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Entrevista
Ziraldo
Em entrevista exclusiva, o autor fala de sua carreira, de seu prazer pela palavra escrita e dos projetos realizados
Enredo Ziraldo. É assim que o escritor e desenhista brinca que quer ser chamado daqui pra frente. A responsável pelo título é a escola de samba paulistana Nenê da Vila Matilde, que o homenageou no desfile de 2003, sob o tema É Melhor Ler... O Mundo Colorido de um Maluco Genial. Na passarela, algumas das figuras que vêm cativando sucessivas gerações desde que o mineiro formado em Direito, realizando um sonho infantil, publicou a primeira revista de história em quadrinhos feita por um só autor: A Turma do Pererê.
Nessa época, no começo dos anos de 1960, seus ácidos cartuns e charges já eram publicados na revista O Cruzeiro e no Jornal do Brasil, ironizando as estruturas do poder e injetando novo ânimo na discussão política. Alguns anos depois, junto com humoristas como Jaguar e Millôr Fernandes, fundaria um dos tablóides mais importantes da história da imprensa brasileira, O Pasquim - um verdadeiro celeiro de profissionais do humor, dedicados à tarefa de destilar cautelosamente seu veneno contra o regime militar. O primeiro livro infantil surgia em 1969: Flicts, contando a história de uma cor que não encontrava seu lugar no mundo.
Apesar do grande reconhecimento que acumulou durante toda a carreira, a consagração de Ziraldo viria mesmo em 1980, com o lançamento de Menino Maluquinho na Bienal do Livro de São Paulo. A repercussão foi incrível. O menino "que tinha macaquinhos no sótão (embora nem soubesse o que significava macaquinhos no sótão)" tornou-se um ícone da garotada brasileira. Ganhou diversos prêmios, foi adaptado para o teatro, rendeu dois longa metragens e já vendeu mais de 2 milhões de exemplares.
Mas a inquietação do desenhista não permitiu que ele seguisse seu caminho de maneira macia. Continuou publicando para crianças e viajando o Brasil inteiro, defendendo bandeiras como a importância da leitura. Mas também deu passos ousados. Em 1999, lançou quase que simultaneamente as revistas Bundas e Palavra. A primeira buscava suprir um espaço de publicações humorísticas com um viés político. A segunda apostava num jornalismo cultural alternativo ao que se praticava no eixo Rio-São Paulo. Ambas tiveram as mesmas justificativas para seu fim: baixa vendagem, falta de anunciantes. Mas apesar das experiências quase desastrosas, Ziraldo não baixou a guarda em sua tentativa de estabelecer um jornalismo diferenciado. Em 2002 foi a vez de O Pasquim21 - uma espécie de reedição do cultuado tablóide, que chega às bancas semanalmente, trazendo nomes como Nani, Kemp, Luis Fernando Verissimo e Fausto Wolff.
Nesta entrevista, concedida em meio a uma das mais conturbadas épocas do ano para o autor - durante a Bienal do Livro do Rio -, Ziraldo fala da alegria de escrever para crianças, dos projetos realizados e, do alto de seus 70 anos, afirma que nem pensa em parar de produzir. "A aposentadoria é o maior inimigo do homem!" A seguir, os principais trechos:
Em uma entrevista há alguns anos, você afirmou que o segredo de seu sucesso é ser politicamente incorreto. Como explicar seu êxito nesses tempos em que se valoriza tanto o politicamente correto?
Não acredite em tudo o que um entrevistado fala. São, às vezes, jogos de palavras, frases de efeito. Não sou nem correto nem incorreto politicamente. Procuro ter a minha própria visão do mundo que me cerca. É bom ser original.
Não há dúvidas de que Menino Maluquinho - que já vendeu mais de 2 milhões de exemplares - representou um marco em sua carreira. Porém, poucos fazem as contas e constatam que você já não era um garoto quando o publicou, em 1980. Foi uma descoberta se tornar um escritor para crianças?
Fiz o Menino Maluquinho na altura dos 48 anos. Para muitos, fim de carreira. A partir dele virei, definitivamente, o que se chama autor infantil. Um horror! Mas acredito ter vivido os 48 anos anteriores me preparando para isto. Sem perceber. Já havia feito muita história em quadrinhos na infância, já havia feito as revistinhas do Pererê e já havia publicado o Flicts. E meus desenhos sempre foram narrativos. Custei a descobrir que nunca seria pintor.
O livro foi traduzido para quantos idiomas? Em que países ele fez mais sucesso?
Ele foi traduzido para o espanhol de vários países da América hispânica. No Uruguai ele é uma espécie de livro nacional.
Caratinga, a cidade de sua infância, parece ter sido fundamental para sua vida. Poucas crianças hoje em dia têm a qualidade de vida que pequenas cidades proporcionam. A reprodução desse imaginário em seus livros tem a intenção de despertar coisas que as crianças atualmente desconhecem?
Sei não. Acho que não. A segunda intenção explícita em cada livro que faço é a alegria de fazê-lo. Eu adoro ficar no meu estúdio fazendo o que faço. Adoro as descobertas que me ocorrem. Adoro trabalhar sobre elas. Que bom que posso fazer livros com esse material e viver disto.
Qual a sua opinião em relação ao fenômeno de vendagem Harry Potter?
No Brasil, isso é coisa de país a reboque de outras culturas. Menino que fica pelos cantos, longe das artes dos amiguinhos, lendo avidamente o Harry Potter ou jogando RPG, tem que deixar os pais muito preocupados. É melhor chamar um psicólogo.
