Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Ficção inédita
Homem magro, alto, sozinho e seu cão moribundo

Naum Alves de Souza

Tinha na parede, emoldurado, um bordado feito em ponto-cruz pela falecida mãe: "Sinceridade e franqueza, sim! Omissão, jamais! (Doa a quem doer)".
Dizia: "É o meu lema." Implacável, devastador de pequenas alegrias, machucou e perdeu muita gente. "Afeto, amor, essas coisas duraram pouco na vida." Sozinho, um pé na terceira idade, desandou a inventar e contar, para quem suportasse ouvir, histórias sobre paixões e relacionamentos que nunca teve. Inventou a temática amorosa para impressionar os novos e breves amigos que eventualmente conhecia nas feiras de sábado na praça ou no restaurante por quilo onde almoçava todo dia sozinho, invariavelmente sozinho. "Prefiro ficar separado", numa das salas que, por causa dele mesmo, sempre ficavam vazias. Solitário, evitado por todos, mas sempre com cara superior e sorriso de desdém.

"Não gostei do quiabo, está com baba, parece um cão hidrófobo." Falou isso alto, na frente dos fregueses. Foi o bastante para dona Zula nunca mais gostar do altão seco e metido. "Deixa, não precisa expulsá-lo, mãe." Os filhos da educada senhora agüentaram o rojão: "Na frente a gente diz sim e pois não; depois que ele sai, a gente ri."
Era homem separado, a mulher tinha ido embora há muito tempo, os filhos crescidos pouco apareciam porque não tinham boas lembranças da convivência com aquele pai. Um dia, a garçonete viu em seu rosto uma expressão de paz que durou pouco - ainda engolia um nhoque -, pois logo desandou a reclamar do excesso de alho num bife rolê. Cabelos longos e brancos, como os usara na juventude quase rebelde. Enorme, magro, seco, constantemente infeliz com algum regime sempre violado. Úlcera, gastrite. Houve um período em que engordou um pouco, ganhou até barriguinha. Tentou mostrar-se jovem e até vestiu camiseta preta, jeans preto desbotado, tênis preto de couro. A roupa meio solta deu-lhe um ar de clubber fora de hora, de vampiro, de doente. Embranqueceu ainda mais, amarelou. Chegou a ir até a porta do prédio mas, descendo no elevador com uma adolescente, entendeu tudo e tratou de subir para trocar de roupa.
Um dia, no restaurante por quilo, enquanto lavava as mãos no banheiro, rolou o comentário: "A filha dele é legal. E o filho também." Alguém duvidou: "Questão de tempo, vão ficar igual ao pai."
Certo sábado, foi avistado na praça por um antigo colega de trabalho que imediatamente sentiu um arrepio no corpo. "Continua com aquela cara de falso defensor dos direitos humanos em encontro de intelectuais."
Sem convicção, a mulher que o acompanhava tentou uma defesa: "Faz tempo que saiu de circulação, coitado, deve ter levado muita surra da vida. Me contaram que ele mesmo disse que está muito mudado."
"Ninguém muda. Parece um rei destronado."
Temendo que a companheira propusesse uma reaproximação, o velho inimigo encerrou o assunto: "Mau caráter não muda, mau caráter só envelhece."
Desistiram do simpático restaurante por quilo e foram comer num japonês no lado oposto da praça. Brigaram até a chegada do primeiro barco de sushis: "Você quis vir nesta praça só para me irritar, sabia que a praga estava aqui." Bons sushis, o cérebro alterado pelo saquê. Daí a pouco os dois trocavam beijinhos com gosto de peixe cru, wasabi e shoyu.
Alguns sabiam que o magrão andava sofrendo porque seu maior amor, o cachorro, muito velho e gravemente doente, estava praticamente no fim da vida. Fora o único a não abandoná-lo e estava sendo tratado pelo melhor veterinário com injeções diárias, remédios caros e comprimidos que engolia embutidos em pedaços de queijo com filé mignon. Nos passeios diários para fazer necessidades, o belo cão tinha uma energia surpreendente, não parecia doente.
Formado em arqueologia e museologia, o homem sempre posou de perseguido político, mas seus contemporâneos sabem que nada lhe aconteceu. Apostando na famosa falta de memória do país, há muito faz anotações para uma autobiografia. Alguém leu uns trechos e segredou: "Parece cópia mal feita de Memórias do Cárcere, coisa psicografada, literatura vagabunda. Em cada página, pelo menos quatro vezes sente pena dele mesmo. Nunca viu o sol nascer quadrado, nem chegou perto dos porões da ditadura."
Últimos tempos.
Sábado.
No almoço, o magrão falou coisas desagradáveis à filha, que saiu chorando do restaurante. Desde segunda-feira da semana passada o filho alegava não poder almoçar ou jantar com o pai porque estava fazendo um bico como garçom na Vila Madalena. Não era verdade e ele ficou sabendo.
