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Velhice não é doença

Elô Rosa
Elô Rosa

ESPECIALISTA EM GERONTOLOGIA APONTA CONSEQUÊNCIAS E DESAFIOS SE NOVA CLASSIFICAÇÃO FOR APROVADA PELA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE

O envelhecimento da população mundial é um fenômeno global, uma conquista e um direito garantido pela legislação brasileira no Estatuto do Idoso e na Constituição. No entanto, a partir de 1º de janeiro de 2022, a velhice poderá entrar sob o código MG2A na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), documento validado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a quantidade de homens e mulheres acima dos 60 anos tem aumentado principalmente nos últimos 20 anos, e esse quadro só tende a se acentuar nas próximas décadas. Ou seja, num mundo cada vez mais longevo, quais os efeitos dessa classificação? Que impactos essa determinação irá gerar na educação, no mercado de trabalho, no âmbito familiar e social? E por que deixamos que o preconceito e a discriminação contra a velhice chegassem ao ponto de enquadrá-la como uma doença? No Sesc Ideias Porque Velhice Não É Doença, transmitido pelo canal do YouTube do Sesc São Paulo, o professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ) Alexandre da Silva, especialista em Gerontologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), levantou fatores responsáveis por esse cenário, que precisa ser revisto urgentemente. Também participou do debate a fonoaudióloga e especialista em Gerontologia pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) Sandra Gomes, que já esteve à frente de políticas públicas voltadas para esse segmento da população. Neste Depoimento, Alexandre da Silva, que também assina uma coluna sobre longevidade no portal UOL, fala sobre etarismo, mercado antienvelhecimento e outras questões que emergem nesse contexto.

RECONHECER E VALORIZAR

Nós ainda somos uma sociedade que valoriza demais a juventude e desvaloriza o velho, as coisas que são velhas, e que não consegue ter outra perspectiva, ou narrativas positivas, protagonizando quem envelhece e quem já é uma pessoa idosa. Vivemos num cenário extremamente focado no consumo. Então, se essa pessoa que hoje habita o planeta Terra – e podemos trazer isso para o Brasil com facilidade – não consome, não produz, não traz uma lucratividade para um grupo que, de certa forma, domina economicamente o mundo, parece que ela não é convidada a existir, a viver e a usufruir da vida. Essa também é uma sociedade que não sabe lidar bem com os corpos envelhecidos. Pessoas com rugas, flacidez, calvície, alguém que pela idade tenha dificuldade para andar, que perde o equilíbrio, que usa uma bengala… A nossa sociedade não entende e não aceita muito bem que esse pode ser um corpo livre e um corpo com desejos.

ANALISAR INDICADORES

Dentro da Organização Mundial de Saúde (OMS) existem várias necessidades que levam à classificação das doenças. Por exemplo: para fins epidemiológicos e para pensar em políticas públicas. Mas, quando se fala em envelhecimento, a gente precisa olhar para além das doenças. Por quê? Porque nós conhecemos muitas pessoas com mais de uma doença, algumas sem qualquer doença e outras com uma doença, pessoas que têm muitas incapacidades leves ou moderadas e que mesmo enfrentando algumas dificuldades no dia a dia, fazem tudo que precisam na vida. Falar da doença para se referir à pessoa idosa não é a melhor maneira. Traduzindo: a doença não é o melhor indicador. Por que não estamos falando do indicador chamado “incapacidade funcional”, que é um indicador mais sensível para falar de possíveis consequências do envelhecimento? Algumas doenças podem acometer as pessoas numa fase mais avançada da vida, podendo afetar aspectos físicos, cognitivos e emocionais. Então, existe essa possibilidade de olhar o envelhecimento de uma forma mais adequada, a partir da incapacidade funcional, mas a gente insiste em querer olhar para a doença. Insiste em ter uma cultura focada mais na doença e não na saúde e muito menos em cuidados adequados. E isso tudo envolve a forma de pensar e agir de algumas pessoas idosas e da grande parte da sociedade.

