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Contos mineiros

Contadores de história da cidade de Cordisburgo, em Minas Gerais, encantam platéias em todo o Brasil trazendo na bagagem a obra de Guimarães Rosa

"(...) pequenina terra sertaneja das montanhas no meio de Minas Gerais,
só quase lugar, mas tão de repente bonito".

Com essas palavras, o escritor João Guimarães Rosa define a cidade onde nasceu, no norte de Minas Gerais, Estado cujas regiões imortalizou em livros como Sagarana e Grande Sertão: Veredas, obras que o colocaram entre as mais importantes figuras da literatura mundial.
Ainda hoje pequena, com cerca de oito mil habitantes, a cidadezinha, a uma hora e meia da capital Belo Horizonte, não esqueceu seu filho mais célebre e orgulha-se de abrigar os cenários descritos com maestria para o Brasil e o mundo. A casa onde ele nasceu e cresceu foi transformada em museu nos anos de 1970 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA) e abriga um acervo composto de obras e móveis, além de objetos pessoais, inclusive sua velha máquina de escrever, na qual criou a saga de Riobaldo e Diadorim. "O governo comprou essa casa e a restaurou nos moldes da época", começa a explicar Calina da Silveira Guimarães, médica e prima em segundo grau do autor. "A construção continua toda de adobe (pequenos blocos de argila crua semelhantes a tijolos), só recebeu uma camada de cimento por fora para ficar mais resistente. Alguns móveis foram conservados e toda a família Guimarães doou peças, como louças, camas e armários, reconstituindo mais ou menos o estilo de vida da época."
Dra. Calina lembra-se do privilégio de conviver tão perto de Guimarães. Embora prima em segundo grau, todas as vezes que o escritor visitava a cidade natal ela era avisada por um tio de ambos, Vicente Guimarães, da presença do parente já famoso. Ela vinha, então, de Juiz de Fora, onde se formou em medicina e exerceu a profissão até a aposentadoria, para conversar com ele e ouvir suas histórias. Ou quase isso. "Ele sabia que vinha para conversar com a 'parentada'", continua. "Era interessante porque a gente queria saber dele, mas ele queria muito mais saber da gente. Num instante, ele desviava a conversa e começava a fazer perguntas sobre o que nós estávamos fazendo e queria saber de nossas histórias, da vida do povo daqui. Guimarães Rosa era um homem alegre, educado, fino e muito ligado à família. Ele tinha um carinho enorme pelo nosso tio Vicente."
Os doze anos de diferença entre os primos não impediram que o relacionamento entre eles fosse estreito. Sempre que Guimarães lançava um livro, mandava-o para seu outro tio, o pai da então jovem Calina, que imediatamente repassava o volume à filha. Assim, a intimidade com o universo roseano veio cedo. "Eu li Sagarana com quinze anos e com a maior naturalidade. Depois de muito tempo é que comecei a perceber que o pessoal achava a obra dele difícil", faz graça. "O ambiente é nosso, estamos acostumados com todas essas palavras do sertão. Algumas não entendíamos, mas adivinhávamos, dava para deduzir. A gente ria muito de outras. Quando ele vinha, perguntávamos: 'Por que você inventou essa?'. Ele explicava rindo: 'Lá no sertão, não é assim que o povo fala?'."

A descoberta da literatura
Já próxima da aposentadoria, Calina resolveu voltar a Cordisburgo para visitar o museu que havia sido criado na casa do escritor. Mas não ficou muito contente com o que viu. "O lugar estava deteriorado, com muitas goteiras e o Estado o tinha fechado", lembra-se. "Vendo aquilo, pensei: 'Encontrei um ótimo incentivo para me aposentar, vou me dedicar a reabrir esse museu'."
Calina começou então a mobilizar a família e as autoridades para conseguir uma verba para a reforma. "Melhoramos algumas coisas e as visitas voltaram a acontecer, mas pouco produtivas. As pessoas entravam e saíam... Foi quando pensei em transformar o museu em algo mais interessante." Assim nascia o Grupo Miguilim, um dos projetos da Associação dos Amigos do Museu Casa Guimarães Rosa.
O grupo é formado por crianças e jovens da cidade reunidos por ela e, sob o nome de um personagem infantil de Guimarães Rosa, tirado do conto "Manuelzão e Miguilim", passou a incrementar as visitações orientando os turistas, informando sobre a casa, a família e a vida do escritor. A visita monitorada, ao final, é coroada com uma bela "contação" de histórias, as histórias de Guimarães Rosa. "Na casa tem um jardim muito bonito - é uma característica da família cuidar de jardins - onde reúno as pessoas no fim da visita e os meninos narram a obra roseana que lhes ensinei. Eles contam de cor vários trechos dos livros. Com isso, as visitas aumentaram mais que o dobro. Os visitantes gostam muito e divulgamos a obra de Guimarães Rosa."
A aceitação foi tão grande que não demorou para surgirem convites para os miguilins contarem suas histórias em outros lugares. "Eles viajam pelo Brasil inteiro, já se apresentaram várias vezes em São Paulo e até na Academia Brasileira de Letras", orgulha-se José Oswaldo dos Santos, o Brasinha, diretor cultural da associação. No entanto, a ABL não foi o lugar mais distante ao qual os miguilins chegaram. Em suas muitas viagens, o grupo já participou de uma emocionante visita a Brasília, onde, numa cerimônia em comemoração ao Dia da Independência, três de seus contadores estiveram na presença do ministro da Educação, Paulo Renato Souza, do próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e da primeira dama, Ruth Cardoso. "Depois da apresentação, nos jardins do Palácio da Alvorada, fomos convidados pelo próprio presidente para fazer uma sessão extra para ele e dona Ruth", conta Brasinha.
Os beneficiados com a criação do grupo não são apenas os visitantes do museu. Os jovens miguilins se viram contemplados por um trabalho social que lhes ofereceu acesso não somente à obra de Guimarães Rosa, mas à literatura de maneira geral, à cultura e a uma opção de lazer. "O jovem aqui não tem o que fazer", retoma Brasinha. "Então, contar essas histórias foi um incentivo à leitura. Eles começaram a perceber que a literatura é muito importante na vida das pessoas e isso fez com que estudassem."
Brasinha não esconde a satisfação ao contar que, nesse processo, oito contadores de história foram para universidades federais da região. "Entre eles, meu filho Guilherme, que foi contador de história do primeiro grupo e hoje está fazendo medicina na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)."

