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Latinidades
Tão perto, tão longe

A Mostra Sesc de Artes, edição 2003, destaca as Latinidades ao apresentar manifestações artísticas de vários países das Américas e da Europa. O evento traz ao Brasil a produção cultural contemporânea e discute os laços que unem e afastam essas nações de origens semelhantes

Por certo o brasileiro sabe mais sobre os shows da Broadway do que a respeito das peças em cartaz em Buenos Aires. O mesmo vale para a literatura: Roberto Arlt e Ernesto Sabato são nomes menos familiares do que Gore Vidal e Truman Capote. E na música? Para a maioria é mais fácil cantarolar os muzaks de Lionel Ritchie do que as lindas melodias de Astor Piazzola ou Ary Barroso.
Assim como o Brasil pouco conhece o Brasil - na categórica afirmação de Tom Jobim -, os povos latinos quase nada sabem dos povos latinos. À exceção de alguns poucos nomes estelares - Cortazar, Borges, Neruda, Octávio Paz, por exemplo -, o conhecimento que o brasileiro possui da nova música chilena ou do novo teatro venezuelano é o mesmo que o uruguaio desfruta das artes plásticas mexicanas: quase nenhum. Frida Kahlo deve sua notoriedade recente a... Madonna.
Para atualizar o conhecimento do público, além de buscar realizar uma reflexão sobre a questão, a Mostra Sesc de Artes escolheu as Latinidades como tema da edição 2003.
De 19 a 31 de agosto na capital, e de 26 de agosto a 14 de setembro, nas unidades do interior e regiões vizinhas, manifestações artísticas de países das Américas e da Europa estarão mostrando suas mais novas e contemporâneas criações. Teatro, cinema, artes plásticas, música, dança, entre outras atividades, serão apresentadas num total de 80 cidades do Estado de São Paulo.
Acompanhe no Caderno de Programação o roteiro de todas os espetáculos e debates que irão ocorrer tendo as Latinidades como ponto de discussão.
Nas páginas seguintes, a Revista E traz artigos e depoimentos inéditos de importantes pensadores e realizadores culturais discutindo a razão de os países latinos estarem tão distantes uns dos outros e como essa realidade começa a ser modificada a partir da concretização de blocos econômicos como o Mercosul.
O início dessa discussão já faz parte da Mostra Sesc de Artes - Latinidades.

Vencer as distâncias
"O que há de interessante no discurso da identidade é ver que mesmo os europeus e norte-americanos não se preocuparam com ela mais profundamente. Afinal, só se preocupa com identidade quem sente a sua ameaçada. Assim, com o advento da globalização - e do próprio esforço da União Européia - surge na Europa um discurso voltado para a questão da identidade, uma identidade européia. Nós sempre nos preocupamos com essa questão porque sempre fizemos parte de uma cultura periférica, cujas raízes e modelos estéticos sempre vieram da Europa - seja na literatura, arquitetura, artes plásticas etc. E esses elementos que marcam a diferença entre um modelo internacional e as coisas feitas aqui fazem parte de um processo de construção de uma identidade local.
Do ponto de vista de uma latinidade, o brasileiro é latino-americano, embora ainda que não se reconheça como tal - a exemplo do argentino que se acha europeu. É o mundo que nos reconhece - a todos, brasileiros, argentinos, chilenos etc. - como latino-americanos. A América Latina, em si, sequer existe, a não ser aos olhos do mundo. Essa visão de um enorme conjunto de identidades tem a ver com um olhar estrangeiro. E ser latino-americano diz respeito a um complexo que eu não saberia dizer do que é constituído. No entanto, vale ressaltar que as relações internas entre os países que compõem essa América Latina vêm se modificando, e muito, pela importância que o Mercosul assumiu no mundo do comércio. Quando esse tratado começou a ser, realmente, uma relação comercial importante - a Argentina chegou a ser o segundo parceiro mais importante do Brasil - isso fez com se que mudasse muito essa estranheza. Nós tínhamos um total desconhecimento em relação aos nossos 'vizinhos' e, hoje em dia, já se enxerga que o intercâmbio cultural é fundamental para mudar isso. Quando se cria a Bienal do Mercosul, ou a Mostra Sesc de Artes - Latinidades, o que está se fazendo é reconhecer essa troca. A exemplo dos outros países que recebem com enorme interesse a arte brasileira. A nossa música é popular na Argentina e alguns artistas brasileiros passaram, inclusive, a cantar em espanhol. Enquanto que a música cubana tem grande penetração na juventude mundial, inclusive a brasileira. Penso que a luta contra a ditadura levou a uma mobilidade entre pessoas que são formadoras de opinião, pessoas que têm uma vida política e que tiveram uma convivência latino-americana. Isso valeu para o governo de Fernando Henrique Cardoso e agora vale para o governo de Lula. Pessoas que pertenceram a esses dois governos tiveram, no passado, exílios em países como o Chile, a Argentina e o México, e procuraram unificar suas lutas. São muitos os movimentos que nos aproximam. Nós temos uma situação social parecida, somos países com forte desigualdade social, com renda concentrada, somos periféricos e vistos, lá fora, como membros de um mesmo grupo. Nós ainda estamos muito longe culturalmente de alguns países da América do Sul e Central, mas temos tudo para vencer essa distância."

