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Ficção Inédita
Pornografia
Teixeira Coelho
O evento, a rigor, já havia passado, já acontecera - e no entanto, continuava passando, continuava se passando, continuava acontecendo. Deveria haver uma contradição nessa idéia de um evento que continuava a ser evento mesmo prolongando-se quase além de si mesmo: eventos acontecem em bloco, por assim dizer, no ato, num ato, num instante, num determinado instante. Não se prolongam em três, muito menos em cinco atos. Às vezes, na história, porém, os eventos se prolongam. Digamos que o fantasma de um certo evento histórico é suficientemente denso para dar a impressão de que o evento ainda está ali, acontecendo. Por isso quando Hannah sugeriu que fôssemos ao Muro ver o que estava acontecendo naquele dia, começo de dezembro de 1989, achei não apenas que não poderia recusar como entendi que me estava sendo oferecida a oportunidade de participar de algum modo da História, ainda que atrasado - como sempre. Não creio que, antes, eu pensara ir até o Muro, não gosto de histerias coletivas. Mas, quando Hannah deu a idéia de eu também ir até lá, de fazer a peregrinação eu também, acabou me parecendo natural. Hannah estava trabalhando na pré-produção do Festival, dali a três meses, e eu a encontrara naquele dia ao tratar das condições de exibição de meu curta. Naquele momento eu não pensava comparecer ao Festival em si e aproveitava uma viagem a Veneza para resolver a questão em Berlim. Festivais de cinema não me fascinam, quase tem um por cidade no mundo e todo mundo acaba um dia ganhando um prêmio; não significa nada. Mas, que o filme se mostrasse, enfim. Eu ficaria três dias em Berlim para fazer o que tinha de fazer e pronto. Na tarde do primeiro dia já acertara tudo com Hannah, que cuidava de tudo aquilo, e não tinha mais nada a fazer em Berlim, cidade que não conhecia e da qual não gostara à primeira vista. E, no final da tarde, Hannah me fez o convite. Ela me havia olhado até ali de um modo que parecia especial: um certo uso da mão sobre a minha e um sorriso que poderia sugerir alguma coisa. E eu retribuíra os sinais, sem saber muito para quê. Depois da ida ao Muro iríamos jantar e, depois, pensei que Hannah pensava, alguma outra coisa. Eu não tinha muito ânimo para nada, nem para o Muro, nem para o jantar, nem para o que se seguiria. Mas não tinha motivo para recusar. Apesar do nome, Hannah era palestina e rapidamente me disse que ela tampouco gostava de Berlim, quando fiz uma observação nesse sentido. Na tarde do dia em que desembarco de um avião, fico zonzo por falta de sono, vontade de sumir do mundo. E ir com uma palestina com nome de judia ao Muro de Berlim que já havia caído, pensando num festival que não me interessava (ou diante do qual eu fingia estar desinteressado) me parecia demasiado complexo e complicado para um dia só, para aquele dia.
Hannah disse que no Portão de Bradenburgo haveria muita gente, sugeria que fôssemos por outro lugar, ela conhecia uma pequena rua - um nome de todo insignificante para mim: Clara Zetkin Strasse - ao lado do prédio do Reichstag, de onde teríamos uma boa visão. Para mim não fazia diferença. Há uns cinqüenta metros do lugar para onde ela apontava, ouvimos marteladas seguidas, insistentes - fora de contexto, eu diria, se elas não estivessem totalmente dentro de um contexto, ali. Eu nem sabia que eram marteladas: Hannah disse que eram os turcos com suas pequenas picaretas de quebrar gelo arrancando pedaços do muro para vender a 5 e 10 dólares, conforme o tamanho. Os turcos, ela disse.
Pela primeira vez eu vi então o Muro. Já estava quase escuro. De longe percebemos uma escada encostada no Muro, levando até seu ponto mais alto. Não havia ninguém perto, o que Hannah considerou, primeiro, excepcional e, depois, curioso. Sugeriu que subíssemos. Ela foi na frente. A escada era nova, de metal, deveria ser de alguém que logo apareceria para cobrar, eu disse. Quando pus a cara por cima do Muro e olhei para o outro lado, a primeira coisa que vi foi uma equipe de televisão, luzes, câmera, três ou quatro pessoas. Eles também nos viram. Falaram algo. Meu alemão dá apenas para pedir um copo de água, Hannah foi quem respondeu. Eles tinham uma pequena grua e queriam nos filmar subindo a escada. Pediam que voltássemos para trás e tornássemos a subir a escada enquanto eles se posicionavam no alto do Muro para nos filmar como se estivéssemos subindo pela primeira vez, tomando o Muro. Hannah quase ficou animada, me disse para descer e esperar em baixo que a equipe desse o sinal. Alguém da equipe disse que deveríamos mostrar interesse e surpresa. Hannah não via problema. Eu disse que não faria nada daquilo. Hannah disse que a equipe não queria gravar a imagem de uma única pessoa subindo a escada, tinha que ser mais gente. Falei para ela esperar por alguém mais. Ela disse que esperaria, então. Um grupo se aproximava. Eu disse que, enquanto isso, ia andar por ali. Acabei não vendo nada do outro lado do Muro, afinal.
