar"; resolvi provocar: "e o homem e a mulher, não são só dois?" Respondeu: "Não, senhor, porque é o homem, a mulher e a justiça divina. E tem mais, o homem para viver bem tem que fazer três coisas: suar (e fez o gesto de tirar o suor do trabalho), beber uma pinguinha para calibrar os nervos e dar um agarra pra não cumular óleo." Será que precisa explicar este terceiro item? Hmmm. E continuou a falar:
"São três os corpos que nunca foram encontrados: Lampião, o governador da Alemanha, e agora tem o Sadam."
Claro que o governador da Alemanha é o Hitler, e tenho certeza que se um dia o Sadam aparecer, seu Rosa vai logo arrumar um substituto.
Quando vivi no sertão do Urucuia, não tinha luz elétrica, o único contato com o mundo exterior eram os viajantes e o ônibus que passava uma vez por semana (quando a estrada deixava). Desta forma, a cultura da região foi curtida no tempo do sertão. Agora, Urucuia virou cidade. Estive lá quando a luz chegou, e com ela os benefícios do progresso. O fascínio que a chegada da televisão exerce sobre as pessoas é impressionante. E o som que passaram a instalar dentro dos carros era mais impressionante ainda. Então, o povoado em que vivi, no meio do sertão, agora era invadido pelas novelas e programas de TV, além das músicas da FM tocando em alto volume dentro dos carros.
A prosa embaixo da mangueira ou a violinha ponteada no terreiro foram sendo encobertas pelo progresso. Essa mudança me deu uma agonia tão grande, que corri para a cidade de São Francisco, lá perto, à beira do rio São Francisco, procurar uma Folia de Reis. Nesta cidade, bem mais antiga, me acalmei. A televisão não era novidade, as pessoas não ficavam tão seduzidas pelo estilo de vida do povo das novelas, e nem pela potência do som dentro dos carros.
Isso que vi no Urucuia mostra um pequeno quadro do que está espalhado pelo Brasil. Claro que o progresso é bom, a luz elétrica é um conforto indispensável, e eu também assisto uma televisãozinha, mas a gente tem que saber lidar com esse negócio.
A verdade é que as pessoas já estão ficando cansadas das constates repetições e dos sucessos fabricados e espalhados pelo mundo. De repente vemos um número cada vez maior de artistas correndo em busca das riquezas que brotam bem à sua frente. Por exemplo, olha só a história de São Gonçalo, que tem muito a ver com este assunto. Vai ouvindo.
São Gonçalo viveu no Amarante, em Portugal, no século XII. Diz que ele rezava a missa com uma violinha do lado e depois dançava com os fiéis. É considerado protetor das prostitutas, patrono dos violeiros, santo da fertilidade e casamenteiro. Ele prometia para as "mulheres da vida" que, se dançassem doze rodas em louvor a São Gonçalo, elas iriam arrumar casamento. E São Gonçalo dançava com elas. O santo punha prego no solado do sapato antes de dançar, para evitar a tentação.
O culto chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses. Por ser santo da fertilidade, as festas em sua homenagem começaram a tomar caminhos inusitados. Os relatos da época são impressionantes; dizem que nas igrejas onde eram realizados os cultos, os fiéis davam umbigadas, dançavam sensualmente, senhores misturavam-se com escravos e até o vice-rei tomava parte da festa. Os novos brasileiros sentiam-se livres do castigo divino realizando cerimônias desta natureza, pois os relatos demoravam muito a chegar nos ouvidos de Deus, ou seja, do clero em Portugal.
Com o passar dos anos, a vigilância se estreitou e o culto a São Gonçalo foi perdendo seu caráter sensual. Hoje em dia, as festas são realizadas fora das igrejas e todos desconversam quando se toca no assunto das prostitutas ou da fertilidade. Parece que vai se criando uma história oficial do santo. Porém, em Amarante, ainda é possível encontrar os falos de São Gonçalo - pãezinhos em forma de falo que servem para auxiliar na promessa feita ao santo para ter filhos.
A força da cultura popular e a facilidade de adaptação do brasileiro às novidades caminham juntas. As manifestações curtidas através dos anos não podem se acabar, pois temos uma necessidade íntima de vivê-las e transmiti-las. Quando sinto que estou meio perdido, corro para minha violinha e procuro tocar as músicas que aprendi no sertão, da forma mais crua possível. Vou entrando numa espécie de mantra, ou sei lá como chamar esse negócio. A música transmitida pelas gerações, que trazem a história do campo, da seca, chuva, relações humanas, amor, separação e os cantos da natureza sempre me deixam no prumo. Parece que temos que ficar escavando cada vez mais em nosso próprio quintal para descobrir as novidades.
Todos sabemos que grandes artistas como Villa-Lobos, Guimarães Rosa, Dostoievski, Picasso, só para citar alguns exemplos, foram profundamente inspirados pela cultura popular. Agora, o que me deixa desacorçoado é o seguinte: como explicar para um rapaz que está louco para conquistar a menina, ali na festa country de rodeio, que o bom mesmo é sapatear um lundu?

