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Reflexões sobre a pandemia

Ilustração: Editoria de Arte
Ilustração: Editoria de Arte

Especialistas olham para o passado e fazem uma leitura crítica e criteriosa para formular ideias e, por fim, um conhecimento para a atual e futuras gerações. No entanto, neste momento em que a pandemia provocou e provoca intensas transformações sociais, ambientais, econômicas e políticas, essas análises tornam-se uma tentativa de compreensão do que será do planeta daqui pra frente. Nos dois volumes de Pandemia Crítica Outono 2020 e Pandemia Crítica Inverno 2020, uma coedição das Edições Sesc São Paulo e N-1 Edições, organizados por Peter Pál Pelbart, historiadores, filósofos, biólogos e especialistas de diferentes áreas compartilham os efeitos da Covid-19 num âmbito nacional e global. Ao todo, 150 textos analisam as causas imediatas ou remotas da pandemia, todos registrados desde o começo da crise sanitária, em março de 2020, na plataforma virtual da N-1 Edições. Esses textos foram reunidos e distribuídos, em ordem cronológica, nos dois volumes de Pandemia Crítica. Entre os temas, a mortandade e a vulnerabilidade das populações negras, indígenas e quilombolas; o aumento da desigualdade de condições de vida; saúde e alimentação na sociedade brasileira; as relações de poder entre governantes e governados nesse momento de crise; e as formas como foi conduzida a crise sanitária no país e no exterior. Neste Em Pauta, publicamos o artigo do filósofo e escritor português José Gil e excertos do texto da historiadora e professora Denise Bernuzzi de Sant’Anna.

 

O Medo

José Gil

O que vem aí ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em sofrimento, em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá ser uma tal catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo. Será um desastre planetário e regional, coletivo e individual, já presente e ainda futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros, mas cada vez mais perto. Não é o simples medo da morte, é a angústia da morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo.

As forças que provocam a pandemia pertencem a uma ordem de causas estranha à ordem humana. E, no entanto, põem-na radicalmente em questão. Constatamos agora que a sociedade, as instituições e as leis que criamos para nos protegerem, e nos assegurarem uma vida justa, falharam redondamente. Não construímos uma vida viável para a espécie humana. Os extraordinários disfuncionamentos dos serviços de saúde de tantos países, a falta de coordenação e solidariedade dos estados-membros da União Europeia quando se tratou de ajudar a Itália, a criminosa e leviana arrogância de Trump [Donald Trump, ex-presidente dos EUA] no caso dos testes, a incapacidade de todos os governos de executar uma política sanitária eficaz sem utilizar meios mais ou menos autoritários, todo esse desnorte que deixou proliferar o vírus mostra de sobremaneira que qualquer coisa de profundamente errado infectou, desde o início, a história dos homens. Emmanuel Macron [presidente da França] acaba de descobrir que “a saúde não é uma mercadoria” que tenha um preço. O coronavírus, pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto, torna todos iguais – não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde e à justiça.

Não se trata, como já ouvimos dizer, de pôr em causa a nossa civilização, mas as suas formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de laços sociais cada vez menos aceitáveis. Esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas. O que fazer? Dos órgãos políticos responsáveis vêm-nos ordens e injunções contraditórias. Por um lado, dizem-nos que a luta contra a epidemia só terá êxito se juntarmos todos os nossos esforços individuais, se agirmos solidariamente na consciência da pertença comum à comunidade. Por outro lado, somos incitados a isolarmo-nos, a ficar em casa, a manter o distanciamento social requerido, a não beijar, abraçar, tocar. Cancelam-se os eventos e espaços de lazer, fecham-se as fronteiras. Reduzir-se-á então o nosso contributo a obedecer passivamente ao autoisolamento antissocial?

