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Língua popular brasileira

Luciano Piva
Luciano Piva

MESTRE E MAESTRO DO NOSSO IDIOMA FALA SOBRE A IMPORTÂNCIA DA LEITURA, A DECOLONIZAÇÃO LINGUÍSTICA E ADAPTAÇÃO À PLURALIDADE

Os primeiros livros chegaram às mãos de Pasquale Cipro Neto pouco antes de ele completar cinco anos. Quando começou a ler, deixou-se encantar pela palavra. Desde então, o professor, jornalista, colunista e escritor guaratinguetaense dedica-se à “última flor do Lácio, inculta e bela”, como descreveu o poeta Olavo Bilac (1865-1918). Sobre a mesa do escritório ou no computador, textos clássicos e modernos, peças de publicidade, notícias e letras de música são ferramentas para o ensino e aprendizado. Assim, ao longo de mais de 40 anos, o Professor Pasquale alternou-se entre sala de aula, jornal, rádio e televisão, com o programa Nossa Língua Portuguesa, que por duas décadas foi ao ar pela TV Cultura. “Gente de diversos setores da atividade cultural e artística, como escritores, cantores, compositores e atores, Deus e o mundo passaram por lá. Tom Jobim esteve em Nossa Língua Portuguesa. Eu tive a honra de ter isso no meu currículo: eu entrevistei Tom Jobim. Já posso ir para o céu”, brinca. Atualmente, Pasquale segue nos apontando os mistérios e as belezas de nosso idioma no programa Nossa Língua de Todo Dia, pela rádio CBN, de segunda a sexta-feira. Neste Encontros, o estudioso conta um pouco de sua trajetória e os atuais desafios do idioma de nossa terra.

PROFESSOR DE PORTUGUÊS

Comecei a dar aula em 1975 e estive em sala de aula, exercendo o ofício, até 1998, regularmente. Depois, de 1998 a 2012, dei aulas especiais. Sempre procurei trabalhar a língua como objeto vivo. Viemos de uma escola muito presa à tradição e o professor de português é vinculado a uma ideia ultrapassada de “certo e errado”, quando precisamos falar de “adequado e inadequado” e de todas as facetas que a língua assume. Sempre trabalhei com textos clássicos, modernos, com a linguagem da publicidade, do jornalismo e letra de música. Exerci durante muito tempo duas profissões: a de jornalista e a de professor. Trabalhei nos anos 1970 na revista Veja, na revista Placar, em várias coleções da Editora Abril, como Imortais da Literatura, Teatro Vivo e tantas outras obras publicadas pela Abril. Trabalhei no grupo O Estado de S. Paulo, mais especificamente, no Jornal da Tarde. E em 1989 entrei na Folha de S.Paulo, onde fiz de tudo: fui colunista, escrevi sobre o meu assunto e outros assuntos em vários cadernos. Lá também montei um programa de reciclagem de jornalistas, em que fiquei por quase 28 anos. Sempre procurei dar à questão da língua a exposição mais ampla possível, para que as pessoas percebam que a língua é um leque imenso em que cabem muitas possibilidades.

NOTORIEDADE NA TEVÊ

A popularidade aconteceu talvez por uma dessas questões do imponderável. Um dia, a rádio Cultura de São Paulo, dirigida na época pela Maria Luiza Kfouri, que chamamos afetivamente no meio radiofônico como Mana, quis fazer um programa que falasse de português, mas não como um curso tradicional. Apresentei um projeto e gravei um programa piloto, que foi escolhido. O programa de rádio estreou no dia 31 de março de 1992, e, já no ano seguinte, a Mana um dia me disse: “A gente tem que falar como o [Roberto] Muylaert – que era o presidente da Fundação Padre Anchieta –, porque esse programa tem que ir também para a televisão”. Em 1994 estreou na TV Cultura o Nossa Língua Portuguesa, que era uma extensão do programa de rádio, uma extensão das minhas aulas. Gravei seis meses de programa: 26 programas [periodicidade semanal]. Era para ter seis meses de vida e durou 20 anos. Houve uma época em que o programa tinha duas partes: uma parte em que eu falava especificamente de questões da língua e outra parte em que eu levava um convidado para falar sobre a língua. Gente de diversos setores da atividade cultural e artística, como escritores, cantores, compositores e atores, Deus e o mundo passaram por lá. Tom Jobim esteve em Nossa Língua Portuguesa. Tive a honra de ter isso no meu currículo: entrevistei Tom Jobim. Já posso ir para o céu.