Paulo Freire é músico, pesquisador de cultura popular e autor de Eu Nasci Naquela Serra (Editora Paulicéia, 1996)


Oralidade, Mídia, Culturas Populares

por Jerusa Pires Ferreira

Com muita razão, estamos todos voltados para fenômenos que nos alcançam na virada do milênio, e que já se vinham gestando há muito, mesmo quando não pressentidos. São fatos, práticas e instrumentos que atingem nosso modo de ser, de viver e de pensar. Em ritmos velozes e contínuos, identidades se transformam ou se confirmam mais fortemente, alteridades se confrontam, poderes se firmam ou devastam. Nos sentimos ameaçados, alegres ou desesperados.
Considera-se, com fortes motivos, estarmos vivendo uma revolução tão importante e intensa como aquela passagem do medievo para a Idade Moderna e, no domínio da comunicação, chega-se a falar em pós-humano, e no primado do maquínico.
Há uma enorme bibliografia a respeito: livros, artigos, impressos, suplementos culturais que veiculam diferentes posturas e posicionamentos diante do assunto. O fato é que se implica nesta problemática uma intrincada conexão dos diversos domínios do saber e, muitas vezes, confundem-se os campos.
Estamos diante de toda uma sutileza de alcances e práticas paradoxais, de questões sem resposta que têm de ser levadas em conta. Uma coisa é a instância política da dominação, a globalização sob a égide de um capital internacional que não tem rostos. Criam-se porém muitos impasses de avaliação e de inserção.
É que juntamente com esta dominação vêm as tecnologias, confortos, conquistas que dificilmente podem ser recusadas. Ganhos e perdas, me parece, andam juntos, e a vida moderna vai trazendo respostas e impasses a uma série de desafios. A cada passo se insinuam princípios e perguntas. Como, quando, para quem? Mas não podemos deixar de lado a instância cultural, em seus próprios planos, o modo pelo qual processos, transferências, apreensões e cooptações se dão no bojo do que chamamos Cultura.
E como não nos preocuparmos com o tema, se ele faz parte da cogitação, das práticas e dos ensinamentos, no dia a dia?
Assim, costumamos contemplar as culturas tradicionais, os "gêneros" que provêm de antigas presenças, regionais e universais, ao mesmo tempo. São levados em consideração os ambientes e paisagens humanas que tocam grupos sociais que assentam suas criações mais no regime da voz que da letra, e que ainda os transmitem na teatralização comunicativa e na performance. Mas também são considerados regimes mediatizados (a voz no rádio, no disco, na televisão, no cinema). E o entendimento de que os indivíduos partilham temporalidades e espaços diversos, concomitantemente. O mesmo rapaz que freqüenta discotecas, no seu espaço familiar ainda dança na festa de São Gonçalo.
A quem caberia estabelecer limites? Defende-se a preservação de um estado de coisas contra a globalização cultural e a invasão de repertórios estrangeiros, contra um estado de transformação repentina, desfiguradora, imediata. Alguns folcloristas defendem uma espécie de pureza inicial, como algo que, pertencendo ao povo teria de ser genuíno e legítimo.
Acho que cultura é um processo móvel que vai criando transformações e, apesar das especificidades, vai alterando fronteiras. Há processos contínuos de deslocação de funções, de desterritorializações e de ocupação de novos territórios.
As culturas mais tradicionais se ajustam a novos ritmos sociais e culturais, criam outras marcas, se mediatizam passam pelos diversos suportes e meios transmissivos.
As oralidades que tinham no corpo a própria mídia passam de voz viva aos meios acústicos, eletrônicos, ou em rede. E isto tem a ver com a modernização inevitável. Estas operações de transmissão criam novas atitudes, gêneros, intérpretes, energias que são geradas e expandidas, nos novos meios. Deste ponto de vista, defendendo a mestiçagem de culturas e a hibridação de linguagens, as possibilidades de longo alcance, diríamos que nossa atitude em geral é a observar de caminhos e processos.