Fábio Magalhães, administrador cultural e professor, foi curador geral da II Bienal do Mercosul e diretor-presidente da Fundação Memorial da América Latina

"Inca, Asteca, Guarani ou Tupi"
"Um aspecto fundamental da criação artística latino-americana que tem a ver com latinidade - esse termo, naturalmente, entendido como uma expressão de uma combinação excepcional de culturas, etnias e experiências históricas latino-americanas - é o Realismo Mágico. Indiscutivelmente, esse elemento, presente em Guimarães Rosa, José Luís Borges, Gabriel García Márquez e outros, é uma expressão incrível e, provavelmente, bastante enraizada no que é a realidade latino-americana. Ele está provavelmente nas obras desses autores e seria impossível em outros continentes. Até mesmo na França, Portugal, Espanha ou Itália. Ainda que haja ressonâncias entre produções culturais artísticas desses países - no sentido de que, às vezes, parecem similares - não há dúvida de que a imaginação e a inventividade presentes, por exemplo, em Macunaíma de Mário de Andrade, são algo fora do comum em termos de Realismo Mágico. O que equivale dizer que se trata de um trabalho com o tempo e o espaço, com a história e a memória, e com a biografia e sociedade, que extrapola totalmente as barreiras convencionais dessas noções. Nesse sentido, nós podemos dizer que na cultura, na América Latina, conforme ela aparece em produções literárias, de romances às pinturas de Portinari, Di Cavalcanti, Rivera entre outros, nota-se uma excepcional criatividade, muito diferente do que seriam as fórmulas e soluções que se encontram em outros países. E nesse sentido é possível dizer que se trata de criações que expressam uma combinação excepcional do que é o nativo e o indígena - seja inca, asteca, maia, guarani ou tupi. Assim como do afro-latino-americano, que tem uma importância também excepcional nessa mescla cultural, nessa combinação incrível de elementos que, repito, rebatem direta e fundamentalmente em noções e expressões de tempo e espaço, de imaginário, de fabulação e invenção que caracterizam de uma maneira forte algo que é muito próprio da cultura latino-americana."

Octavio Ianni é sociólogo, professor aposentado de Sociologia da Unicamp e autor, entre outros, de O labirinto Latino-Americano (Editora Vozes, 1993).

