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O regional universal

Exposição com fotos, documentos e objetos pessoais de Graciliano Ramos mostra sua importância na literatura brasileira nos 50 anos de sua morte

Assim como Guimarães Rosa perpetuou o universo sertanejo de Minas Gerais, com seus boiadeiros e princesas, Graciliano Ramos forneceu ao mundo a imagem definitiva do agreste, da seca e de sua gente forte diante da miséria. Sua força criativa, sua linguagem digital e sua visão do povo ainda hoje influenciam a cultura brasileira. Sem ele, Gláuber Rocha e outros diretores do Cinema Novo teriam ficado sem guarida em seus emblemas e ícones. O universo do autor de Vidas Secas e Angústia, nos 50 anos de sua morte, pode ser usufruído na exposição cenográfica O Chão de Graciliano, aberta no final de janeiro, no Sesc Pompéia.
Além dos 50 anos de morte, a serem completados no dia 20 de março, o evento aproveita os últimos ecos da celebração de nascimento do autor, em 27 de outubro do ano passado, e ainda faz menção a duas outras importantes datas: 70 anos da primeira publicação de Caetés, romance inaugural de Graciliano; e 75 anos de sua posse como prefeito de Palmeira dos Índios, cidade alagoana na qual ele foi, por assim dizer, revelado.
"O próprio título, O Chão de Graciliano, surgiu da idéia de fazer um ensaio fotográfico na região em que Graciliano nasceu, viveu e produziu a maior parte da sua obra", explica o jornalista e escritor Audálio Dantas, curador-geral da mostra. A idéia inicial era realizar uma exposição e editar um livro com as imagens colhidas nas regiões visitadas. "Mas isso evoluiu para uma exposição com documentos e objetos de uso pessoal do escritor", continua o curador. "Posteriormente, o coroamento desse evento será a publicação de um livro de arte com as fotos do Tiago", conta Audálio, referindo-se ao fotógrafo Tiago Santana, conhecido por seus registros de festas religiosas e populares nordestinas e autor de trabalhos que puderam ser vistos em Benditos, livro e exposição realizada também no Sesc Pompéia em abril de 2001. "As fotos retratam o nosso mergulho psicológico no universo de Graciliano Ramos", conta Tiago. "E com uma interpretação muito pessoal desses lugares. A idéia não era apresentá-los, era algo muito mais sutil, um pouco desse universo dele traduzido em imagens."
A viagem pelo mundo do velho Graça - como é conhecido o escritor - começou por Palmeira dos Índios, cidade com maior número de referências ao escritor, apesar de não ser sua cidade natal. "É onde ele foi prefeito e onde está o museu Graciliano Ramos, que nos cedeu algumas peças para a exposição", esclarece Audálio. De Palmeira, a dupla partiu para Quebrângulo - pequeno município de Alagoas, com pouco mais de 12 mil habitantes, onde nasceu o autor - e ainda Viçosa e depois Buíque, já em Pernambuco. "Nós fomos reconhecendo o terreno", retoma Audálio. "Embora, na verdade, eu já o conhecesse, exceto Buíque." Conhecer talvez seja pouco para classificar a ligação de Audálio com a região. Ele próprio é alagoano e parente do escritor. "A mãe de Graciliano é da minha família materna, da mesma região. Eu sou Ferro, meus ancestrais maternos são da família Ferro, que é da mãe dele. Ou seja, as minhas ligações com o universo de Graciliano vêm desde a infância e juventude, quando eu comecei a ler. Jorge Amado foi o primeiro, mas quando veio Graciliano fixou-se a paixão", relembra.