 

(...) DIZEM-NOS QUE A LUTA CONTRA A EPIDEMIA SÓ TERÁ ÊXITO SE JUNTARMOS TODOS OS NOSSOS ESFORÇOS INDIVIDUAIS, SE AGIRMOS SOLIDARIAMENTE NA CONSCIÊNCIA DA PERTENÇA COMUM À COMUNIDADE

 

Está a surgir, espontaneamente, uma solução “tradicional” de compromisso: a comunidade reencontrar-se-ia na ação de governação de um líder firme. Giuseppe Conte, primeiro-ministro italiano, até aqui sem grande popularidade, tem hoje o apoio da grande maioria do povo. Tomou medidas drásticas, mostrou certezas, acalmou a ansiedade e o pânico da população. Sem dúvida que idêntica adesão popular recebeu António Costa [primeiro-ministro de Portugal], pelas mesmas razões e com a mesma empatia. A energia do medo é absorvida pelo líder e transformada em adesão. Qualquer que seja a sua eficácia, esta não pode ser a única e exclusiva “solução”. Que podemos e devemos fazer, nós que nos fechamos em casa, e que não queremos que o autoisolamento se torne apenas uma defesa egoísta da família, numa atitude que reforça, afinal, o corte com a comunidade?

RECUSA DA PASSIVIDADE

É preciso, primeiro, combater o medo da morte. Para tanto, dois requisitos essenciais, a recusa da passividade e o conhecimento do “inimigo”. Quanto mais ativos, mais aptos, mais fortes para afastar o medo. Se bem que o medo acorde a lucidez, e neste sentido possa ser benéfico, sabemos que ele encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo, limitando o universo a uma bolha minúscula que nos aprisiona e nos confunde. Comunicar com os outros e com a comunidade é furar a bolha, alargar os limites do espaço e do tempo, tomar consciência de que o nosso mundo se estende muito para além dos quartos a que estamos confinados. Foi certamente o que sentiram e fizeram os napolitanos que se puseram a cantar à noite, de varanda para varanda, exorcizando o medo e criando um novo espaço público comum.

Trata-se de combater este medo da morte. Que não é o medo, digamos, habitual, de morrer, mas uma espécie de terror miudinho, subterrâneo e permanente, que toma conta da vida. Não na apreensão do mal final, mas como se a morte, enquanto avesso da vida, enquanto letargia absoluta, rigidez definitiva, paralisia e abismo, viesse ocupar o terreno do nosso tempo cotidiano. É contra a tendência a sermos capturados por um tal sentimento de medo que é preciso lutar – precisamente, mantendo-nos ativos e preocupados com os outros e a vida social de que fazemos parte.

Este medo é, sobretudo, o medo dos outros. O contágio vem inopinadamente, violentamente e ao acaso. Qualquer um, estrangeiro ou familiar, pode infectar-nos. O acaso e o contato passam a ser perigo e ocasião de morte possível, e todo encontro, um mau encontro. Neste sentido, o outro é o mal radical. A relação com os outros e a comunidade sofre um abalo profundo. O laço social, que, mais do que na inveja e no amor-de-si, se enraíza no “amor” ao outro (como afeto gregário da espécie), encontra-se comprometido, ameaçando romper-se. O outro é o inimigo, que quer a minha morte: do medo do ataque mortal ao pânico paranoico vai apenas um passo. A epidemia do novo coronavírus faz também emergir, à tona da consciência social, o pior das nossas pulsões mais sedimentadas. Mas também o melhor: aquele afeto, presente desde sempre em certas profissões, como a dos médicos e enfermeiros, torna-se agora plenamente visível aos olhos do cidadão planetário.

Um fenômeno inédito está a surgir: a pandemia transforma a percepção que se tinha da globalização. Sabíamos que ela existia, conhecíamos os seus efeitos (financeiros, climáticos, turísticos), mas só raros tinham dela uma experiência vivida. Graças ao coronavírus, e pelas piores razões, o homem comum tem agora, ao longo do seu tempo cotidiano, a experiência da globalização. Deixou de ser abstrata, tornou-se uma globalização existencial. Vivemos todos, simultaneamente, o mesmo tempo do mundo.