 

EU ACREDITO PIAMENTE NA LEITURA E NA INQUIETAÇÃO

 

ESCOLHA DE TEMAS

Sem falsa modéstia, tenho uma memória de elefante. Treino muito isso aqui em casa. Quando a gente está almoçando, pego aquela palavra que surgiu numa conversa, canto um pedaço de música ou já cito um texto literário – um poema, uma crônica ou qualquer coisa assim. Para ter uma ideia, na CBN, quando respondo a um ouvinte – porque quem manda no programa é o ouvinte –, ponho uma, duas, três músicas para ilustrar aquilo que vou dizer. Tiro isso lá do fundo do baú da minha memória. Ouço música desde sempre. Aprendi a ler antes dos cinco anos de idade, tenho essa fixação pela leitura, passo o dia inteiro lendo alguma coisa. Quando abro os e-mails dos ouvintes, vou vendo as dúvidas, redijo o que tenho que redigir para mandar a questão para a produção e assim vai. Na Folha, nas mais de mil colunas que escrevi – também escrevi mais de 500 colunas no Globo –, eu não podia repetir [o assunto]. Na Folha, eu escrevia às quintas, e no Globo, aos domingos. Imagina montar duas colunas por semana? Era de enlouquecer. E o assunto era escolhido sempre de acordo com alguma coisa que acontecesse naqueles dias ou era uma coluna fria, que não dependesse dos fatos e que eu pudesse tomar por base um tema qualquer que tivesse algum apoio literário, da música.

LETRA DE MÚSICA

Minha memória é limitada a um certo período. Não conheço a música de uns tempos para cá do jeito que conheço as músicas de uns tempos pra lá. Por isso, muitas vezes preciso estudar. Vou atrás de obras mais recentes, que não conheço tão bem. Justamente para atingir um público diferente daquele que atinjo quando toco Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, Elis Regina, João Gilberto, e por aí vai. Lembro que uma vez entrevistei o querido Chorão (1970-2013). Pouco conhecia da obra dele. Eu levei o Chorão para o Nossa Língua Portuguesa porque eu sabia que ele estava na crista da onda, eu sabia que ele atingia um público grande e importante, mas eu não conhecia muito do trabalho dele. O que fiz? Estudei muito, li e fiz a entrevista com ele. Lá pelas tantas, ele me falou: “Puxa, estou muito contente. Eu não sabia que você conhecia tão bem o meu trabalho”. De fato, fui conhecer para fazer o programa, para ter argumento, para conversar com ele. É um trabalho feito de propósito para atingir um espectro mais largo de público. 

PRAZER, MACHADO

É muito importante adequar a seleção da obra à idade do público. Acho complicado colocar Machado de Assis (1839-1908) direto para jovens que não têm experiência e vivência com textos literários. Isso pode, num primeiro momento, mais afugentar do que aproximar. Nós temos muitos trabalhos importantes de escritores que estão diretamente ligados às temáticas juvenis, infantojuvenis e que são condizentes com a idade do público escolar. Aí, sim, a gente pode, depois de algum traquejo, introduzir também os clássicos. Mas nessa hora [de introdução dos clássicos], o professor de português ou o professor de literatura são fundamentais. Precisam fazer uma leitura acompanhada, precisam até traduzir. Há muito professor de português que não consegue ler Machado de Assis. Quando a gente pega, por exemplo, o primeiro parágrafo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o narrador explica por que decidiu escrever o livro como escreveu, quando questiona começar pelo fim, Machado usa ali estruturas sintáticas e um vocabulário que hoje em dia não funcionam mais. Então, se o professor não souber explicar aquilo, a leitura já começa torta na primeira página, não se entende aquilo e perde-se muito do sabor que está naquele livro. Acho muito importante que essa indicação das obras seja muito bem-feita e condizente, respeitando o universo do leitor, mas, aos poucos, deve ser feito um trabalho para que esse leitor também se aproxime desses outros registros. A gente não pode ter a ilusão de que só com o registro recente, só com o registro moderno, forma-se um arcabouço sólido. A gente precisa ampliar isso. Mas, como dizia Paulo Freire [educador e um dos pensadores mais notáveis na história da Pedagogia, 1921-1997], o professor tem que respeitar aquilo que o aluno traz de casa e depois, com técnica, com sabedoria, com consciência, introduzi-lo num outro universo que complemente os universos que ele já tem.

