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Presságios das peles, ou um sonho de computador

Vinícius Demarchi Silva Terra

- Papai, sonhei que era um computador...
"Seu" Ceto, como era chamado desde criança, respondeu:
- Você era um computador?
- É... eu era cheia de fios dentro, de um monte de fios, coloridos, e se mexiam como minhocuçus molhados, de um lugar para o outro... e daí eles se mexiam, lá dentro, e quem olhava para mim não me via.
- Mas você não era um computador?
- ... viam só a minha tela... eu era como um aquário, só que com uma pele, ao invés do vidro.
- Uma pele?
- Minha tela era uma pele semitransparente... e as pessoas só olhavam a minha pele, e ficavam ali, tentando olhar mais, e mais. E depois, já não conseguiam parar de olhar, e ficavam, ficavam... porque os meus vivos fios, por dentro, por detrás daquilo, eram fascinantes e horripilantes...
- E aí, o que acontecia?
- Todos ficavam paralisados... ninguém agüentava. A minha pele, ali, era infinita. Era "todas as peles do mundo", ao mesmo tempo. E os olhos de todos ansiavam por ver aquilo. E eram vertiginosamente iluminados por imagens, que não paravam de aparecer por um só instante. E eram tão seduzidos que não conseguiam nem piscar. E os olhos, e suas pessoas, já não suportavam esse "sem fim". Sem piscar, sem intervalos. Pois eram os intervalos que davam umidade à retina e permitiam a imaginação. E aí, sem poder, os olhos secavam. E, sóbrios de tanta secura, simplesmente paravam. De tanto espaço, sem tempo, se gastavam.
- Mas havia olhos especiais - continuou a filha - , olhos de aranhas... dedilhavam com suas patas na minha pele, parecendo tecelãs. Com as pontas, elas teciam imagens, sons, escritas, desenhos... tudo porque, ao mesmo tempo, tinham espelhos, simples espelhos nos olhos, que refletiam as imagens, refletiam sobre as imagens...
- Como o escudo de Perseu?
- É! E daí, elas ficavam junto comigo, compondo... e ninguém podia chegar, porque as tais maravilhas não podiam ser vistas, porque quem me olhava ficava paralisado...
- E como é que acabava o sonho, filhota?
- A gente trocava de pele. Porque elas queriam vestir a pele do mundo.
- (...) vá brincar, filhota. Essa sua cabecinha está precisando descansar...
E Geórgia foi. Ao mesmo tempo, chegava a mãe, dona Fórcis, que, mesmo com as mãos atadas pelas bolsas das meninas, tentava espalhar os cremes que passava na pele, os quais acabara de lembrar que não havia passado quando saíra do banho. Ao notar o olhar longínquo do marido, que não a ajudava com as bolsas, fez-se notar:
- Ceto! Me ajuda aqui com essas coisas, né? Queria ver se fossem três filhos homens e você é quem tivesse que os levar no vestiário!
- Ah, Fórcis, você nem acredita, ela está delirando...
- Não essa... segura as bolsas da minha outra mão, CETO!
- (...) tão pequenina, e cheia de idéias, a Geórgia.
- De quem você está falando, Ceto?
- (...)
- Ceto?!
- Diferente da tua pele, as próximas peles serão teias, Fórcis. Expostas no meio dos caminhos. Esgarçadas pelas subjetividades, esticadas pelo mundo, emaranhadas por torvelinhos efêmeros como relações humanas, as teias darão o aspecto encrespado do mar. Navegaremos em espaços não-físicos, mas espaços de relações. Quem sou eu?, perguntará nossa filha, Fórcis. "Eu" sou interface, experiência do vir-a-ser. Pois as teias de telecorpos nascem a cada momento... Sim, Fórcis, os cremes não mais servirão para proteger, ou hidratar, mas para meter em contato, ramificar a cútis, para controlar meu estado de permeabilidade, e diminuir os limiares de sensibilidade.
- (...)
- Tua pele enrugada não precisará de hidratante, Fórcis... ela enrugou-se de tanto esperar-se de espelhos...
(...) só hidratamos os olhos quando os abrimos e fechamos. Sim, Fórcis, é preciso ensinar o mundo a piscar suas peles.

Vinícius Demarchi Silva Terra é mestre em Educação e técnico do Sesc