LÁ NA FRENTE

Qual o futuro desta transformação? Podem-se adivinhar já certos efeitos. A consciência planetária do perigo de morte traz consigo uma certa percepção, imediata e concreta da humanidade, como comunidade viva e nua. Para além do que separa os homens, há o que os faz simplesmente humanos, a vida, a morte, o poderoso direito a existir, sem condições nem prerrogativas. O que implica um igualitarismo primário e primeiro, entre os indivíduos e entre os povos. As peripécias dos protecionismos xenófobos e racistas de Bolsonaro e de Trump, em tempo de crise pandêmica, parecem patéticas quando confrontadas com este espírito mundial que se está a formar.

Por outro lado, a informação veiculada pela comunicação social, a dependência de cada cidadão de um país relativamente aos cidadãos de outros países, a exigência premente de coordenação das políticas de saúde (e não só) de diferentes nações, o trabalho em rede de cientistas por todo o mundo está a levar à criação progressiva de poderes transnacionais. São tudo bons sinais que se desenham no horizonte. Acreditamos que tal evolução das consciências só poderá beneficiar a luta decisiva, que virá em breve, contra as alterações climáticas.

Mas os bons sinais não chegam para nos sossegar. Tanto mais que o medo que nos invade não para de se avolumar. No momento em que escrevo, chovem de todos os lados, da Europa, da América, do Oriente Médio e da Ásia, as notícias mais alarmantes. A pandemia cresce como um tsunami mundial, derruba e mata numa avalanche incontrolável. O medo não é uma atmosfera, é uma inundação. Como resistir, como desfazer ou pelo menos atenuar o medo que nos tolhe? Com mais conhecimento, sim, e mais informação, e mais entreajuda e racionalidade. Resta-nos sobrepor ao medo que nos desapropria de nós, o medo desse medo, o de sermos menos do que nós. Resta-nos, se é possível, escolher, contra o que nos faz tremer de apreensão e nos instala na instabilidade e no pânico, as forças de vida que nos ligam (poderosamente, mesmo sem o sabermos) aos outros e ao mundo.

Publicado no jornal O Público em 15 de março de 2020

JOSÉ GIL é filósofo, ensaísta e autor português de diversas obras, entre elas Metamorfoses do Corpo (1980), O Tempo Indomado (Relógio D’Água, 2020) e Fernando Pessoa, ou a Metafísica das Sensações (N-1 Edições, 2020).

 

 

Lavar as mãos, descolonizar o futuro

Denise Bernuzzi de Sant’Anna

Quando Semmelweis1 propôs aos obstetras que lavassem as mãos, seus colegas não o levaram a sério. Lavar as mãos entre a dissecação de um cadáver e um parto viria a reduzir significativamente o número de mortes, causadas pela febre puerperal. Contudo, na época de Semmelweis, havia o pressuposto de que era comum morrer no parto, ainda mais se tratando de mulheres pobres. É digno de nota que Céline2, ele próprio médico e obstetra, tenha começado sua carreira literária com um livro sobre Semmelweis. Céline exaltou a inventividade desse médico, em contraste com quem não admitia novas teorias porque estas ameaçavam poderes e vaidades. Para o escritor, devido à estupidez de alguns, o singelo gesto de lavar as mãos foi adiado e muitas mulheres continuaram a morrer de febre puerperal.

Há, sem dúvida, uma resistência bem conhecida à novidade, típica de alguns membros da comunidade científica; há também uma história das mentalidades que não pode ser ignorada, assim como o papel do paradigma científico de cada época, a episteme de cada cultura. Há, enfim, o medo daqueles médicos de perderem a autoridade se admitissem serem eles o veículo da morte das parturientes. Não obstante todos esses fatores, o que Céline nos obriga a pensar, e que a pandemia da Covid-19 explicita, é a pequenez dos estúpidos e o quanto eles são maléficos, especialmente quando têm poder.

