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Entrevista
Nelson Pereira dos Santos
Em entrevista exclusiva, o cineasta fala das bases que criaram o Cinema Novo e de seu filme baseado na obra e figura de Sergio Buarque de Holanda
Poucos discordam que Nelson Pereira dos Santos seja um dos divisores de águas no cinema brasileiro. Seu Rio 40 Graus, de 1955, detonou uma forte renovação na estética cinematográfica nacional, culminando com o Cinema Novo, do qual foi uns dos expoentes. O diretor, um incansável pesquisador de temas, acaba de concluir as filmagens de um documentário sobre Sergio Buarque de Holanda, tendo como ponto de partida o pensador do autor de Raízes do Brasil. O trabalho será lançado até o final do ano. O tema Brasil, e suas variações, não tem sido novidade na carreira desse paulista, que filmou obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre outros grandes escritores. Como também realizou um mergulho no pensamento de Gilberto Freyre. A seguir, alguns dos principais trechos da entrevista com Nelson Pereira dos Santos, realizada em São Paulo, na Cinemateca Brasileira, onde o diretor fez palestra sobre os 25 anos da morte de Paulo Emílio Salles Gomes - um outro apaixonado pelo Brasil.
Como está seu novo filme?
Eu estou na edição e ele vai ser lançado em novembro. Chama-se Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. É uma série de três episódios. Em 2000 eu fiz o Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, comemorando o centenário dele. Por causa disso, me convidaram para fazer o centenário de Sergio Buarque. Eu aceitei com o maior prazer.
Como você pensou o documentário?
É sobre o livro ou sobre o autor?
Os dois. É uma concentração no livro Raízes do Brasil e depois um texto, um depoimento de Antonio Candido sobre o conjunto da obra e o que significou esse autor na literatura, no pensamento, na sociologia etc. Do outro lado, eu tenho o homem contado pela família. Pela Maria Amélia, a viúva, com 92 anos e uma memória excepcional e uma lucidez invejável. Uma grande companheira do Sergio Buarque. E os outros depoimentos são dos sete filhos, dos quatorze netos e de dois grandes amigos, o Antonio Candido e o Paulo Vanzolini.
Esse mergulho no Brasil sempre foi uma característica sua e isso se dá muito por meio da literatura. Por que essa busca da essência brasileira que sempre permeia sua obra?
A relação com a literatura, para simplificar um pouco, eu costumo dizer que eu tive um bom professor de português no colégio e aplicou todos os alunos na leitura, especialmente da literatura brasileira. Evidentemente, esses autores todos fizeram a minha cabeça na adolescência e juventude e fazendo esses filmes eu devolvo um pouco o que eles me deram, ampliando o efeito que aquela leitura me deu. E eu consigo fazer isso em maior escala por meio do cinema. É claro, também, que é uma outra forma de relacionamento que é a facilidade com que se pode encontrar nos livros os temas tratados de uma forma mais profunda, mais direta, mais inteligente e mais comunicativa do que se tentássemos tratar esses mesmos temas com histórias originais.
Vida Secas, por exemplo, por que você filmou esse livro?
Porque eu queria fazer um filme sobre a seca. Na época, nos anos de 1950, eu fazia documentários para um produtor chamado Isaac Rosenberg e um desses documentos foi feito em 1958 quando houve a famosa seca, chamada de seca do Juscelino. Eu fui lá para o Vale do São Francisco com o Hélio Silva e vi com meus próprios olhos o famoso flagelado, que eu conhecia apenas dos livros de Jorge Amado e Rachel de Queiroz. Foi uma coisa espantosa, uma agressão aos meus olhos paulistas. Daí veio aquela prosápia de jovem: 'vou fazer um filme sobre a seca'. E comecei a escrever uns roteiros, só que toda vez que eu tentava uma história a coisa fica tão superficial que parecia uma matéria de jornal feito por um foca (nome dado ao jornalista iniciante). O que me salvou é que entre os livros de consulta, o primeiro era Vidas Secas. Era um livro considerado tão direto que era quase que um documento científico. Ele não era visto apenas como uma peça literária, mas como um depoimento mais próximo da realidade. Uma análise bem correta do que significa a vida do nordeste e a seca. Eu consultava aquele livro para saber o que o sertanejo usava, como ele montava etc. E nessas, eu me dei conta que o filme estava escrito ali pelo Graciliano Ramos. O texto dele é tão visual e ao mesmo tempo ele trabalha a imagem com muito estilo. Daí, eu pensei: 'é só filmar'.