Passos no chão
O resultado dessa antiga paixão do curador, que agora é fortemente compartilhada com o fotógrafo Tiago, pode ser reconhecido nas cerca de 50 fotos expostas em O Chão de Graciliano. As imagens, todas produzidas em preto-e-branco para "conferir mais força ao trabalho", como explica Tiago, revelam a rudez da região por onde passou Graciliano Ramos, sem jamais se esquecer da beleza que o autor tão habilmente deixou registrada em seus relatos. "A gente não quer chamar a atenção para a pobreza", salienta Tiago. "Mas sim para a riqueza, na verdade. É a riqueza humana; lógico que dentro de uma pobreza", atesta.
Além das fotos, o evento é composto ainda de oficinas, leitura de textos e palestras - uma programação paralela desenvolvida pelo Sesc. "A idéia é a de possibilitar ao público um contato amplo com a obra de Graciliano Ramos, que foi um dos maiores estilistas da língua portuguesa", explica Roberto Cenni, técnico do Sesc Pompéia.
O Sesc produziu ainda um livreto trazendo toda a história do escritor - com bibliografia e biografia completa -, com tiragem de 25 mil exemplares a serem distribuídos a alunos de várias escolas. "O interessante é mostrar para o público - crianças, jovens e adultos - a importância de Graciliano", afirma Cenni.
Entre os palestrantes encontram-se o cineasta Nelson Pereira dos Santos (leia a entrevista neste especial), que transpôs para a tela Vidas Secas e Memórias do Cárcere; a professora Yêdda Dias Lima, vice-diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP - centro interdisciplinar que concentra parte do acervo do autor; o professor da USP Zenir Campos Reis; e ainda James Amado, romancista casado com Luiza Ramos Amado, filha de Graciliano.
O acervo em poder do IEB, e que estará em parte no Sesc Pompéia, foi doado pela viúva do escritor, Heloísa Ramos, cuja memória é lembrada pela professora Yêdda com profundo carinho e admiração. "Ela era uma pessoa exemplar em muitos sentidos, de uma inteligência muito viva, de uma acuidade, de uma beleza muito grande. Um dos privilégios da minha vida foi conhecer e conviver com Heloísa Ramos." James Amado, além de palestra, contribui com um texto escrito para o catálogo da exposição no qual lembra dois momentos de Graciliano Ramos. "Um bom e um ruim", diz. O ruim traduz-se em seu período na prisão, privado da família e dos amigos; e o bom fragmento é na verdade infindável. Amado escreve: "Outro momento na história de Graciliano Ramos começa quando este se torna apenas memória. Desde então sua obra tem sido apropriada pelos estudiosos da literatura, gerando centenas de teses de mestrado e doutorado e pelos leitores que tem em todo o mundo: somente no Brasil, Vidas Secas vendeu, nos últimos 20 anos, cerca de dois milhões de exemplares. Sua arte é um bem comum."
A exposição O Chão de Graciliano, que conta com cenografia de Jéfersson Duarte, pode ser conferida no Sesc Pompéia até o dia 30 de março, juntamente com as demais atividades. Confira no Caderno de Programação desta edição.

Das páginas aos fotogramas
O cineasta Nelson Pereira dos Santos adaptou duas obras do escritor

Em entrevista exclusiva, o cineasta explica o que o levou a filmar Vidas Secas e Memórias do Cárcere.

Mesmo em uma filmografia como a sua - repleta de adaptações de obras literárias - Graciliano se destaca, com dois livros que se tornaram filmes importantíssimos. O que o motivou a filmá-lo?
Além de uma ligação que veio da escola, nessas obras que filmei, Graciliano trata de dois momentos históricos, dois grandes temas da vida brasileira. O primeiro é a questão da Reforma Agrária. Quando fiz Vidas Secas, entre 1962 e 1963 - época das Ligas Camponesas - essa era uma das grandes discussões. Graciliano era um autor que trazia informações sobre esse universo de maneira muito correta, muito próxima da realidade.

O que te interessava então era a questão agrária?
Em princípio não estava pensando em fazer uma adaptação de Vidas Secas. Estava querendo escrever um roteiro original. Na época eu fazia documentários e fui filmar uma grande seca em 1958, a chamada Seca do Juscelino. Fui para Juazeiro da Bahia e vi os flagelados chegando, sendo abrigados nas escolas, hospitais e mercados. Eu só conhecia aquela realidade pela leitura, e vi com meus olhos o impacto da fome - as crianças ganhando cuias de farinha pura para comer. Naquele momento decidi que iria fazer um filme e comecei a escrever roteiros - um mais superficial que o outro (risos). Mas eu tinha um livro de consultas, o Vidas Secas, que utilizava a todo momento para saber como era o sertanejo, seu jeito... De repente me dei conta de que o filme já estava escrito.

E quanto ao Memórias do Cárcere?
O Memórias trazia uma outra grande questão, que é a da liberdade. A primeira vez em que pensei fazer o filme foi quando o livro saiu, de maneira póstuma, em meados da década de 1950. Na ocasião, era apenas um sonho, não havia a menor possibilidade de filmá-lo. A segunda vez foi em 1964, no início da ditadura militar. Lembro-me que o governador do Rio de Janeiro na época, Carlos Lacerda - um grande admirador do filme Vidas Secas - me deu muito apoio, liberando inclusive o presídio de Ilha Grande. Mas eu ainda não tinha condições de produzir o filme, tanto pela falta de recursos, quanto pelo domínio do cinema que eu tinha na época. Tive que esperar mais 20 anos. Quando pensei em fazer o filme no começo da ditadura, queria mostrar o que ia acontecer; mostrar que aquele processo em que estávamos mergulhando já tinha acontecido antes. Depois dela, quando consegui finalmente filmar, a mensagem foi "tomara que isso não aconteça nunca mais".

