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O riso do Brasil

por Elias Thomé Saliba

O historiador Elias Thomé Saliba, autor do livro Raízes do Riso, fala da história do humor brasileiro e responde por que os intelectuais de hoje em dia perderam um pouco da graça. A seguir, trechos do depoimento:

As raízes do riso
O livro é um estudo sobre o surgimento da linguagem humorística brasileira no período conhecido como Belle Époque (que cobre as duas décadas finais do século XIX e as duas primeiras do século XX). A questão principal é: existe uma linguagem humorística típica do Brasil, peculiar à cultura e à sociedade brasileiras? A Belle Époque foi a época que viu nascer o jornalismo moderno. Foi nesse período que, no Brasil, surgiram as revistas semanais ilustradas, que continham seções fixas de humor, de caricaturas e, ainda, de publicidade. Esse último aspecto também foi importante, pois a grande maioria dos humoristas brasilei-ros criou anúncios publicitários.

Em termos mundiais, a Belle Époque foi uma espécie de resumo do que seria o século XX, com todas as benesses da revolução tecnológica, mas também com todas as tristes perversidades anunciadas pela Guerra de 1914. A abertura proporcionada pela imprensa moderna e uma crise de valores cultu-rais no plano mundial - e, no caso brasileiro, as expectativas geradas pelo advento da República -possibilitaram a criação de uma peculiar linguagem humorística brasileira.
A pesquisa que originou o livro concentrou-se na documentação de duas cidades: Rio de Janeiro e São Paulo. Aliás, eu já adianto: o humor paulista existe. Há uma peculiaridade e uma temática típicas do humor paulista. Eu diria que, como ele surge na Belle Époque, traz, digamos, mais ressentimento social. Afinal, estamos falando de uma cidade que está nascendo nesse período e que vê nascer também o seu caos metropolitano. O impacto da imigração provoca uma mistura de vozes na cidade. É dessa mistura que surge o humor paulista, forte e engraçado, mas carregado de um pouco mais de ressentimento. Já o Rio de Janeiro foi realmente a capital cultural do país naquele período. O capítulo que remete a ele tem o título "Artífices da Graça Nacional". Na verdade, a cidade conti-nuou com esse status até os anos de 1960. O carioca "dá o tom" para a cultura do país nessa época e os humoristas como Bastos Tigre e Emílio de Menezes terão essa importância. Porém, no frigir dos ovos, ou seja, no momento do rádio, quando começa o rádio comercial brasileiro, o veículo precisa de uma linguagem rápida. E quem está de plantão para fazer isso? Os humoristas. Aí sim, serão tanto cariocas quanto paulistas. Afinal, na década de 1940 já temos Alvarenga e Ranchinho, Lauro Borges, Castro Barbosa, Adoniram Barbosa, Jararaca e Ratinho, Zé Fidélis etc. - ou seja, humoristas de rádio que vão trabalhar tanto em São Paulo quanto no Rio.

O humor e o poder
O humor é tão ambíguo quanto qualquer criação cultural. O humor político, por exemplo, é sempre muito forte. Os caricaturistas e humoristas estão sempre falando dos presidentes e dos poderosos em geral. Porém, o humor tem duas faces: ele pode ser cáustico, crítico, satírico e também - o que é mais interessante - humanizar o personagem; o que pode ser visto em toda a história da República. Vê-se isso com Marechal Deodoro e até mesmo com presidentes odiados, como Floriano Peixoto. Havia um humorista proscrito - Pedro Gomes Jr. - que sempre era censurado e que, por exemplo, fazia poemas satíricos nos quais nunca chamava Floriano Peixoto pelo nome, mas sempre de Flor de nus Peixoto. Já Getúlio Vargas, por exemplo, manteve uma relação muito ambígua com esses humoristas. O caso mais conhecido foi o da dupla Alvarenga e Ranchinho, que criava várias coisas sobre Getúlio, inclusive paródias de comerciais. Por exemplo: em 1936 saiu um anúncio no rádio, muito conhecido, que era da Detefon. A letra falava sobre baratas e pulgas que se-riam extermi-nadas pelo remédio. Na paródia da dupla, os nomes dos insetos foram trocados pelos termos integralistas e comunistas e o nome do remédio, substituído pelo nome de Filinto Muller, chefe da polícia política de Getúlio. Consta que certa vez a dupla foi chamada por Getúlio, que ordenou que eles cantassem, na sua frente, todas as criações - inclusive aquelas mais antigetulistas; a dupla de cantores, um tanto constrangida, obedeceu. Getúlio riu muito e disse que não ia mais persegui-los. Mas, como todos sabemos, isso aconteceu na época do Estado Novo, quando Vargas era hábil na sua famosa técnica de dar uma paulada e depois assoprar. Dias depois, a mesma dupla estava no Rio, no Cassino da Urca, e esbarrou com Benjamim Vargas, o famoso Beijo, o sujeito mais truculento do estado varguista, saindo do banheiro. Benjamim pegou os dois pelos braços e soltou vários desaforos. Por pouco não bateu neles.
Mas há inúmeros outros casos de humoristas brasileiros que sofreram pressões ou censuras, nas suas mais variadas formas: Emílio de Menezes e José do Patrocínio Filho, nos anos de 1910-1914; Juó Bananére e José Agudo, nos anos de 1915-1916; Antonio Torres, em 1916; Alvarenga e Ranchinho e Aparício Torelly (Barão de Itararé), na década de 1930. São situações muito diferenciadas e específicas - alguns sofre-ram pressões, outros foram perse-guidos, presos ou perderam seus postos de jornalistas e, outros, diretamente censurados. O livro traz em detalhes todas essas situa-ções, bastante significativas e também muito divertidas.

Sisudez intelectual
Seria preciso especificar de que tipo de intelectual estamos falando. Há uma diferença grande entre o humor de televisão (outra linguagem) e o humor de imprensa. Eu acho que Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo e o próprio José Simão são herdeiros da linguagem humorística da Belle Époque. Quanto à relação entre os humoristas, estudados no livro, e a cultura modernista, a resposta rápida que eu teria é que o Modernismo paulista se apropriou do humor daquele período transformando-o numa coisa esteticamente definida, mas deixou de lado os humoristas que o criaram. Isso por duas razões: primeiro, porque era um humorismo muito ressentido, fortemente ligado a uma fala macarrônica ou oral e esteticamente anárquico - ele não servia para cons-truir a identidade de São Paulo, sua hegemonia etc., porque, afinal, não dá para construir identidade em cima de ressentimento; o segundo motivo é o fato de esses humoristas historicamente sempre estarem mais ligados a um público amplo e variado e afastados do circuito da literatura culta. Tudo isso coincide, no Brasil, com o incremento de uma onda nacionalista no país, que começa nos anos anteriores à guerra. E os humoristas não agüentavam essa onda, eles tinham de satirizá-la. Surge aí um momento no qual o humor não chega a decair, mas diminui muito do ponto de vista de sua produção.