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Ficção Inédita
O mais solitário dos filhos de Deus

Lourenço Cazarré

Senti imediatamente todo o drama: que miserável desamparo, que solidão ali se revelavam! Sua pobreza era grande, mas a sua solidão como devia ser horrível! Bartleby, O Escriturário (Herman Melville)

Quando chegamos, por volta das dez da noite, já encontramos os músicos sobre o tablado, lá no fundo, afinando os instrumentos. Era bar de solitários de meia-idade, solteirões e quarentonas encalhadas, viúvos e viúvas, desquitadas e divorciados, gente honesta, obscura e quieta, com cabeça e pescoço pouco acima da linha da miséria - amantes de tangos e boleros.
O bar ficava a meio caminho entre o centro da cidade, com suas largas ruas iluminadas, e a zona do porto, de ruelas estreitas e escuras.
Destoávamos do ambiente com nossos cabelos raspados de milicos e porque não tínhamos ainda no rosto as marcas fundas das desilusões arrastadas por muito tempo. Mas não estávamos ali por acaso; nosso estado de espírito nos tinha conduzido até lá. No dia seguinte, cedo, partiríamos para mais dois meses na guarnição perdida além dos cafundós do Judas.
De repente, um homem parou junto à porta e ficou observando o interior do bar.
As pessoas, que falavam em voz baixa, como que silenciaram; e os músicos, que já tocavam em surdina, diminuíram o tom.
Nos olhos escuros do homem que nos examinava brilhou aquela luz que se acende nos olhos dos náufragos quando avistam, ao longe, um navio, mesmo que seja um navio que não vai socorrê-los.
Enquadrado pela porta, tendo às costas a noite e também as gotas da chuva miúda, ele demorava-se no exame. Mesa por mesa. Pessoa por pessoa. Parecia estudar a disposição das cadeiras, do estrado dos músicos, do balcão. Mostrava interesse pelo vaivém do garçom, pela imobilidade do dono do bar junto à caixa registradora e pela pachorra dos músicos sobre o estrado. Dava a impressão de ter chegado de outra galáxia; observava tudo muito atentamente, deslumbrado.
O salão do bar era estreito e comprido. Tempos remotos, aquilo fora modesta casa de família. Depois, em rápida sucessão: bricabraque, ferragem e lavanderia. Nestas mudanças foram sendo derrubadas, uma a uma, todas as paredes internas, de tal forma que por fim só ficou aquela espécie de corredor. As mesas haviam sido distribuídas dos dois lados, separadas por uma estreita passarela. Ao fundo, à direita, o estrado dos músicos; mais atrás, à esquerda, o balcão. Desbotadas cortinas de tecido estampado escondiam as portas dos toaletes.
Baixo, magro, franzino, o homem tinha o condão de fazer aflorar a piedade mesmo naqueles corações mais duros, como o do velho Perez, o garçom, que lhe disse, quando esteve atendendo um casal lá na frente:
- Entre, hombre! Pague pelo menos una cerveza para se livrar de la lluvia!
O homenzinho dos olhos negros não deu mostras de ter escutado o garçom, que, resmungando, se afastou dali nos seus passos sofridos de pato.
Quem era o sujeito parado lá na porta, calado, com as mãos na cintura? O que fazia com que ele nos fosse familiar? De que recanto perdido vinha ele? O que o diferenciava de todos esses lamentáveis solitários que infestam as ruas mais escuras?
- Qual é a da figura? - perguntou o dono do bar, movendo o queixo em direção à porta. - Está querendo confusão? Ou será louco?
O garçom limitou-se a sacudir os ombros e depois se afastou equilibrando garrafa e copos na bandeja.
Passavam-se os minutos, a chuva aumentava lá fora. Notei que muitos no bar se inquietavam com o homenzinho estático que, rosto erguido, observava as poucas lâmpadas que espalhavam uma luz irreal, depressiva, suja, por cima das nossas cabeças, pelas mesas, pelos copos e garrafas. Uma luz que mais parecia existir só para realçar os escuros, as sombras.
Na mesa mais próxima dos músicos, um homem de olhos claros, grandalhão, mãos rachadas de trabalho duro, não escutava o que lhe dizia a companheira. Por entre as pálpebras semicerradas, mirava o vulto imóvel na porta, o pobre vivente que para ali fora tangido pela noite e pela chuva. Percebeu logo que ali, bem perto dele, estava uma destas indefesas e ridículas criaturas que os deuses zombeteiros engendram de quando em quando para comover o seco coração humano.
Então, como se o reconhecimento de sua especial condição humana pelo gigante dos olhos mansos fosse alguma senha secreta, o sujeitinho de roupa escura se moveu.
Seus passos eram elásticos, mais largos do que se esperaria de pernas tão curtas, e cuidadosos. Era como se tateasse com a ponta dos pés à procura de armadilhas. Os braços, trazia-os cruzados sobre o peito; as mãozinhas fechadas. Avançava pela passarela como alguém que teme uma cilada a qualquer momento: cauteloso, sobressaltado, nervoso, arisco.
Cruzou o bar, passou rente ao estrado dos músicos e, por fim, se deteve junto ao balcão. Sem dizer uma só palavra, pegou uma garrafa vazia e a mostrou ao homem que estava por trás da registradora.
O proprietário do bar estudou detidamente o rosto do sujeito que segurava a cerveja pelo gargalo. Procurava nele um traço de escondida pilhéria, mas nada encontrou além do sinete inconfundível da mais arrasadora solidão. Era um antigo comerciante que sabia ler nos olhos o que se passava por dentro das pessoas. A seguir, examinou a roupa do desconhecido e nada achou de errado nela, a não ser o fato de o paletó estar bastante gasto. Com um suspiro, deu o exame por encerrado: em todo caso, o tipo não tinha o jeito escorregadio dos que saem sem pagar a conta.
O dono do bar pensou em dizer-lhe que ocupasse uma das mesas, que fizesse o pedido ao empregado, mas não conseguiu pronunciar uma palavra. O máximo que pôde foi erguer o braço e apontar para o cartaz que estava pendurado ao lado da prateleira dos vinhos:
Este é um bar respeitado
Não jogue cigarro no chão
Nunca vendemos fiado
Nem atendemos no balcão