MERCADO ANTIENVELHECIMENTO

Outra questão é que o mercado quer expandir de qualquer forma, quer se abrir para consumidores, e essa é uma grande armadilha que a gente encontra para entender por que a velhice pode se tornar uma doença. Isso vai abrir um campo para outras frentes de consumo, de lucro, de produtividade. Hoje, quando a gente vai falar desse momento em que corremos o risco de tornar patológica uma fase da vida, que é a velhice, a gente está colocando em discussão possíveis consequências não tão positivas que versam sobre o campo da estética. Então, já que os corpos velhos não são bem-vistos pela sociedade, a gente criou um grande mercado do antienvelhecimento. Se a gente tornar patológica essa fase da vida, é muito provável que tudo aquilo que era estético passe a ser patológico e crie novas possibilidades regulamentadas, porque a velhice se tornaria uma doença.

TRABALHO E EDUCAÇÃO

Quando a velhice, como um todo, se torna algo patológico, a gente também tem uma dificuldade na boa formação de profissionais. Digo boa formação porque nós estávamos começando a observar uma qualidade, um aumento das disciplinas dos cursos de extensão e de pós-graduação sobre envelhecimento. Agora, quando se cria esse código (da doença), acaba-se por colocar tudo sob o mesmo guarda-chuva, ou seja, não há espaço para outras interpretações e diagnósticos. Há de se pensar também que o mercado de trabalho para essa pessoa idosa vai diminuir. Afinal, qual instituição, empresa ou órgão permitirá que pessoas doentes comecem uma atividade laboral? A educação também será prejudicada. A gente fala tanto de envelhecimento ativo, de que o aprendizado ao longo da vida é um pilar importante, mas como é que órgãos públicos, privados e o terceiro setor vão criar formas de educação para quem é considerado doente?

VELHOS E JOVENS-VELHOS

Vai haver também a criação de um paradoxo: pessoas pobres, que por sua vez, historicamente, por suas condições de vida, têm algum diagnóstico de doenças que só acometiam pessoas mais velhas, agora, tendo-as mais cedo, serão mais velhas sem ter envelhecido? Sem terem vivido essa velhice? Portanto, vamos ver esse paradoxo de pessoas mais jovens sendo tratadas como velhas e morrerem de velhice. Além disso, há a questão do plano de saúde, dos seguros de vida que também não vão aceitar novos clientes porque são pessoas velhas, ou seja, pessoas consideradas doentes. A gente vai correr o risco, se isso passar a vigorar, de penalizar as pessoas que ao longo da sua trajetória de vida conseguiram se organizar abrindo mão de um ou outro desejo, uma ou outra aquisição material para envelhecer com saúde. Essas pessoas poderão ser consideradas a partir de janeiro (de 2022) doentes. Muitos dos planos que elas tinham ali elaborado vão cair por água abaixo, porque elas serão vistas como doentes.

 

AINDA QUE ESSE CÓDIGO NÃO PASSE A VIGORAR, A

PERGUNTA É: POR QUE NÓS DEIXAMOS CHEGAR A ESSE PONTO?

 

 

DERRUBAR MUROS

Ainda que esse código não passe a vigorar, a pergunta é: por que nós deixamos chegar a esse ponto? Não vai ser só a não concretização da criação desse código que vai acabar com a ideia de que velhice pode ser doença. Ainda assim, algumas pessoas seguirão achando que “ser velho” é estar sempre doente e vão usar o termo “inho”: “velhinho”, “coitadinho”. Talvez o convite agora seja para a reflexão de todas as sociedades: o que podemos fazer para mudar esse cenário? O que está por trás do pensamento: velhice é doença? Por que a gente, de certa forma, está debatendo que velhice pode ser uma doença e que as outras fases da vida não são doenças? É porque existe uma discriminação contra a pessoa idosa, chamada de idadismo, etarismo ou ageísmo. Assim como outros “ismos” – racismo, machismo –, a gente pode pensar que existem várias manifestações dessa discriminação (contra pessoas mais velhas). A gente não só tem um preconceito, uma ideia que fica na nossa cabeça e que muitas vezes, pelo bom senso e pelos valores, a gente acaba não materializando, mas a discriminação vai além: tenho uma ideia, um preconceito e a partir daí começo a ter práticas e a reforçar outras práticas que vão discriminar. Nessa linha, o idadismo também vai ser manifestado em seu nível estrutural, institucional, interpessoal e internalizado. Quando você me pergunta: como vamos resolver isso? Nós precisamos de certa forma modular todos os momentos, todas as dimensões nas quais todas as discriminações contra a pessoa idosa acontecem.