Dentro dessa questão roteiros originais versus literatura adaptada, o cinema brasileiro não padece da falta de um bom autor de cinema?
Essa história é muito difícil para mim porque eu faço parte do meio. Além de ser uma pergunta nova, eu nunca tinha pensado sobre isso. Histórias originais... eu lembro logo do Glauber Rocha. Ele se recusava a fazer adaptações, embora você encontre na obra dele linhas influência de alguns autores. Deus e o Diabo na Terra do Sol tem uma grande assimilação de Euclides da Cunha em alguns momentos, e em outros de Guimarães Rosa. Mas aí é uma apropriação com total originalidade. Agora, eu sempre pensei em fazer filmes com histórias originais minhas, nos meus primeiros filmes, Rio 40º etc. Mas se a gente observar bem Rio 40º a gente encontra Jorge Amado, Capitães de Areia e mesmo Jubiabá. Aquela coisa de meninos de rua... só não tinha aquela nuvem vermelha que o Jorge Amado colocava em seus primeiros livros, sempre uma perspectiva da Revolução, o happy end era entrar no Partido Comunista. Eu sempre conto essa história. O Jorge Amado era um autor proibido e por duas razões: a família proibia porque ele era muito livre na descrição das cenas de amor, do sexo etc; e por outro lado ele era proibido pela polícia porque havia essa história dele ser comunista.
Mas o senhor lia mesmo assim...?
Ah, eram livros que todos nós líamos às escondidas e comentávamos muito. Mas, bem, voltando a sua pergunta, mesmo uma história original acaba tendo uma influência da literatura. Até o próprio comportamento dos personagens.
Quantos anos de carreira?
Vai fazer 50 anos.
O que dá vontade de continuar filmando?
Há sempre projetos. Eu duvido que um cineasta não tenha projetos próprios mais ou menos articulados. Alguns escritos, outros escritos pela metade, ainda outros anotados e muitos na cabeça. Quem faz cinema sabe que o melhor momento do processo é filmar, a gente entra num estado de graça, é um grande momento de realização pessoal e intelectual. Além do famoso poder do cineasta, de achar que a realidade poderá ser transformada de acordo com nosso desejos por estar sendo filmada aos pedaços. Mas isso depende de recursos. Um filme, por mais curto que seja, custa caro. Está sempre acima das possibilidades que o cineasta tem. Então, é preciso recorrer a medidas, leis. Há sempre essa combinação: o meu projeto com os recursos que eu encontro. Antigamente, na maioria das vezes, o recurso vinha com o projeto. Mas minha vontade é fazer filmes. Se eu estiver com um projeto e não conseguir ir adiante com ele, não vou morrer. Eu quero é filmar. E, sem querer, o meu modo de ser e a minha cabeça passa para as telas.
Havia um certo consenso de idéias que se repetiam de filme para filme e você foi mudando?
Sempre mudando, aprendendo... Rio 40º, por exemplo. Eu subi a favela, filmei não sei quanto tempo tudo aquilo e via todos aqueles despachos de umbanda; mas minha câmera, não. Eu não aceitava aquilo como parte da realidade, eu tinha uma visão muito esquemática a respeito do pensamento mítico do povo. Eu achava que era uma tapeação etc. Mais tarde eu fui fazer o Amuleto de Ogum. A minha mulher, que era antropóloga, estava estudando essas religiões populares e eu tive a idéia de trabalhar esse tema. Foi quando eu tive a oportunidade de entender um pouco e fui desfazendo aquela visão da realidade. Naquela época eu só via ricos e pobres... A religião faz parte da realidade social, não tem como fugir. Outra coisa é em relação ao autobiográfico. Eu sempre evitei, ou achava que evitava, me colocar dentro dos filmes. Depois, com o tempo, eu percebi que não há possibilidade de não se colocar, sempre existe alguma auto-referência. E agora eu estou abertamente favorável a isso. A auto-referência abre caminhos. Mas é preciso ter uma certa maturidade para não resultar num trabalho fechado. Isso eu aprendi também com Graciliano. Memórias do Cárcere é um livro que também é mais que um trabalho literário. O personagem sai da condição dele para se tornar um preso, mas ele está até gostando disso. Porque ele vai mudar. Ele fala para a mulher dele: 'eu vou me livrar desta prisão', referindo-se à vida doméstica, provinciana, à repartição, aos filhos e àquela coisa toda. Ele romantiza a prisão. Ele acha que vai ficar numa cela escrevendo. E a viagem dele é essa de sair dele mesmo, mas com ele mesmo. Em outras palavras, ele vai experimentar coisas que ele jamais poderia se continuasse naquele ramerrão da vida provinciana. Ele coloca todos os fatos que lhe acontecem em comparação com o que ele pensava antes. E ele sempre chega a uma superação, a uma terceira idéia. Esse livro e esse filme que eu fiz foram grandes ensinamentos para essa relação com a vida.
