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Ficção Inédita
Izildinha fez um café e tudo continuou igual

A calcinha torta de um lado e a boca também torta do mesmo lado. No espelho do banheiro ela passou um pente no cabelo - tem de parar de pintar, vai cair tudo - depois de ter fechado a porta do armarinho da pia. Foi assim, primeiro ficou olhando enquanto tirava a camiseta suada, aí reparou que a calcinha e a boca estavam tortas para o mesmo lado, dois viés, duas bainhas tortas, e no meio, ela, um simples vestido de alguém que ela já fora e que devia estar por trás daquela ali, de bainhas tortas.
Aí tornou a abrir o armarinho para pegar o pente, fechou e deu uma passada, sempre melhora, não melhorou. Fazer um tratamento com abacate e mel, dizem que melhora. Ela foi para a sala e sentou-se na poltrona.
No bar foi assim: hi, hi, e mãozinha dada em cima da mesa e mão boba-esperta embaixo da mesa e mais hi, hi, e olha só aquela ali, e mais alguma coisa que tinha acontecido durante o dia, e mais hi, hi, e tome chope, até que o assunto veio: "Escuta, claro, tem coisa que eu faria diferente, se fosse hoje, quero dizer."
Mas aí Izildinha ouviu um mosquito e é ruim de ficar parada, uma panaca, um pudim, ficar lá parada na poltrona da sala escura, só a luzinha do néon do motel em frente, madrugada de cidade, madrugada qualquer, madrugada de cidade, madrugada qualquer, ela deu um tapa no ar, vai ver pegou, sorte também existe.
Mas, e o bar? No bar, como se no bar pudesse ter sido diferente do resto todo, não foi.
Mas o mosquito. E ela foi catar a espiral. E a pochete dele jogada ali na mesinha perto da porta, deve ter entrado e jogado na mesinha, e ela foi olhar o que tem dentro, no canto, dentro da caixa de fósforo, ele não ia ficar sabendo, tudo escuro ainda, a porta do quarto fechada. Mas nada. Já houve vezes em que havia coisinhas, restinhos, mas desta vez nada e então ela seguiu até a cozinha para pegar o fósforo -- o da cozinha, a pochete do mesmo jeito que estava, intocada --, não que adiantasse muito, espiral.
Calor desgraçado, o suor fazendo caminhinho por baixo dos seios e a camiseta de dormir toda suada ainda na pia do banheiro, podia virar a máquina de lavar, mas o barulho com certeza iria acordá-lo e aí não. Depois, quando clarear. Aí sim, a folha de alface para a tartaruga, o gato que ia começar a miar, regar o trevo de quatro folhas, virar a máquina. E mais o café e o oi, oi, seco e seco ficará por mais dias e dias, outra vez.
"Trevo na cozinha?"
"É, uai, para o arroz não sair papa, para o bolo não solar, para o café não ficar aguado."
"Ah, então planta mais."
E riam.
Mas o caso é que ela tinha querido mesmo saber: "Que coisas?"
"Como, que coisas?"
"Que coisas você faria diferente?"
E aí foi ladeira abaixo: "Você sabe que coisas."
"Mas quero que você diga."
"Não começa, Izildinha."
Não começa, não começa... O problema não é de começo, imagina, um começo, como se desse para pensar em começo. O problema é de continuação. Não continua, Izildinha.
Mas vai continuar. Primeiro vai ser a alface, depois a máquina com a camiseta dentro que vai estar seca, bobeia antes das nove, e aí é dobrar para a próxima noite.
Nenhum cachorro. Tem sempre um cachorro de madrugada mas desta vez nenhum, o silêncio de fato uma parada, como se desse para existir, uma parada, stop (uma vez ela escutou uma mulher falar para um menino no shopping: "Stop, Ricardinho." Chique pacas). Mas sim, tudo parado, a única continuação vindo devagarinho no feitio de uma fome. Café? Depois a decisão, ainda dava para ficar ali, panaca, pudim, enquanto o vermelhinho da espiral ejaculava devagarinho o branco da fumacinha.
Vantagem adicional de café: melhora o gosto da boca. Izildinha falou baixinho, mais para descolar o lábio de cima do lábio de baixo, o torto, mais para ouvir alguma coisa, mesmo que um não-cachorro.
"Devia ter escovado os dentes outra vez, já que estava no banheiro."
Batata portuguesa, lingüiça frita na cebola e pão cortado, dois tira-gostos pedidos de uma vez só, o que queria dizer que ele estava a fim de gastar, o corpo jogado um pouco para trás na cadeira, esparramado, e dois chopes, por favor. E depois de uma pequena pausa: "Capricha nesta tirada de espuma." O que queria dizer: "Garçom, eu estou vindo aqui pela primeira vez mas sou freguês experiente, e não um otário que só sai de casa em sextas e sábados como esses outros aí das outras mesas." A cadeira tinha feito rrrrr no chão de cimento, toalha de papel, umas lampadinhas. "Está na moda", disse ele, aqui.
E se ela queria pastel também.