CULTIVAR PALAVRAS

Vocabulário é leitura. É convívio com as palavras. Sem esse convívio não se amplia o vocabulário. Existem teses por aí que falam do número médio de palavras dominadas por boa parte da população brasileira: de 300 a 500. Obviamente não se incluem aí as variações (menino, menina, meninos, menininha, meninada etc.). O universo de palavras aumenta à medida que a gente lê. Então, não há outra possibilidade que não seja esta: a leitura. E a palavra tem que despertar a curiosidade. Quando a pessoa não sabe, ela tem que ir ao dicionário, tem que ir atrás e procurar usos. Uma coisa que eu sempre fazia, e faço, é explorar muito a etimologia [estudo da origem e da evolução das palavras]. Porque a etimologia é um mundo. Quando a gente vai atrás da etimologia, quando a gente descobre o que está por trás da história, da origem e da evolução das palavras, o nosso universo se amplia. Acredito piamente na leitura e na inquietação.

LÍNGUAS EM PORTUGUÊS

“Há uma verdadeira língua portuguesa.” Esse é um pensamento colonizador. Quer dizer, há portugueses – porque não são todos os portugueses – que pensam assim e continuam achando que têm o direito de sair de lá, de chegar aqui, de fazer o que fizeram, de impor a língua deles, de colocar o [Marquês de] Pombal para extinguir a língua geral etc., e que deveria sobrar só o que eles trouxeram, e que não há fusão. Esse é um pensamento eugenista, um pensamento lamentável. Fico com José Saramago [escritor português, Nobel de Literatura de 1998, 1922-2010], que diz num documentário antológico e que eu recomendo a todos, Língua – Vidas em Português (2001), de Victor Lopes: “Não há uma língua portuguesa. Há línguas em português”. Isso é genial. Por isso, dizer que a língua portuguesa “de verdade” é a de lá é algo limitado, limítrofe. Nós falamos português, sim: a vertente brasileira do português. No programa número um do Nosso Língua Portuguesa, eu tratei desse assunto, isso foi em 1994, e um dos participantes foi o querido Haroldo de Campos [poeta, tradutor e crítico literário, 1929-2003]. Brilhante, ele defendeu a tese de que nós temos a vertente brasileira do português, mas é português. Também entrevistei no Nossa Língua Helder Macedo, escritor português maravilhoso, primeiro não britânico a dirigir a cátedra Camões no King’s College, da Universidade de Londres. Helder tinha acabado de lançar um livro antológico, Viagem de Inverno e Outros Poemas (Record, 2000), que foi o centro da nossa conversa. Ele disse: “Não penso que existam escritores brasileiros e portugueses, existem escritores de língua portuguesa”. Então, é por aí.

LINGUAGEM NÃO BINÁRIA

É sempre importante lembrar que a língua é um fenômeno natural. Os processos em língua acontecem naturalmente, não acontecem por imposição. Entendo perfeitamente os argumentos de quem usa a linguagem inclusiva, a linguagem neutra, não binária. Acho que, em certas situações, ela é absolutamente contundente e forte, mas ela ainda não se materializa na prática. As pessoas ainda não dominam esse registro porque ele não é um registro natural, é um registro que vem de fora. Quando a gente pega, por exemplo, o “e” e põe “alunes”, isso é uma saída que se encontrou para esse tipo de coisa. Mas note que não se usa, por exemplo, nessa linguagem, o artigo transformado em elemento neutro, por exemplo “es alunes”. Não tenho visto isso. Mas é uma questão para pensar, porque ela mostra como o processo é delicado, difícil. Deve haver, sim, todo o espaço para toda a diversidade. A gente tem que abrir os olhos para essa questão e conviver com o fato de que não tem mais volta a ideia da pluralidade, a ideia da diversidade. Isso é um fato cabal, consumado. Precisamos prestar atenção nessas questões de linguagem e ver como as coisas se desenvolvem. Se isso naturalmente se acomodar, assim será, o tempo dirá.

 

Assista ao vídeo desse Encontros com Pasquale Cipro Neto

 

 

 

 

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