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O prazer da arte

por Olívio Tavares de Araújo

Há ou dois ou três anos, estive no ateliê de um artista que hoje deve estar passando um pouco dos 40. A certa altura da conversa, ele chegou a uma pergunta-conclusão: "Você está dizendo que eu posso voltar a ter prazer ao fazer isso?" Não se tratava de uma brincadeira. Tratava-se, sim, da muito honesta reação de uma geração à qual se sonegou, com muito encucamento, muita competitividade, a natural desorientação de uma época de crise, e certa aleivosia, o direito de seguir intuições e olhar amorosamente para a arte - a sua e a dos outros.
Acabo de publicar um livro intitulado O Olhar Amoroso, contendo textos sobre arte escritos ao longo de 25 anos. O título é, evidentemente, uma declaração de princípios, e tem a ver com aquele prazer que foi perdido. Ao longo de sua história, a arte nunca deixou de ser também um ato de conhecimento e reflexão sobre o homem e o universo, e, portanto, tratou muitas vezes de angústias e momentos dolorosos, pessoais ou coletivos. Mas nunca deixou de, ao mesmo tempo, fornecer-nos um tipo de emoção absolutamente positiva, mesmo quando mergulha nos mais profundos abismos da existência. Não é por masoquismo que pagamos para assistir ao radical pessimismo dos filmes de Ingmar Bergman - e a verdade é que sempre saímos deles decididamente reconfortados e melhores. Aristóteles (que já o percebia muito bem) deu a esse mecanismo o nome de catarse.
Mas atenção: o prazer artístico tampouco é da mesma natureza dos prazeres do dia-a-dia. A obra estabelece com o espectador algo do jogo - e em inglês, francês e alemão, os mesmos verbos servem para dizer jogar, tocar um instrumento ou interpretar uma peça teatral. Estabelece conexões também com o lazer: uma ópera de Mozart, que hoje constitui uma das experiências mais elevadas do espírito, fazia parte dos divertimentos da corte austríaca do século 18. Mas não são o jogo e o divertimento que fazem da arte arte; trata-se, essas, de funções colaterais. Um dos grandes equívocos do final do século 20, repetido incansavelmente em grandes exposições e certames, foi confundir o local da arte com o do entretenimento. Vou-lhes contar mais um fato. Há vários anos, vi uma bienal através da lente de uma câmera, pois me competia filmá-la. Percebi então que as pessoas passavam, às centenas, diante das obras nas paredes; pouquíssimas paravam para olhá-las. A bienal se tornara apenas mais um point da cidade.
O prazer artístico e o olhar amoroso para a arte exigem certo grau de intelegibilidade desta. Assim como não podemos fruir um poema em chinês, não podemos fruir plena e devidamente uma pintura que utilize um código desconhecido. (É verdade que os observadores mais afoitos ousam enunciar juízos sobre arte com uma ligeireza que não teriam diante do poema em chinês.) Ainda que não-verbal, não-conceitual, toda arte mobiliza sempre uma linguagem, até quando, em situações extremas, recorre, por exemplo, ao acaso. Este nunca é absoluto, pois as latas de tinta não se jogam nas telas por si mesmas; segundo, a própria proposta é, em si, significativa. Pode traduzir o desencanto, a renúncia do artista à eficácia de sistemas mais articulados, ou pode conter suas propostas deliberadas de investigação dos limites da expressividade.
Investigar os limites da arte tornou-se uma das funções mais típicas da própria arte, ao longo do século 20, desde que Marcel Duchamp enviou para um salão um mictório, inventando o ready-made e fundando uma revolução que não dá para discutir neste texto. E uma das funções da crítica, sem a menor sombra de dúvida - função que ela teve sempre, mas se tornou mais premente, desde então -, deve ajudar a compreender o que se passa na e por detrás da obra, que mecanismos ela agencia, quais seus objetivos, a que visões do mundo corresponde. Lançar luz em torno dela, já que o artista, em seu natural afã de criatividade, está permanentemente inventando novas linguagens.
Por isso, assim como contra a falta generalizada de amor, tenho-me rebelado contra textos sobre arte que parece não quererem explicar nada - e sim aumentar a confusão. O discurso ininteligível constitui uma multimilenar estratégia de exclusão e domínio, um jogo fascistóide. Acontece no pajé e no xamã, que utilizam uma algaravia inventada para que a tribo acredite que estão falando com os deuses, aconteceu no oráculo de Delfos, no latim da Igreja Católica, na retórica da Contra-Reforma, nos delírios verbais de um Lacan - o exemplo mais contundente. Acontece também em textos sobre arte que, em última instância, querem é reafirmar o espaço e o poder de quem os escreve. Por compreensível insegurança, quem os lê acaba acreditando que temas complexos e abordagens profundas exigem mesmo tais pirotecnias mentais e "palavrais". Mas não é verdade. De tudo se pode (e se deve) tratar com clareza e humildade. A obscuridade e a complicação manipulam e mistificam.