Uma das principais referências do samba paulista, o compositor, intérprete e orquestrador Eduardo Gudin fala sobre suas influências e do samba no eixo Rio-São Paulo
"São Paulo é o túmulo do samba." Essa frase, como toda frase de efeito, só é boa como frase de efeito. Talvez ela até tenha um certo fundo de verdade em alguns aspectos. Mas não podemos nos esquecer que mesmo Vinicius de Morais, autor da frase, acabou fazendo sucesso no mundo inteiro com um compositor de sambas que nasceu no Bom Retiro, o Toquinho. O samba paulista ainda é matéria pouco pesquisada. Em São Paulo sempre houve mais discriminação contra esse tipo de manifestação popular. A manifestação dos negros paulistas não teve a mesma liberdade da dos negros do Rio para se desenvolver.
Não se pode tratar o samba do Rio e de São Paulo como coisas antagônicas. Não se pode comparar, a produção é desproporcional. O Rio de Janeiro é a terra da MPB, não só do samba. Foi lá que a música brasileira aconteceu de maneira mais vigorosa. Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré, Anacleto de Medeiros, desde o fim do século 19; Noel Rosa, Pixinguinha, Ari Barroso (que era mineiro radicado no Rio), na primeira metade do século passado. Não dá para comparar, é covardia.
Nas ondas do rádio Acho que não se pode esquecer a influência do rádio no universo musical brasileiro. Enquanto as manifestações populares de raiz estavam acontecendo, o rádio já levava a todos os cantos do País a música industrializada produzida no Rio de Janeiro. E os sambas assim se espalharam nas vozes de intérpretes conhecidos, como Linda Batista, Donga, Orlando Silva, Carmen Miranda e muitos outros. É muito difícil identificar as origens precisas da música de Geraldo Filme, considerado um marco do samba de raiz paulista. Isso tanto é verdade que Seu Nenê da Vila Matilde disse que os primeiros desfiles da Nenê foram com as músicas de carnaval do rádio. O samba do Rio de Janeiro impregnou o Brasil inteiro. Como explicar que Lupicínio Rodrigues tenha feito um samba como Se Acaso Você Chegasse? Ele era gaúcho. A idéia de samba de Noel, Ismael Silva, Ari Barroso e Dalva de Oliveira - que tocavam no rádio - acabou se espalhando. A forma do samba como o conhecemos, para mim, nasceu no Rio de Janeiro, tendo como origem primeira a Bahia. Aquilo é um tipo de música. Não há como desconsiderar a influência do samba do Rio de Janeiro na formação do samba paulista. No entanto, há compositores de música brasileira ótimos em São Paulo, tão bons quanto os do Rio, mas em número muito menor. Há o Zequinha de Abreu; o Vadico, que compôs muitas músicas com Noel; Garoto, um marco da música brasileira moderna; Adoniran, que fez um samba impossível de se fazer em outro lugar; Germano Matias, que faz um samba de malandro paulista e é um dos artistas mais bem resolvidos deste País.
Escolha musical Aprendi a fazer samba ouvindo disco, com o violão executado por Paulinho Nogueira, Baden Powell, Luis Bonfá. Na composição, a maior referência era Tom Jobim. Essa geração nos remetia também a compositores mais antigos. Conheci Pixinguinha porque Baden tocava Pixinguinha. Um dia, quando tinha uns 17 anos e algumas músicas gravadas, um tio me trouxe um disco chamado Roda de Samba (1965), da Voz do Morro - que contava com Zé Kéti, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, entre outros. Foi aí que tomei contato com um samba do Rio que era diferente, localizado na fronteira do morro com a cidade. Para mim foi um marco. No começo da minha carreira, havia uma certa desconfiança em relação ao meu trabalho. "Esse cara não é negro, fez faculdade..." É preciso muito tempo para provar que se tem talento para fazer samba sem usurpar ninguém. Por fazer esse tipo de música, acaba-se pagando um preço. Muitas vezes, as pessoas têm dificuldade de perceber, por um certo preconceito, que uma pessoa que faz samba pode ser, por exemplo, um maestro. Lembro-me de uma vez em que fiz uma música com Arrigo Barnabé chamada Lenda, que causou o estranhamento de um crítico muito importante, que escrevia no principal caderno cultural de São Paulo. Ele não entendia como Arrigo Barnabé, que vinha da vanguarda musical paulistana, poderia fazer música com um sambista. Na verdade, ele não sabia o quanto estudei música. Paulinho da Viola, por exemplo, estudou até música dodecafônica. Ele escreve e faz arranjos muito bem. E além de tudo ainda escreve partituras com uma caligrafia maravilhosa. Mas, felizmente, essa é uma fase superada. Hoje tenho trânsito tranqüilo em todas as áreas, o que me possibilitou desenvolver meu potencial criativo de diferentes maneiras. Ter a oportunidade, por exemplo, de fazer um show com Paulinho foi maravilhoso.
Eduardo Gudin participou em janeiro do projeto Rio-São Paulo, ao lado de Paulinho da Viola, no Sesc Vila Mariana
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