Os Miguilins no Sesc
No dia primeiro de setembro, um domingo ensolarado, o Sesc Santo André recebeu cinco miguilins que vieram mostrar seu trabalho ao público freqüentador da unidade. Fábio, Mércia, Camila, Dayana e o já veterano José Maria, o único adulto do grupo, vieram como mais uma atração do evento Grandes Sertões: Imagens, uma exposição do fotógrafo João Correia Filho que, de 29 de agosto a 20 de setembro, esteve na área de convivência da unidade, com cenas do sertão celebrado por Guimarães Rosa (veja o box).
Na lanchonete do Sesc Santo André, todo mundo fez silêncio para ouvir as comoventes, e muitas vezes engraçadas, passagens da obra do escritor. Os jovens, tímidos como se diz de todo mineiro, crescem no palco, projetam a voz e dão vida aos personagens. Vestidos com roupas normais - só uma camiseta com o nome do grupo os diferenciava dos demais presentes -, eles guiaram os ouvintes ao universo do sertão, a exemplo do próprio Guimarães.
"É importante ressaltar que teatro é uma coisa e contar história é outra", faz questão de lembrar Fábio. "O primordial para o contador de história é a oralidade, ele explora muito a voz." Completa Dayana: "Além disso, desenvolve a imaginação das pessoas". "Seria muito mais fácil estar caracterizado e mostrar a história. Mas tentamos fazer com que as pessoas imaginem a história na cabeça delas. Quando conseguimos isso, nosso trabalho está feito."
A linguagem pautada por neologismos, trejeitos no falar e a perfeição pura de Guimarães Rosa não são problemas para os jovens. A naturalidade é tamanha que não é difícil pensar tratar-se de um "causo" inventado na hora, repassado boca a boca. "Em Cordisburgo, a linguagem de Guimarães Rosa ainda é muito usada", conta Dayana. "Palavras que você não encontra em nenhum dicionário, pode perguntar para alguém mais idoso da cidade que ele sabe o significado."
Fábio reconhece que o privilégio de ser da mesma cidade do autor o ajuda na função de contar suas histórias.
"Estamos sempre em contato com os a linguagem pautada por neologismos e o vocabulário de Guimarães Rosa." O grupo reconhece também que o ingresso nos miguilins significou uma oportunidade para mudar de vida. Mércia, que hoje cursa letras na UFMG, nunca tinha saído de Cordisburgo até se tornar uma contadora de histórias. "Isso mudou a nossa vida. Se não tivéssemos entrado no grupo, não teríamos essa oportunidade. Quem faz parte dos miguilins não tem muitas condições e o grupo foi uma porta que se abriu para conhecer outros lugares e sua cultura."
Iniciativas como essa provam que é possível educar os jovens desde cedo em um conceito mais pleno de cidadania.

Veredas - Exposição fotográfica celebra o sertão de Guimarães Rosa
O Grupo Miguilim não foi a única atração a dar ares roseanos ao Sesc Santo André no mês de setembro. A área de convivência da unidade abrigou, até meados do mês passado, uma exposição fotográfica de João Correia Filho (acima) sobre o homem e as paisagens do sertão de Minas Gerais. A Grande Sertão: Imagens inspirou-se na dureza, simplicidade e lirismo sertanejos para recontar miticamente a saga do jagunço Riobaldo Tatarana, prota-gonista do romance Grande Sertão: Veredas, de autoria de Rosa. "Indo até a divisa com os Estados da Bahia e Goiás, atravessei a região central do país buscando registrar o que se escondia por trás das inúmeras definições que o jagunço dá para o dito sertão", explica o fotógrafo. "Espaço geograficamente delimitado e universalizado na força literária de João Guimarães Rosa". Nas fotos, contadores de história, benzedeiras e cavaleiros dividem os rios e veredas com barqueiros, violeiros e pessoas comuns que, segundo Correia, "poderiam facilmente figurar no universo mítico de Rosa". Pessoas/personagens que representam na exposição um pouco da essência de uma das maiores obras da literatura brasileira.