Tarde do mesmo dia.
O cão não conseguiu se levantar para passear, passou o dia deitado porque os remédios, muito fortes, o derrubaram.
Domingo.
O magrão queria passar o domingo chuvoso escrevendo suas memórias que "darão um grande filme", mas o computador apresentou problemas e ele não foi atendido pelo único técnico que conhecia. Na última visita, ele havia irritado muito o rapaz corrigindo sem parar erros de concordância, plural e outras trivialidades da linguagem falada. Na hora, o moço ficou quieto, mas agora se recusa a aparecer e, pelo jeito, o aparelho está infectado por vírus.
Segunda.
O magrão falou alguma coisa cruel e a empregada chorou: "Não venho mais, dá para o senhor me pagar?"
Ele preencheu um cheque e o cruzou.
"Por que o senhor está fazendo esses riscos?"
"Estou cruzando o cheque. Para descontar, só depositando."
"Mas eu não tenho conta."
"Não é problema meu. Por favor, pegue suas coisas e saia."
"O senhor dá comida para o Veludo? Ele não quis comer quando eu dei. Nem se mexeu."
"Não se preocupe que eu cuido dele."
Quando foi mexer no cachorro, viu que o bicho, ainda quente, estava morto.
"Você também?"
Ficou arrasado mas não chorou.
"Mais dia menos dia, isso ia acontecer. Você estava sofrendo."
Ligou para o veterinário e perguntou o que deveria fazer. Desligou, olhou para o cão, enfiou-o num grande saco de plástico preto e arrastou-o pelo corredor. Precisava operar uma hérnia, não podia carregar peso. Entrou no elevador, desceu na garagem e, com a ajuda de um faxineiro, colocou o cachorro no porta-malas. Derramou sinceras lágrimas enquanto dirigia mas, na clínica veterinária, não teve coragem de abrir o saco para ver o amigo. Pediu que lhe dessem um banho e passassem no pêlo um óleo aromático. Estranharam mas, pagos, procuraram executar o que o magrão ordenara com antipatia e ar superior.
"Só tem óleo de máquina, doutor."
"Este lugar é uma merda, vocês são uns merdas, mas mandem ver."
Ficou um cheiro estranho, mas deram umas borrifadas no ar com spray desodorante de ambientes que usavam para disfarçar odores desagradáveis. Depois, o magrão quis mais. Pegou uma jaqueta de brim no carro e mandou:
"Quero que ele seja cremado enrolado com isto."
Os empregados estranharam, mas obedeceram.
"Eu gostaria de ficar sozinho."
Os rapazes saíram e ele ficou só, com o cão lambuzado e embrulhado na jaqueta. O pêlo tinha sido penteado e o animal parecia dormir. Tentou imaginar um discurso fúnebre que tinha que ser, antes de tudo, uma grande despedida literária.
"Vou contar aos amigos e conhecidos e todos hão de se emocionar. Todos, até os inimigos."
Não conseguiu pensar nem falar nada. Deu as costas para o cachorro, pagou e saiu. Mal entrou no carro, os funcionários tiraram a jaqueta do cão.
"Pecado estragar coisa tão boa."
Quando chegou em casa, o magrão procurou evitar a dor.
"Tenho que usar a razão para não cair no sentimentalismo. Meu cachorro viveu uma vida boa, longa, do tamanho certo de uma vida canina, foi fiel a mim, sempre me obedeceu, nunca saiu do lugar que lhe determinei."
Enquanto meditava sobre o exercício de força e poder que sempre exercera sobre o bicho, foi para a área de serviço e, quando pegou o cobertorzinho pulguento sobre o qual ele dormia, para colocá-lo no lixo, descobriu um bilhete. O animal sabia ler e escrever - alfabetizara-se pela televisão, assistindo a aborrecidos programas educativos.
O bilhete de Veludo, com frases telegráficas e caligrafia diferente, pois devia ter escrito usando as duas patas para segurar a esferográfica:
"Dono de mim: você me treinou para obedecer. Certo? Vou morrer sem desaprender os truques que o treinador me ensinou. Eu abanava o rabo quando te via porque queria comida. Quando você voltava da rua, eu pulava de desespero. Não conseguia me aliviar aqui dentro. Era duro esperar a hora do passeio preso neste apartamento. Você nunca notou minha aflição. Eu mal tinha tempo para cheirar as árvores e postes onde queria mijar. Se fugisse ia me estrepar, não estava acostumado a me virar. Você nunca me soltou ou me deixou ao lado de uma cachorra para que eu pudesse descobrir o significado daquele cheiro tão interessante. Sinceramente, não fui um cachorro feliz. Fui fiel porque não tinha outra
perspectiva."
O magrão leu e, em vez de dar um tiro na cabeça, sentou-se e escreveu:
"Sem sentimentalismo barato, eu acho que todos os cães do mundo deveriam ser caçados pela carrocinha e transformados em sabão. Tenho dito."

Naum Alves de Souza é autor de Aurora da Minha Vida, entre outros.