Apesar de o senhor ter filmado esses dois livros, seu primeiro interesse cinematográfico por Graciliano foi por outra obra, não?
No final dos anos de 1940, eu era assistente de direção no filme O Saci e estava filmando em São Paulo. O diretor de fotografia era o Ruy Santos, muito ligado ao Graciliano. Ele era muito próximo àqueles intelectuais que apoiavam o Partido Comunista. Uma vez, durante as filmagens, ele me viu com São Bernardo debaixo do braço. Então me perguntou se eu não queria fazer um filme sobre o livro. Eu disse que sim. Ele ligou para o Graciliano e recebeu a autorização. Comecei então a fazer a adaptação. Um dos episódios engraçados é que eu queria salvar a vida da Madalena; queria que, em vez de morrer, ela fugisse. Então Graciliano mandou uma carta: "Se você quer mudar o livro, faça sua própria história e deixe meu livro em paz." Mas o projeto do filme era apenas quimérico e acabou não seguindo adiante.

Há mais alguma obra de Graciliano que desperta o seu interesse?
Gostaria de filmar Angústia. Mas tem um filme meu inédito de um conto do Graciliano, chama-se Um Ladrão, do livro Insônia, de 1947. Era um projeto de três médias-metragens de aproximadamente 30 minutos cada. Fiz um deles. Mas o filme nunca estreou no cinema, deve ter se perdido. Tinha também vários projetos que acabaram ficando para trás. Outro que gostaria de ter filmado é Alexandre e Outros Heróis.