Algumas dezenas de metros à esquerda haviam aberto uma grande brecha no Muro. Perto do buraco, do lado ocidental, uma placa dava o nome e a idade, 18 anos, de alguém que havia sido baleado pelos guardas do outro lado ao tentar fugir atravessando um rio e o Muro. Dezoito anos. Fiquei parado um longo tempo olhando a placa, imaginando o que se passou na imaginação de alguém de 18 anos no momento em que tentava escapar e no momento em que provavelmente sentiu ter sido atingido. Eu olhava a placa demoradamente, querendo ver algo nela. Olhei a placa longamente. Ao lado, o Muro cortava uma rua ao meio e prosseguia ao infinito, me parecia, à luz inexistente do fim de tarde. Pela primeira vez eu imaginei o Muro.
Jantamos num restaurante deselegante perto dos restos de uma torre de igreja semidestruída durante a guerra e que mantinham naquele estado de espectro, não longe da sede do festival. Na ida para lá, mesmo não sendo caminho, passamos diante da entrada do Zoo para ver, Hannah queria me mostrar, uma escultura, uma instalação de um artista contemporâneo: a calçada parecia ter implodido de dentro para fora e pedaços pontiagudos do concreto que falsamente formava o piso da calçada apontavam para o céu. Era uma obra de arte contemporânea, Hannah disse, como se eu não pudesse ou não quisesse reconhecer aquilo como obra de arte.
No apartamento dela, mais tarde, muito pequeno - ela disse que estava ali só para trabalhar no festival e que não continuaria em Berlim depois, mas que não voltaria para a Palestina; não perguntei para onde iria - enquanto me servia um uísque, que não costumo beber, ela me perguntou baixo, ao ouvido, sorrindo, um hálito quente, agradável, se eu lhe diria coisas sujas ao ouvido, na cama. Naquele instante, com um cansaço que eu não poderia ter antecipado, me dei conta de que já havia superado aquela fase. Ela era medianamente atraente, como todo o mundo, mas eu não sentia nenhuma vontade de nada, nem de dizer-lhe coisas sujas ao ouvido, nem nada. Disse que não conseguia manter os olhos abertos e fui para meu hotel que, pela aparência, fora construído nos anos 50 ou 60: uma grande caixa retangular de concreto com quartos retangulares que pareciam pré-fabricados e encaixados uns sobre os outros. Dormi mal. A um certo momento pensei ter ouvido marteladas seguidas: deve ter sido pura imaginação.
Na tarde seguinte Hannah fez questão de me levar para o lado oriental. De metrô. Passar pelos guardas do que restava da Alemanha Oriental me trouxe à memória intranqüilos encontros com a polícia da ditadura doméstica, lá em casa. Descemos numa zona feia, os prédios com suas fachadas ainda mostrando os sinais das balas, milhares, disparadas durante a luta pela ocupação da cidade. A sensação perfeita, convincente, de que tudo havia acontecido ontem, que aquele era o dia seguinte. Hannah disse que seria agradável passear pela avenida Unter den Linden. Quem sabe tomar um café, antes de atravessar o Portão de Brandenburgo voltando para o lado ocidental. Tomamos café numa mesa na calçada, olhando os ocidentais andando livremente por ali ao lado dos orientais, todos sorrindo. Eu estou na Unter den Linden, fiz questão de me convencer. Um tipo que Hannah conhecia sentou-se à mesa sem ser convidado. Barba por fazer, cabelo negro espetado para cima, blusão de couro. Hannah disse que era um oriental. O sujeito estava com a namorada. Falava alto, gesticulava. A namorada fumava alguma coisa forte. Eu não seguia o que diziam. A certa altura, o que para mim pareceu a clássica situação do "de repente", o tipo tirou da jaqueta um estilete fino, de aço polido, pôs a língua para fora e enfiou o estilete nela, deixando-a pendente da boca. Hannah não pareceu surpresa. A namorada do tipo disse "Oh, stop it!", como quem diz para um cachorro parar de fazer alguma coisa.
No caminho de volta para o hotel, Hannah quis me mostrar outra "escultura", um grande arco de fio de aço estendido sobre a rua, indo de uma calçada à outra da Ku'damm, a avenida chic. Um grande arco retesado, com a corda a ponto de estourar e provocar não sei que terrível acidente ou ação programada. O tipo da língua furada (já havia guardado o estilete) apontava para os desengonçados carros Trabant dos moradores do lado oriental desfilando pelo lado ocidental e parecia deles escarnecer. Sem que o casal ouvisse, Hannah me disse que faria um pequeno jantar naquela noite e que levaria uma amiga, perguntou se eu me importava. Não esperou a resposta. Disse em seguida, sem mais, que era bissexual e que a amiga era a namorada atual dela; perguntou se eu me importava. Tudo bem, eu disse. Na vitrina de um bar vi o anúncio de uma exposição de um artista brasileiro, que naquele momento plastificava peças de roupa. Não sabia que andava por ali.
A namorada de Hannah era uma linda negra, do Senegal, ela disse. Depois do jantar, na verdade uma pizza levada debaixo do braço e que comemos com vinho italiano de segunda, Hannah sentou-se com a amiga no sofá e começou a acariciá-la por dentro da calça larga. Olhava para mim. Hannah me perguntou se era verdade que para muito ocidental a mulher negra nunca estava pelada mesmo estando nua, porque a cor da carne era como um véu que lhe cobriria a nudez, e que se muitos ocidentais não iam para a cama com as negras não era por racismo, mas por uma questão de pele, ela disse. Eu olhava pela janela, para a torre semidestruída da igreja, enquanto pensava no que deveria, poderia ou queria responder. Daquele apartamento, eu poderia nem imaginar a existência do Muro, se eu quisesse.
Teixeira Coelho é autor, entre outros, de As Fúrias da Mente (Editora Iluminuras, 1998).