Ma surge o impasse diante do que é, de fato, o controle dos meios de comunicação, as políticas culturais ou anti-culturais, como se queira chamar, fazendo destas transformações o estereótipo mais banal, o nivelamento mais raso, a transformação dos tempos num tempo de mercado, e da nossa vida um inferno. E aí, é impossível defender o estilhaçamento e a repetição empobrecedora. Estamos diante daquilo que o semioticista russo Iuri Lotman chama não-cultura. Ou seja, o momento em que há uma aniquilação de princípios de reconhecimento, a instalação do vazio, a velocidade com a qual as coisas são descartadas, deletadas ou tragadas.
Por isso, não é possível seguir uma posição simplista de adoção ou de rejeição, por princípio, de práticas globalizantes, de defesa de um imobilismo cultural, sem passar por contradições, (salvo para os artistas que radicalizam para preservar o espaço inteiro de sua criação e linguagem, os militantes que desejam atingir certos alvos).
Há fatos terríveis de invasão, de desrespeito a culturas, seja por intervenção de organizações religiosas, ou por necessidade de domínio e exploração. Isto nos agride. Como pensadores da cultura, é sempre um ir e vir, percebendo que há escalas identitárias, os mais diversos níveis de interferência, os ambientes mais ou menos propícios. Há limites e suas quebras, há gestações de processos, e me lembro muito bem de uma das formulações de Jesus Martin Barbero, que nos anos setenta, quando das discussões sobre o nacional-popular, as culturas do opressor e do oprimido, nos dizia que o massivo foi gerado, muito lentamente, a partir do que chamamos popular.
A televisão (um meio já obsoleto, mas que em vez de desaparecer vai se re-funcionalizar, e ganhar novos sentidos) não é o mal, não é o meio que é perverso, o que é aberrante é seu controle e utilização, as condições de vida a que são submetidos os seus habituais fruidores.
Evoco uma figura que as crianças adoravam, o Tiririca (também tragado pelo meio e diante de seus públicos), um fenômeno curioso. Ele recupera uma linguagem infantil, em sua tonalidade vocal, passa um conhecimento desse cômico e do grotesco depositados na cultura do povo, no circo. Há uma energia que conseguiu furar até a repetição e as obviedades.
Ainda por esses dias, vi na televisão o filme dos trapalhões O Mágico de Orós, deliciosa paródia do filme americano que povoou nossa infância, e me rendi ao talento de Renato Aragão, Mussum e seus parceiros. Cultura popular? De massas? Genuína? Pouco importa, mesmo porque até estas definições são precárias, e sabemos que há o campo e a cidade, as grandes, cosmopolitas, e as pequenas, com maior unidade numa direção, a transmissão de repertórios, o imaginário do campo na violência das cidades, a violência das cidades no universo do campo, as periferias urbanas, síntese assustadora.
Há muitas possibilidades de expressão do que chamamos popular (que pode ser cultura de massas ou pré-massiva) e detectadas as especificidades, o importante é não hierarquizar nem dividir. Tanto pode ter lugar e estatuto de arte, um texto da cultura tradicional de registro oral, como outras experiências mediatizadas.
Impossível estudar os textos das culturas populares sem pensar em suas matrizes impressas ou mediatizadas, e assim temos feito, adentrando o mundo das edições populares. Textos e livros produzidos para leitores de rodoviária, conforme me disse um dos editores, de larga circulação e contíguos ao universo da cultura de massas. A esse universo tão rico de imagens, de transferências culturais, batizei Cultura das Bordas, tendo como protagonista, Rubens Luchetti, que responde por milhares de títulos e escreveu os roteiros para os filmes de Zé do Caixão, hoje transformado num cult. E então podemos falar de uma conexão possível com a criação das vanguardas de determinado momento. Podem aí ligar-se as experimentações mais arrojadas e brasileiras como as de Helio Oiticica.
Portanto, é esta circularidade, a revitalização, o "comércio" que nos interessa, o que faz avançar, compatibilizando, hibridizando, ao rejeitado, ou como queria o compositor Bororó em seu inigualável Curare, a Misturação.
Mesmo quanto às literaturas populares, as mais tradicionais, não terão os novos meios exercido este papel? Não são o folhetim, o cinema, a televisão os acionadores de novas práticas neste mundo tradicional?

Jerusa Pires Ferreira é professora da ECA-USP e do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, onde dirige o Centro de Estudos da Oralidade.