Por baixo dos cabelos molhados, o rosto pálido não esboçou reação. O sujeito franzino continuava a segurar, imperturbável, a garrafa. E assim permaneceu até que o dono do bar se deu por vencido e pegou uma cerveja na geladeira.
Então, o homenzinho tornou a cruzar o bar, perseguido pelos olhos de todos, até a mesa mais próxima da porta.
Impressionava-me acima de tudo o seu ar de fragilidade; parecia um menino de doze anos. Geram as mulheres todo tipo de homem, mas alguns são especiais porque nos inquietam mais do que o aceitável. Aquele, por exemplo, parecia ser o mais solitário entre os mais solitários filhos de Deus.
Enquanto permanecera com a garrafa na mão, pensei que se tratava de um louco ou de um surdo-mudo; depois, ao vê-lo insensível ao cartaz, que fosse estrangeiro ou analfabeto. Por fim, compreendi que, fosse o que fosse, era uma criatura singular, comovente.
Sentado, os pés mal tocando o chão, o homem trazido pela chuva e pelo vento, lembrava um menino tomando sorvete. Concentrado, bebendo de longe em longe um gole curto, olhava enfeitiçado para o negrume espesso da noite, negrume que só era cortado pelo cintilo fugaz das gotas de chuva sob a luz do poste. Daquela mesa, creio eu, ouvia melhor a chuva que a música, se é que escutava alguma coisa, se é que a chuva não é a mais impressionante das composições musicais.
Acendeu um cigarro. Tragava forte, como se aquela fumaça fosse-lhe mais vital que o ar. Ocorreu-me então que era, todo ele, seu corpo, uma mensagem, talvez incompreensível, mas uma verdadeira e importante mensagem.
Quando terminou a cerveja, retornou ao balcão. Sem uma palavra, pagou a conta com cédulas amarrotadas e guardou o troco sem conferir.
Enquanto se dirigia à porta, todos os olhares voltaram, já saudosos, a se concentrar na sua mísera figura, que logo seria tragada pela noite e fustigada pela chuva, deixando-nos mergulhados num sentimento de perda.
Parou no limiar.
Então ouvimos o tiro. O som breve e seco da morte. O estampido que não se confunde com nada, aquele estouro que penetra até pelo meio dos trovões.
O homenzinho foi sugado para a escuridão. Caiu morto dentro da noite.
Houve grito, correria. O primeiro a chegar à rua viu um vulto de mulher dobrando a esquina.
Aos berros, ordenaram que nós, milicos, que éramos jovens, fossemos atrás dela.
Corremos.
Era uma jovem mulher. Alta. O atormentado rosto borrado pela chuva, misturados nele o batom vermelho e o rímel negro das putas. Grandes mãos de lavadeira seguravam ainda o revólver. Não disse uma só palavra até que a entregamos aos policiais.

Lourenço Cazarré é autor, entre outros, de Isso Não é Um Filme Americano (Editora Ática, 2002)