Somente depois da morte de Semmelweis, em 1865, houve o desenvolvimento da microbiologia e uma mudança significativa no imaginário dos “monstros invisíveis”. Especialmente nas últimas duas décadas do século XIX, o estudo dos micróbios ampliou milhares de vezes o território do medo e da prevenção: não bastaria evitar os eflúvios nauseabundos, vindos de cemitérios, hospitais ou locais considerados pestilentos. Os conhecidos cuidados de defumar a casa, usar rapé e habitar regiões distantes dos ares infectos deixavam de ser estratégias suficientes para cultivar a boa saúde. Os micróbios exigiram vigilâncias até então incomuns e, a princípio, todos eram igualmente vítimas da mesma ameaça invisível a olho nu. Mas rapidamente a desigualdade social se impôs: os pobres teriam mais micróbios do que os ricos. Prostíbulos e tabernas seriam lugares propícios ao contágio.

Acreditando ou não nessas suposições, lavar as mãos tornou-se uma obrigação incontestável aos trabalhadores dentro dos hospitais. O cenário das cirurgias também mudou, demandando a esterilização, pelo calor, dos instrumentos médicos e o emprego do ácido fênico como desinfetante. Nascia a moderna assepsia enquanto caía no esquecimento tanto a crença nos antigos miasmas quanto o sossego de crer que a sujeira estava apenas no que se via a olho nu.

Por um lado, o medo dos micróbios e a luta para combatê-los integram uma longa história, repleta de tentativas para detectar o perigo, torná-lo visível, isolável e controlável. Por outro, esse perigo foi inúmeras vezes apropriado por interesses espúrios, denegado ou transformado em oportunidade para as piores exclusões. Se o gesto de lavar as mãos, assim como o famigerado enunciado, comporta vários sentidos – religioso, profilático, político e antissemita –, por trás deles podemos encontrar os ideais de cada época e também a estupidez. E ela, como bem viu Céline, fornece um recorte extemporâneo a esses múltiplos sentidos.

PESTES E MONSTROS

Recordemos rapidamente algumas monstruosidades e soluções encontradas para as epidemias do passado. A peste bubônica, que assolou a Europa no século XIV, foi muito diferente do antigo flagelo da lepra. Em sua versão pulmonar, ela podia matar em dois dias. O contágio se espalhou com uma rapidez assustadora. Inúmeras cidades do Mediterrâneo foram devastadas, provocando um deslocamento do eixo comercial rumo à Europa do Norte, incluindo Flandres. Diante de seus trágicos efeitos, o contágio entre os humanos se tornou um tema fundamental, levantando desconfiança sobre missas e eventos que favoreciam a aglomeração de pessoas.

Não demorou muito para que suspeitas antigas fossem evocadas: a peste seria um castigo de Deus aos pecadores. Preces, queima de imagens demoníacas, autoflagelação… as formas de exorcizar o mal confirmavam a crença em uma dependência incontestável entre as forças sobrenaturais e a vida humana. Mas também houve quem anunciasse que os judeus eram os culpados porque teriam envenenado os poços de água, provocando a peste. Muitos foram perseguidos e mortos em fogueiras. O fogo, pensavam, tudo purifica.

Os “missionários de Satanás” também podiam ser mulheres consideradas devassas, judias ou não, homens acusados de pederastia, pessoas suspeitas de feitiçaria. Em meio ao cenário diabólico promovido pelos humanos, surgiu a hipótese de que os ratos seriam uma pista importante para detectar a causa do mal. Bem mais tarde, a propaganda nazista se encarregou de juntar “judeus e ratos”, como se fossem igualmente infecciosos. Mas, na época dos nazistas, já se sabia que o transmissor do mal não eram os ratos, mas o bacilo transmitido pelas pulgas instaladas naqueles roedores.

Toda a milenar história das pandemias foi pontuada pela insistência em “caçar os culpados” e por perseguições que em nada contribuíram para reduzir as mortes e a doença. Junto aos progressos da microbiologia dos séculos XIX e XX, por exemplo, a associação entre cortiços, preguiça, alcoolismo e degeneração acirrou a suspeita sobre populações consideradas “naturalmente perigosas”. Não por acaso, no mesmo ano do advento da Comuna de Paris, a capital francesa foi acusada de ser a “tumba da raça”, o antro do “vírus da revolta”. As sucessivas epidemias de cólera e tifo ajudavam no declínio demográfico da França e no aumento do medo de perder a guerra para os prussianos. Autoridades públicas anunciavam na imprensa que a maior parte dos problemas se concentrava no ócio e na promiscuidade daqueles que, conforme um célebre livro de Louis Chevalier3, eram considerados pertencentes às “classes perigosas”.