ETARISMO ESTRUTURAL

Se você fizer uma busca numa rede social: “pessoa idosa saudável”, vai aparecer um padrão de pessoa idosa saudável. Vamos pensar num nível estrutural: qual o olhar mais frequente da população brasileira sobre as pessoas mais idosas? Não é positivo. E isso, de certa forma, acaba sendo incorporado pela pessoa mais velha, que acaba naturalizando esse olhar negativo. Não que os mais velhos se discriminem, mas eles acabam naturalizando a forma como são vistos, pela qual, de certa forma, eles não têm as mesmas qualidades, os mesmos valores, as mesmas virtudes que tinham antes, na juventude, porque o tempo passou. Não reconhecem ou legitimam outras qualidades, virtudes e valores que chegaram com a maturidade. E, nessa dimensão estrutural da discriminação, os mais velhos não entendem que o tempo que passou, os anos acumulados, pode ser de experiências, de aprendizados, de sabedoria, de melhor manejo do perdão, por exemplo. O primeiro ponto, então, é este: mudar essa discriminação que se dá no nível estrutural.

SABERES E PRÁTICAS

Outro momento é a discriminação que ocorre nas instituições públicas e privadas. Quais são os saberes e as práticas vigentes ali? Estamos num sistema democrático, vamos lutar o máximo possível para que seja democrático, e, mesmo nesse sistema, as pessoas idosas não usam esse lugar de fala. Quais são esses saberes e práticas que nós incorporamos na sociedade brasileira? Com certeza não são práticas e saberes da cultura africana, da cultura indígena, da cultura afro-brasileira. Muitas dessas vão ser a favor da presença das mulheres nos espaços, na tomada de decisão, nas chefias, muitas entendem que as pessoas idosas têm uma importância muito grande não só na constituição da família, mas na sociedade. A gente acha que nós, essa geração mais jovem e adulta, criamos a internet, por exemplo. Mentira. Alguém esboçou isso lá atrás, alguém teve essa ideia, alguém deu esse start. Então, tudo que nós temos hoje de facilidade foi criado lá atrás. Esses saberes precisam ser urgentemente incorporados e eles estão aí presentes.

AUTONOMIA NA VELHICE

Outro nível de discriminação é o internalizado: a pessoa idosa chega a um ponto em que incorpora todo aquele estereótipo negativo que fizeram dela. E quando ela tenta sair desse estereótipo, ela pode ser tachada como louca, como uma pessoa com demência e outras coisas. Será que uma pessoa idosa pode falar abertamente que ela ainda tem vontade de ter relações sexuais? Que ela quer experimentar outras vidas, que ela quer morar sozinha depois de anos morando com filho, filha, esposo? Ela quer morar sozinha agora. Por quê? Porque sim, sem precisar dar muita explicação, percebe? Ainda mais a mulher idosa, por exemplo, que já vem de uma posição social e cultural que acumula uma série de tarefas, que cuida dos netos, que prepara a comida da casa, que cuida do marido, e todo mundo acha essas tarefas algo muito “natural”, algo que “nasceu com ela”. Então, são todas essas desconstruções, todas essas marcas que precisamos desfazer e perceber que não deram certo, que estão afetando a saúde e a longevidade da população.

QUESTÃO DE EDUCAÇÃO

Precisamos também entender que essa pessoa que envelhece, sendo discriminada pela idade, talvez já tenha passado pela experiência da discriminação pelo gênero, pela cor da pele, pelo local onde reside, pela classe social da qual faz parte. Ou seja, existe essa intersecção de discriminações que também faz com que a possibilidade de saúde, de longevidade, fique comprometida. Aqui, incluo a importância das ações intersetoriais. Elas precisam estar muito bem orquestradas, costuradas para de fato atender todas as demandas que as pessoas idosas têm. Pessoas idosas precisam ser ouvidas, não precisam de alguém que, a toda hora, fale no lugar dela. Esse é um ponto na questão interpessoal, como é que a gente permite discriminar o outro a partir de um olhar nosso? Partindo de que ponto os jovens discriminam os mais velhos hoje? Isso foi ensinado. Não acho que uma criança nasça pensando que quando ficar maior ela vai discriminar os mais velhos. Isso passa pela educação. Por isso, precisamos pensar o que estamos reforçando no ensino formal e informal, enfim, nos espaços de ensino e de aprendizagem, para que haja essa discriminação contra a pessoa idosa.

 

*Assista ao Sesc Ideias Porque Velhice Não É Doença, disponível no canal do YouTube do Sesc São Paulo


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