E essa reflexão autobiográfica você tem começado a colocar nos seus trabalhos...
Eu acho que isso sempre passou sem querer, agora eu estou pensando nisso.
Você falou de Amuleto de Ogum. Quando você fez esse filme, nós estávamos ainda numa época sufocante e havia uma certa tensão da esquerda em relação a esse filme, justamente por ele fugir do maniqueísmo típico daquele período...
Eu quis fazer um filme acreditando nos elementos místicos. E o ponto de partida é o cantador cego. Isso já uma metáfora à situação do cinema na ditadura. O cantador é o cinema brasileiro. E ele é preso por três bandidos, que é o Triunvirato Militar. Um diz para ele: 'conte aí uma história de como o Brasil foi descoberto'; o outro pede uma história para criança; e o terceiro quer uma história pornográfica, ele diz 'conte uma história do Bocage'. E era essa situação na qual se colocava o próprio cinema brasileiro. Aí o cantador diz 'vou contar uma história diferente'. E conta a história do amuleto do título. E no final, o próprio cantador tem o corpo fechado. Os bandidos não conseguem matá-lo, ele os mata e sai cantando. Só que ninguém entendeu...
As pessoas te cobravam uma postura, não?
Enfrentar os preconceitos era normal. O primeiro filme que eu fiz em São Paulo foi Estrada da Vida, com o Milionário e José Rico. O que eu ouvi de 'como você vai fazer um filme desses?', foi brincadeira... Era um tipo de música subestimada, ninguém considerava Música Popular Brasileira. No entanto, o produtor do filme me convidou para assistir a um show da dupla no Parque São Jorge e tinha lá 50 mil pessoas. Isso é um fenômeno cultural. Além do mais o meu pai era do interior de São Paulo e eu me lembro dele querendo ouvir música caipira no rádio e eu e meus irmãos queríamos era música americana. Então eu fiz esse filme também em homenagem a ele.
Não existe uma certa ironia que o cinema brasileiro às vezes esteja tão distante da realidade do país?
Acho que tem; também porque o cinema que a minha geração praticou, o Cinema Novo, não é comercial, a gente usava o cinema para ter uma relação com a realidade na sua amplitude cultural, social e política, para ficar como registro. Ninguém estava pensando em fazer filme para ser imediatamente compreendido por milhões de pessoas. Mesmo porque ninguém podia ter essa ilusão, porque os play times das salas do Brasil pertencem aos americanos.
Na sua filmografia como entra o Como Era Gostoso o Meu Francês? Qual era a metáfora?
Era o relacionamento colonizador/colonizado. Era lembrar esse tipo de relacionamento nos dias de hoje, como se dá essa história, pegando pelo exemplo primário do europeu com o índio. O europeu vestido, o índio pelado. O europeu com pólvora e o índio com flecha. Na época em que eu fiz esse filme havia aquela tentativa de poder nuclear no Brasil, então havia referências a isso também. Mas ao mesmo tempo, me deu muito prazer fazer esse filme porque era uma coisa muito ligada a minha infância, litoral paulista. Eu ia para o litoral, fazia acampamentos, Itanhaém, Bertioga, naquele tempo praias desertas...
Você fez um curta metragem sobre o Zé Kéti, não?
Foi o seguinte: o último aniversário em vida do Zé Kéti eu fui lá na casa dele e nós ficamos amigos. Ele estava bem combalido e em homenagem a ele começaram a cantar as músicas dele, foi um momento muito bonito do aniversário. E eu tive a idéia de filmar algo também em homenagem a ele. Mas fica aquela coisa, eu prometi, mas pelas circunstâncias o projeto era adiado e adiado. Passou o tempo e Zé Kéti acabou indo embora para o céu. No dia do enterro, eu encontrei os amigos dele e ficamos falando sobre o filme que não tinha sido feito. Eles disseram 'não tem problema, Nelson; vamos fazer uma sessão espírita'. Eu perguntei 'como?' Ele responderam 'a gente reúne os amigos e chama o Zé'. E o filme é esse. Eu ganhei até um prêmio da Academia Brasileira de Cinema de melhor curta.
E como se chama o filme?
Meu Compadre Zé Kéti; eu sou padrinho do filho dele.