O jeans já estava apertado, mas a vida tem dessas coisas, às vezes tem de comer porque não adianta ser magra, uma ninfa, e não ser boa companhia e ela pegou mais uma batatinha e ele dizia:
"Já te disse isso uma porção de vezes, tem coisas que é claro que eu faria diferente mas você tem de entender o contexto, o cara que não faz essas coisas fica até malvisto, todo homem faz, é normal."
No fim da tarde, na hora em que ele disse "vamos dar uma saída", ela respondeu: "É, de repente", com cara de quem ia, mas sem muita vontade, nada de oba, nããão, nada de oba. Era a resistência dela, nem tão pudim e panaca assim. Foi assim, do tipo: "Podemos até ir, se você fizer questão." E aí foi trocar o tênis pela sandália de salto alto. Só assim, para não dizer que não tinha se arrumado. E o sutiã que levantava mais. E a blusa estampada daquele tecido que esquentava mas, paciência, o bar era aberto, tinha dito ele, não ia fazer muito calor, e ela disfarçou e enxugou a testa com a mão.
"Que coisas?"
Porque a lista era enorme, e aquele dia assim assim, e aquele outro, quando ele sumiu, e o lance daquela outra viagem, aquela primeira, e o papelão naquele dia na casa do pai dele, e tinha muito mais, mas era difícil lembrar assim de tudo de repente e daí a pergunta, que coisas, porque era bom que ele dissesse, ah, pois é, aquela coisa tal, pois é, foi mal. E também porque perguntando, que coisas, havia sempre a possibilidade de vir mais coisa ainda, que ela ainda nem sabia mas que devia haver.
E ela achou que ia colar. Ou não achou, mas quis arriscar. Afinal, várias horas de dengo, a mão, as roçadinhas, olhares, podia ter colado, mas não colou.
Seis chopes, ele. Três, ela. Por que ela estava contando? Ele não tinha nada que beber tanto se iam conversar. Então ela sabia que eram muitos mesmo antes de ele levantar, quando ficou claro que eram seis, oito, duzentos, porque bambeou. Mas se segurou no espaldar da cadeira e falou, vai tomar no cu, e aí se virou em direção ao banheiro.
Ela, de nome Izildinha, que era o nome de sua avó, continuou na mesma posição que estava, mas com o radar, alô, alô, radar operando!, sim, na mesa atrás, a mais próxima deles, a balbúrdia continuava, ninguém tinha ouvido. Deu mais um golinho e lá ficou até que ele voltou, a boca dele já ensaiando um meio sorriso de quem ia continuar: "Você também, hein, pára com isso, vamos ficar numa boa." Mas quando ele sentou, ela se debruçou para ficar bem perto do ouvido dele e falou na sua melhor voz de moça fina: "Meu nome é Izildinha, o mesmo da minha avó", se apresentava ela para os amigos dele, com a mesma voz de moça fina, a mão estendida, mole. Ele sentou e ela disse bem baixinho, tão fina, que ela tinha continuado ali não por ser uma panaca, um pudim, mas só para o garçom não ficar de perrengue achando que eles eram dois trambiqueiros, que um ia para o banheiro, a outra rumava para a porta, e babau pagamento e que então ela ficou esperando ele voltar do banheiro só por isso, pelo garçom, mas que agora ela ia embora, porque ela tinha educação de família, ela, e não ia ficar ali com um cara grosseiro como ele, que ela não era desse tipo de mulher. E já meio levantada da cadeira, acrescentou:
"Vou embora e, quem sabe, fazer o que você sugeriu."
E ele disse: "Bom proveito."
E na hora mesma que ela se virava em direção à porta ele chamou: "Garçom! Mais um aqui." E ela foi, a rua como sempre, impressionante como rua continua sempre como sempre, foi fácil seguir e pela Senador Vergueiro ela foi andando, noite calma, quente, mas o ouvido ligado no barulho do motor ou escapamento, sei lá, do carro dele, a distância, mas neca. Ela olhou todas as vitrinas para que ele, chegando de carro, parando no acostamento - ei, entra, deixa disso - não achasse que ela estava esperando que ele chegasse de carro, diminuísse a marcha e dissesse: "Ei, deixa disso." Não chegou. E quando ele afinal chegou, a porta da casa, bam, ela concentrou o olho no filme de legenda. Não gosto de dublado, costumava dizer ela, que tinha feito curso, que entendia, e às vezes ela se virava depois de rir sozinha e olhar para a cara séria dele: eles não traduziram direito.
E depois disso tudo, como sempre ele roncou e levou os safanões de praxe, porque isso ela já tinha estabelecido e bem estabelecido, que roncar não ia ser problema só dela, que era problema dos dois, e se ela acordasse, ele também ia acordar. E mais vários safanões até que ele virou, menos assim. Mas aí já a camiseta estava toda suada e a fome, não era bem fome, um certo enjôo, muita gordura no provolone frito, não devia ter comido. E aí foi isso. Agora era fazer um café, arranjar um pedaço de pão para esquentar no forno, acender outra espiral que essa já estava acabando, ir comer na poltrona em frente à janela e à luz do néon, esperando o dia clarear, o oi, oi, seco por mais vários dias, saco.
Latidos, longe. Um cachorro. Acabou que pintou um cachorro.

Elvira Vigna é autora, entre outros, de Coisas Que os Homens Não Entendem (Companhia das Letras)