As duas Américas
É fascinante como as palavras imigram no tempo e carregam ideologias. Em 1836 o jornalista francês Michel Chevalier, em viagem pelos Estados Unidos, percebe a existência de duas Américas, uma protestante/saxônica e outra católica/latina, cunhando uma divisão que prevalece até hoje, a da América do Norte e a da América do Sul. Movimentos geopolíticos dirigiram as nomenclaturas durante o século 19 para o pan-americanismo, respondendo a interesses norte-americanos (até jogos pan-americanos tivemos em São Paulo!), e o latino-americanismo, pertencente ao eixo especificamente francês, da época das invasões napoleônicas do 19. Desde então, a expressão América Latina foi um consenso, que teve o seu apogeu nos anos de 60 e 70 do século 20. O termo foi adotado, sem hesitação, em praticamente todos os setores econômicos e culturais do continente. Nas últimas décadas, surgiu um novo movimento, de grande atualidade, o do Mercosul.
Para a minha surpresa, o adjetivo latino e o substantivo latinidades têm origem no Lácio, ou seja, na cidade dos antigos romanos do século IV a.C. que falavam latim.
O componente latino foi reinventado nos últimos anos e com força avassaladora nos Estados Unidos, como nomenclatura alternativa aos grupos "hispânicos", e como forma de reafirmação cultural: Música LATINA, culinária LATINA, para refletir as culturas ao sul do Rio Grande. O Google (site de buscas da internet) revela hoje mais de 4 milhões de referências! Com isto estamos abrindo mão da especificidade de uma América Latina, que caracterizou a minha geração, passando a assimilar a ideologia norte-americana, que se instala através do novo vocabulário, para caracterizar uma plêiade de manifestações culturais, em que o Brasil aparentemente também tem inserção. Num contexto bem mais amplo, podemos incorporar dentro do conceito de latinidades as culturas européias de origem latina (especialmente Itália, França, Espanha e Portugal), africanas de expressão portuguesa, os latinos residentes nos EUA (uma mistura de porto-riquenhos, chicanos, cubanos, hondurenhos, guatemaltecos e até brasileiros), e os países que vêm do México até a Terra do Fogo. Um pouco assustado com as dimensões geopolíticas da ressignificação de latinidades, podemos perceber uma trajetória de política e linguagem de mais de 2 mil anos de tradição. Acho ótima a iniciativa do Sesc, mas pessoalmente prefiro me refugiar na doméstica realidade do Mercosul, como parâmetro de diálogo, de identificação e de intercâmbio político, cultural e comercial.

Jorge Schwartz é crítico literário, professor aposentado de Literatura Hispano-Americana da USP e autor, entre outros, de Vanguardas Latino-Americanas (Editora Iluminuras, 1995).

O significado do que é ser latino
"A palavra latinidade geralmente é usada para reafirmar uma ampla identidade frente ao mundo anglo-saxão. No entanto, trata-se de um conceito que ignora boa parte de culturas que estão na zona de influência da América Latina, portanto não abarca a complexidade pluricultural desse continente. Sob essa "latinidade" expandiram-se impérios e o colonialismo em boa parte do mundo. As principais vítimas dessa política foram os povos pré-colombianos que já estavam aqui e que, em nome da latinidade, foram vítimas do maior genocídio da história do Ocidente.
Prefiro falar sobre "indoiberismo", que vem de indoibéria, pois na América Latina não existem apenas povos com línguas latinas. Aliás, muitos dos que vivem dentro dessas nações ainda não têm direito a língua, a conhecimento e até mesmo a imagem. O que conhecemos hoje por América Latina foi construído aniquilando o mundo indígena que já havia aqui para continuar vivendo no mundo branco. A discriminação e o racismo foram e ainda permanecem muito intensos. É premente que se amplie o significado do que é ser latino e, para isso, temos que fazer uma análise crítica. Não podemos esquecer que somos filhos do genocídio causado pela invasão cristã. Os latinos cristãos desembarcaram aqui para converter os índios em escravos e para isso utilizaram-se de um regime assassino. Para se ter uma idéia, nos primeiros 50 anos da conquista européia morreram 40 milhões de índios. Isso sem falar nos milhões de negros que foram arrancados de suas aldeias na África. Somos, portanto, a síntese de muitos processos migratórios e civilizatórios.
Nas artes ocorre o mesmo. A pintura do renascimento e a pintura mexicana são latinas, mas no México já viviam muitos povos antes da chegada dos europeus, como os astecas e zapotecas. Esse denominador comum imposto pelo conceito de latinidade não leva em conta que a cultura indígena está presente em tudo e esquece que esses povos ainda estão defendendo-se da aculturação e brigando pelo direito à terra e à língua. Isso sem falar que no século 20 chegaram muitos outros povos aqui, como árabes, judeus, japoneses, chineses, etc. Todo esse cosmopolitismo também não se encaixa no conceito de latinidade. É uma palavra que não representa toda a diversidade que temos neste continente."

Fernando Solanas, cineasta argentino, terá seu filme Sur, de 1987, exibido no evento Olhares sobre a América Latina, realizado no Cinesesc, como parte da Mostra Sesc de Artes - Latinidades