 

PESTES E GUERRAS, MÉDICOS E MILITARES, DOENTES E MONSTROS INVISÍVEIS: ESSES PERSONAGENS SÃO CENTRAIS PARA COMPREENDER A MEMÓRIA QUE HOJE FORJA BOA PARTE DE NOSSOS MEDOS E AÇÕES DIANTE DA PANDEMIA PROVOCADA PELA COVID-19

 

Em meio ao progresso industrial, a ameaça dos micróbios serviu para aguçar o medo de a “raça degenerar” e o temor de os varões perderem a virilidade. Como em outros momentos da história, os casos de sífilis eram vistos como a expressão de uma podridão do sexo, transmitida pelas mulheres. Mas, agora, a invenção das histéricas vinha ao encontro da necessidade de converter as taras masculinas em problemas naturais da sexualidade feminina. Com a importância intrigante que Freud deu ao inconsciente, o ideal viril da burguesia triunfante e colonizadora estremeceu mais uma vez. O imaginário de um sujeito em meio a monstros externos invisíveis e, no seu íntimo, descentrado e cindido, contribuiu para que os poderes securitários se desenvolvessem em forma de pregadores, policiais e eugenistas, defensores das supostas virtudes da castidade e do trabalho.

A hecatombe da Primeira Guerra Mundial acabou por expor mais um novo tipo de abalo no ideal das “raças superiores”. Por um lado, nessa guerra, diferentemente das anteriores, os homens foram reduzidos a ratos dentro das trincheiras ou a rãs a rastejar em meio a terrenos minados. Por outro, o mundo que nasceria dessa guerra, e também dos cadáveres da “gripe espanhola”, em 1918, que matou mais de cinquenta milhões de pessoas, seria o de uma mobilização médica e científica sem precedentes.

As novas armas da Primeira Guerra não provocavam os mesmos ferimentos causados pelas conhecidas espadas ou balas de revólver, pois os estilhaços das bombas dentro dos corpos dos soldados tinham uma trajetória incerta, múltipla, difícil de perceber. Lembravam o formigar de micróbios nos corpos dos doentes da gripe espanhola: espalhavam-se e entranhavam-se em órgãos, veias e nervos. Dificultavam a cirurgia, a reconstituição dos tecidos, o controle das infecções. Os famosos gueules cassées (caras quebradas), mostrados nos jornais de vários países, impunham ao mundo o estilhaçar irreversível da figura humana e que, certamente, determinaria todas as tecnologias de poder e as artes dos anos seguintes.

Pestes e guerras, médicos e militares, doentes e monstros invisíveis: esses personagens são centrais para compreender a memória que hoje forja boa parte de nossos medos e ações diante da pandemia provocada pela Covid-19. Esta também vem sendo vivida em meio às duas tendências enunciadas por Céline: a estupidez e a inventividade. Contudo, as armas de ataque e defesa são outras. As possibilidades de sobreviver e de antecipar um futuro mais justo também.

São Paulo, 26 de março de 2020

DENISE BERNUZZI DE SANT’ANNA é historiadora, professora livre-docente de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especialista em História do Corpo, autora de História da Beleza no Brasil (Contexto, 2014), Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (Senac, 2019), entre outros livros.

 

1  Ignaz Philipp Semmelweis foi um médico húngaro de ascendentes alemães, conhecido como um pioneiro dos procedimentos antissépticos (1818-1865).

2  Louis-Ferdinand Céline, pseudónimo de Louis-Ferdinand Destouches, conhecido simplesmentenpor Céline, foi um escritor e médico francês (1894-1961). Autor de vários livros, entre eles A Vida e a Obra de Semmelweis.

3  Louis Chevalier foi um historiador francês com interesses em geografia, demografia e sociologia. Grande parte de seu trabalho foi dedicado à história da cultura francesa e de Paris (1911-2001).

 

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