Qual a importância da escrita para a sua vida, para a sua maneira de se relacionar com o mundo?
Hoje gosto mais de escrever do que de desenhar. Nunca esperava que isto me acontecesse. Escrever é mais difícil do que desenhar. Sou muito seguro com relação ao meu desenho. Quanto a cada frase minha, tenho sempre as maiores suspeitas: "Será que esta é a melhor maneira de dizer o que estou pensando?"
Em qual momento a escrita teve de auxiliar um desenhista como você a ser expressar?
Em nenhum momento. É claro que tenho deficiências de expressão nas duas modalidades de se comunicar - o desenho e a escrita - mas são dificuldades independentes, mais percebidas no texto do que no desenho.
Você já escreveu algum livro para adultos e não o publicou?
Não. Tenho um livro, uma novela que a indústria editorial brasileira e seu público acham que é para adolescente. Não é. É um pequeno romance mesmo, um exercício que fiz para saber se levava a cabo escrever um romance de verdade. Fi-lo.
Muitos afirmam que o grande romance de sua geração ainda não foi escrito. Você concorda? Ou, se escrito, qual seria ele?
O romance do Fausto Wolff, A Mão Esquerda, não chega a ser o romance de toda nossa geração de brasileiros, mas é muito próximo da perfeição em termos de forma e contemporaneidade.
Você sempre foi um sucesso junto ao público adulto, por suas charges e por O Pasquim. Agora é junto às crianças. Qual é o sucesso mais recompensador entre os dois?
Tem um versinho de um autor brasileiro que sempre cito com o enorme pesar de não saber quem era. Ele nunca se apresentou, nunca o vi repetido. É assim: "Ó, riso das crianças, rogai por nós!" Minha mãe dizia que olho de criança cura todos os males...
A revista Palavra foi uma experiência bastante interessante de um jornalismo cultural alternativo ao que se produz no País dentro desse gênero. Apesar disso, ela não se sustentou comercialmente. Na sua opinião, o que deu errado?
A mineirada não entendeu. Não se mancaram que devia valer a pena dar sustentação econômica ao projeto. Acontece. Em Minas, muitas vezes!
A revista Bundas foi muito bem recebida em seu lançamento, alcançando uma vendagem de mais de 100 mil exemplares em suas primeiras edições. No entanto, nas seguintes, esse número abaixou consideravelmente. Ainda há espaço para esse tipo de humor na imprensa escrita brasileira?
Acho que não. Os Cassetas também desistiram da sua revista. No entanto, insisto. Estou aí com O Pasquim21. A alguns brasileiros este jornal tem que interessar, meu Deus! Acreditava que pudessem ser mais dos que hoje o lêem. E vou lutando para realizar minha crença.
Porque você considera que as agências publicitárias e áreas de marketing das grandes empresas não dão a devida atenção a certas publicações de qualidade?
Estão gastando o dinheiro que têm com a televisão.
Sempre foi bastante questionada a destinação da verba publicitária do governo federal. Hoje, com o novo governo, há uma tendência em se privilegiar não somente as publicações de mais visibilidade, mas também as que contribuem para a qualidade do jornalismo brasileiro. Você acredita que, dentro dessa ótica, possamos assistir à consolidação de um novo jornalismo no País?
Que nada!
Uma frase que você repetiu muitas vezes em suas entrevistas é "ler é mais importante que estudar". Por que você acredita nisso?
Dá pra se jogar basquete sem dominar os fundamentos? Dá pra se ouvir o som de um coral de mudos? Como alguém pode estudar, com resultados consistentes, sem dominar o código que o conduz à informação?
Nos últimos anos, o combate ao analfabetismo foi uma das prioridades na área da educação. Você considera que houve uma evolução?
Não. Virou bandeira do Cristóvam Buarque, que sabe que um ministro que quer aparecer - e como ele quer!!! - precisa de uma bandeira.
Você tem críticas aos rumos da educação no País nos últimos anos? Você acha que as coisas podem mudar daqui para frente?
Podem. O Cristóvam é um cara sério.
Como você encara a importância das novas tecnologias aplicadas ao ensino? O livro pode perder importância nesse processo?
É o futuro que vai chegar com a maior naturalidade. Acredito que tudo passa pela palavra! Para fixação na memória, tudo passa pela palavra escrita. O livro é o depositário deste ouro, é a mina. Como você vai ter ouro sem ter mina?
Nesse último carnaval, você foi tema da Nenê da Vila Matilde: É Melhor Ler... O Mundo Colorido de um Maluco Genial. O desfile agitou o sambódromo. Como foi ver sua criação toda reunida num desfile daquelas proporções?
Até hoje, quando vou dormir, no escuro do quarto, enquanto o sono não chega, ouço a voz da multidão cantando: "Vem de láááá... de Caratinga pro cenário mundial..." Agora, como um Sir inglês, exijo que me chamem de Enredo Ziraldo.
O que te motiva a ainda produzir tanto? Aos 70 anos, você não pensa em se aposentar? Quem sabe uma vida mais tranqüila em Caratinga, menos preocupações...
Que vida tranqüila, cara?! A aposentadoria é o maior inimigo do homem!
Quais são seus próximos projetos? Há ainda um "grande projeto de vida" por realizar?
Grande projeto não há, não. Agora é só tirar leite do rebanho. Criei ovelhas como formigas!
O que você considera mais valioso na sua trajetória?
Foi criar a família que criei, minhas duas filhas, Daniela e Fabrizia, e meu filho Antonio. Lamentamos muito - e tanto! - que a Vilma tenha partido antes de tudo que ainda vai acontecer com suas crias.