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Teatro 2
O autor vivo
por Fauzi Arap
Em texto exclusivo, o autor e diretor teatral faz uma reflexão sobre a dramaturgia brasileira e o seu trabalho na adaptação de A Paixão Segundo G.H., em cartaz no Sesc Belenzinho
Minha carreira como diretor, desde o início, na década de sessenta, esteve centrada em textos nacionais. Depois de montar Dois Perdidos e Navalha na Carne, no Rio, em 1967, me tornei, ao lado de Plínio Marcos, uma referência para os jovens autores. A chamada nova dramaturgia, formada por José Vicente, Antônio Bivar, Leilah Assumpção e Isabel Câmara, veio contrapor-se a dramaturgos consagrados como Nelson Rodrigues e Jorge Andrade, e aos formados no Teatro de Arena, como Gianfrancesco Guarnieri e Vianninha. A nova dramaturgia, de alguma forma, antecipava a de hoje, variada e democrática na forma anárquica de se manifestar.
Também os shows que dirigi, desde sempre, eram uma espécie de teatro, pelos roteiros estruturados a partir das letras, e não das músicas, subvertendo a prática dos musicais. Minha última direção para Maria Bethânia foi o show Maricotinha - Ao Vivo, que está sendo lançado agora em DVD pela gravadora Biscoito Fino. Minha produção recente inclui a direção do monólogo Kerouac, com Mário Bortolotto no personagem-título, ele que é apaixonado pelo tema. Está pronto e deve estrear no segundo semestre. Tenho na gaveta textos meus inéditos, como O Mundo é um Moinho, que deverá estrear em outubro de 2003, no Rio, numa produção da Casa da Gávea, escolhida pela atriz e produtora Vera Fajardo, com ensaios previstos a partir de agosto. O texto trata das difíceis relações entre a economia e a produção cultural, com atores e produtores correndo atrás de patrocínios para viabilizarem seus projetos, e o nome, é claro, é homenagem ao gênio do sambista Cartola.
Desde sempre, tenho alternado a montagem de textos meus com os de outros autores. Leo Lama, Leilah Assumpção, Juca de Oliveira e Mário Bortolotto estão entre os que encenei mais recentemente.
Em 1987, criei, ao lado de Chico de Assis, um seminário de dramaturgia dirigido a atores, inspirado naquele do velho Teatro de Arena. A prática do Arena, comandada por José Renato e Augusto Boal, formou atores polivalentes, que não se limitavam a representar, mas também a escrever e a pensar a realidade. Nelson Xavier, Flávio Migliacio, Vianninha e Guarnieri são alguns daqueles que, formados na época, além de produzirem peças e filmes, tornaram-se melhores atores por isso. Até hoje Chico de Assis continua seu seminário batizado de Semda - Seminário do Arena, voltado para atores, e um de seus primeiros frutos foi o lançamento de Noemi Marinho como autora, com sua Fulaninha e Dona Coisa, em 1988.
Das funções teatrais, o autor é o único condenado a um isolamento, por lidar com a palavra escrita, mesmo que se destine a ser falada. Isso ajuda a compreender o apego que os apenas autores têm à literatura de seus textos. A falta de intimidade com o dia-a-dia dos ensaios faz com que muitas vezes sejam invasivos ou inoportunos, e que alguns diretores não queiram saber de suas presenças, preferindo encenar clássicos ou os já falecidos. O autor ainda vivo sofre. Mas, sem dúvida, sua participação nos ensaios pode ser enriquecedora para todas as partes. Desde sempre, foi assim em qualquer parte do mundo, em todos os tempos. Não se forma um dramaturgo se o condenamos à reclusão, só com seus fantasmas.
Num período recente, a hegemonia do encenador, no Brasil, tentou usurpar do autor seu papel, e ajudou a difundir a mentira da inexistência de uma dramaturgia aceitável. Cheguei a aconselhar alguns, em início de carreira, como Samir Yazbeck, a montarem seus próprios textos, porque, se não o fizessem, ninguém o faria por eles. Existe hoje também a dramaturgia de grupos que conseguem criar coletivamente, o que enriquece o panorama da dramaturgia. Outros, como Mário Bortolotto e Bosco Brasil, que recentemente têm merecido um pleno reconhecimento, estão na estrada há muitos anos, às suas próprias custas.
A maldição que pesa sobre o autor vivo parece prestes a terminar, agora que começam a pipocar por toda parte, projetos centrados na dramaturgia. Leituras públicas e debates são uma forma de propiciar que o autor enxergue equívocos que só a relação viva com o público pode revelar. O autor necessita de um interlocutor. Os momentos mais fecundos de Gianfrancesco Guarnieri contaram com José Renato, Boal e Flávio Rangel, diretores de suas peças, como parceiros.
Mais que a censura, produtores e diretores foram responsáveis pela chamada crise na dramaturgia, pelo conforto de apostar no certo, em sucessos que chegavam do exterior prontos e com mídia garantida, além de tudo. Um fato importante que muitos ignoram ou esquecem é que as edições de textos estrangeiros que nos chegam incorporam as descobertas e cortes feitos pelo diretor, no processo de ensaios da primeira montagem.
Uma das vantagens da autoria é a possibilidade de uma autonomia de vôo, livre de amarras econômicas ou comerciais. Assim, quando adaptei A Paixão Segundo G.H., o fiz por puro prazer, e só. E estou feliz com o sucesso da peça, em cartaz no Sesc Belenzinho. Louve-se o Sesc e o Centro Cultural Banco do Brasil, que viabilizaram a apresentação em São Paulo e Rio, pois, como a encenação foge de padrões convencionais, não seria viável sem esse tipo de apoio. É bom saber que existe um público ávido por espetáculos diferenciados que desafiem sua percepção da realidade. A atriz Mariana Lima, comandada pela batuta do maestro e marido Enrique Diaz, arrebata o público com sua performance e recebe o reconhecimento pleno de sua excelência como atriz. A temporada avança até junho e, quem sabe, julho, e me enche de alegria a reposta quase unânime e apaixonada que teve o espetáculo. Isso se deve à entrega e coesão de toda a equipe comandada por Diaz, e à paixão com que o espetáculo foi construído.