Memória de Graciliano Ramos
Por Wander Melo Miranda

Em carta a Clarice Lispector, de 23 de março de 1953, Rubem Braga refere-se ao enterro de Graciliano Ramos e diz que o autor de Vidas Secas, morto, "era completamente igual a Dante Alighieri". Mais do que uma comparação inusitada, dessas que surgem ao acaso e fazem coincidir figuras distantes no tempo e no espaço, a semelhança fisionômica apontada pelo cronista sintetiza de forma exemplar a importância do legado do escritor alagoano para a cultura brasileira. Tal como o poeta florentino, comprometido até a perseguição política com as questões de sua época e com a liberdade de transfigurá-las em termos artísticos, Graciliano dá evidência histórica às personagens que circulam por seus textos - multifacetado painel de uma humanidade viva e atuante, apreendida sem formulações abstratas ou reducionismos anedóticos.
A aderência textual à vida concreta e a superação de seus limites referenciais compõem o paradoxo da misteriosa química da permanência da obra de criadores como Graciliano Ramos. Visto de hoje, seu engajamento político-partidário, legítimo em suas aspirações e coerente do ponto de vista ideológico, é um complicador a mais. Indiscutivelmente articulado com a prática literária a que dá forma, em nenhum momento faz com que essa prática resvale para as facilidades do panfleto ou ceda à sedução das relações imediatas. Ao contrário, em razão do conflito que apresentam entre texto e história, sujeito e discurso, memória e imaginação, seus livros se abrem a uma série de indagações experimentais que, desde Caetés (1933), desautorizam toda sorte de respostas excludentes e definitivas, para espanto do leitor e dos próprios narradores colocados em cena pelo autor, sejam eles autobiográficos ou não.
No território minado por onde transitam suas personagens, em busca de uma unidade de antemão impossível no decurso da experiência desdobrada no tempo, não há lugar para ilusões compensatórias ou processos conciliadores de integração social. Seres à margem, João Valério, Luís da Silva, os retirantes de Vidas Secas, o menino de Infância e os presos de Memórias do Cárcere, trazem todos a marca da "desgraça irremediável que os açoita", para usar as palavras do escritor, que deles se aproxima solidário, com uma simpatia ora mais, ora menos distanciada, sempre comovente na cautela com que se expõe.
Mesmo o recurso à memória, de que o narrador na maioria das vezes se vale, não conduz ao abrigo das certezas apaziguadoras e da verdade incontestável, espaço que é da contradição e da recorrência desintegradoras. No ato de recompor a vida pela linguagem, de ser escrevendo, a idéia do conhecimento de si a que chegam os narradores de Graciliano resulta numa construção móvel e aleatória, fruto de um saber precário, provisório nas suas conclusões e cético no tocante à validade de suas premissas. Talvez por isso, nada resista em pé diante do desejo de destruir, segundo Otto Maria Carpeaux, o "edifício da nossa civilização artificial - cultura e analfabetismo letrados, sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades temporais e espirituais". Destruição para transformar, para reverter por "linhas tortas" as diretrizes e os valores do mundo administrado que o incipiente processo de modernização brasileira começava a implantar no País. Opacas da perspectiva hegemônica do saber racionalizante, regiões sombrias da ordem atingem então o primeiro plano do texto, onde avultam na sua concretude dolorosa de violência excludente, de alteridade em vias de revelação.
Nas brechas abertas numa modernidade assim desencantada, firme na sua disposição de ir contra a amnésia histórica e social, Graciliano torna efetiva, talvez como nenhum outro escritor entre nós, a possibilidade de uma prática política do texto artístico. Daí o papel crucial desempenhado pela memória em seus livros. Operadora da diferença e trabalhando com pontos de esquecimento da história oficial, ela se formula como atividade produtiva, que tece com as idéias e imagens do presente a experiência do passado, entendido como lugar de reflexão e urdidura sempre renovada, refeita, recriada - vida e morte, vida contra a morte.
A possibilidade da reminiscência descortina-se justamente onde a história triunfante dos "homens gordos do primado espiritual" procede ao cancelamento do que ficou para trás, ou seja, no detalhe, no pequeno, no insignificante, a partir deles e com eles, como revelam as Memórias do Cárcere, seu testemunho derradeiro. Se a perspectiva da morte, de fim de caminho, autoriza o autor a levar adiante suas memórias, é o desejo de fazer viver o que estaria morto para sempre, mas que ainda persiste na sua demanda, o que deflagra o processo da escrita. Reviver o passado sim, porém enterrar de vez o que mantém o memorialista encarcerado e o impede de tomar posse efetiva do presente.
O corpo do sujeito é aí o lugar privilegiado onde se marca a história e se enuncia, em carne viva, sem subterfúgios, a violência desmedida do poder. Instrumento de ataque e defesa no embate com o "nosso pequenino fascismo tupinambá", o corpo vai além de si mesmo e se faz voz do vivido coletivo, balizando a dura aprendizagem da posição marginal do escritor que teima em manter-se, apesar de tudo, livre, independente e fiel a si mesmo. O instável campo de manobra que a situação de pária social lhe delega desdobra-se em vários níveis de indagações, que vão desde a consciência sofrida que separa o intelectual da massa com a qual se solidariza até a da relação conflituosa do escritor com o mercado de trabalho.
O espaço de atuação intelectual e artística de Graciliano revela-se intervalar: entre formação burguesa e empenho político a favor do excluído, entre imposições do poder e anseio de transformação, entre qualidade artística da obra e necessidade de sobrevivência do artista. A possibilidade de a literatura realizar uma intervenção diferenciada no campo político, com os instrumentos de que só ela dispõe, reveste-se, na prosa do escritor, da reafirmação do vínculo estreito entre arte e vida, escrita e experiência: "Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou", revela a Homero Senna. Posição de princípio que, no entanto, se submete, com força de persuasão, ao domínio da linguagem, ao território também conflituoso da palavra literária.
A auto-reflexão textual catalisa as preocupações de Graciliano. O exercício obsessivo e artesanal da linguagem e a lucidez na escolha dos procedimentos narrativos usados impedem a subserviência do texto à realidade imediata e à gratuidade lúdica, abrindo novos caminhos para a representação literária. Há um silêncio que procura fazer-se ouvir, uma fala emudecida a que o narrador procura dar ouvidos, desobstruindo, sem paternalismos, suas vias de expressão. Daí o caráter experimental da narrativa, que ensaia aproximações e recuos diante de imposições retóricas e estereótipos literários, solapados no cerne de sua orientação hegemônica: "Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer."
A estratégia dissimulatória que propicia ao escritor mover-se no interior desse sistema fechado e a ele opor resistência se formula em termos de afrontamento do interdito através da ironia e da redução da linguagem àquele mínimo de recursos que a faz funcionar sem perder a carga explosiva que encerra. Num pequeno texto, "Os Sapateiros da Literatura", Graciliano realça a dimensão utilitária da escrita ao comparar pronomes e verbos a sovelas e ilhoses: "São armas insignificantes, mas são armas." Como também as de quem "bate numa porta a socos", para lembrar o verso de João Cabral. Graciliano Ramos sabe usar como ninguém essas armas insignificantes e como ninguém sabe da frustração e da esperança de ver enfim a porta aberta.

Wander Melo Miranda é professor titular de Teoria da Literatura na Universidade Federal de Minas Gerais. Autor de Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago (Edusp/Ed. UFMG), entre outros.