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Fotos: Rob Verf
Fotos: Rob Verf

PESQUISADORA E CURADORA ARGENTINA REFLETE SOBRE AS CONEXÕES ENTRE VANGUARDAS ARTÍSTICAS DE PAÍSES LATINO-AMERICANOS E A SEMANA DE 22

 

Enquanto era organizado, na capital paulista, um dos eventos artísticos mais importantes da História do Brasil, capitaneado por Mário e Oswald de Andrade, entre outros modernistas, na Argentina e em outros países da América Latina, artistas engendravam seus próprios movimentos de ruptura com o passado e com a hegemonia da cultura europeia. Quem estuda esse cenário pouco descrito nos livros de História é a curadora e autora de diversas obras sobre arte latino-americana e internacional Andrea Giunta, pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) na Argentina. É ela quem nos brinda com uma nova mirada da Semana de Arte Moderna. Professora convidada na Duke University (Estados Unidos) e na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris (França), Giunta participou, em setembro, da ação Diversos22 – Levantes Modernistas, realizada pelo Sesc São Paulo e que reuniu outros estudiosos para reflexão do significado da Semana de 22 no século de seu centenário (leia Ecos do Modernismo, matéria publicada na Revista E nº 299, de setembro de 2021). Convidada para o painel Modernismo e Utopia, a pesquisadora traçou pontos de intersecção entre as manifestações artísticas no Brasil e em países vizinhos na década de 1920. Em entrevista à Revista E, a curadora da 12ª Bienal do Mercosul (2020), em Porto Alegre, fala sobre personagens e publicações que ficaram à margem dos holofotes e reforça a importância do que o modernismo tem a dizer para a atualidade. “Ao abordar a copresença de diferentes linguagens artísticas em um mesmo evento, a Semana de 22 instituiu uma experiência inaugural de interação estética na arte da América Latina”, descreve.

A Semana de Arte Moderna brasileira de 1922 está prestes a completar 100 anos e suas ideias ecoam ainda hoje. Que análise faz a repercussão desse movimento?

Ao abordar a copresença de diferentes linguagens artísticas em um mesmo evento, a Semana de 22 instituiu uma experiência inaugural de interação estética na arte da América Latina. A irrupção que despertava as pinturas de Anita Malfatti (rechaçadas pela crítica conservadora) foi celebrada nesse contexto. O papel de vanguarda da Semana se confirmou. Hoje, estamos em um momento de revisão e de reflexão. Em primeiro lugar, a questão que me interessa é: essa expressão de vanguarda deve ser entendida numa relação de influência, derivada, periférica, em relação às vanguardas europeias? Futurismo, dadaísmo, cubismo são comumente mencionados. Mas podemos pensar de outra maneira? O fato de que as exposições, os concertos e as conferências reunidos naquela ocasião foram denominados Semana de 22 coincidiu com um episódio fundador do Brasil, o centenário da Independência, que trouxe para essa celebração um compasso diferente. A independência estética, de ideias e de conceitos apresentados naquele encontro apontava para um caminho singular, brasileiro. Hoje estamos num intenso processo de revisão de nossas histórias da arte.

 

HOJE ESTAMOS NUM INTENSO

PROCESSO DE REVISÃO

DE NOSSAS HISTÓRIAS DA ARTE

 

Sob que aspectos?

Nesse processo [de revisão de nossas histórias da arte], deixamos de lado a explicação baseada na ideia de influências ou periferias para caracterizar os movimentos artísticos latino-americanos a partir de sua especificidade. É interessante pensar que é também em 1922-1923 que se formula outro momento crucial da arte latino-americana: o muralismo mexicano. Por que temos que pensar na Semana de 22 em relação às vanguardas europeias e não em relação às vanguardas latino-americanas, simultaneamente? Nessa avaliação, são considerados os cenários artísticos latino-americanos, seus artistas e obras, suas instituições e seus públicos. Observadas sob tal perspectiva, as vanguardas latino-americanas não são totalmente explicadas a partir de conceitos derivados, mas de suas propostas inovadoras.

No caso brasileiro, quais seriam essas propostas?

A análise da Semana de 22 torna necessária a observação de aspectos específicos. De forma breve, poderia afirmar: o feito inédito de uma mulher artista, Anita Malfatti (1889-1964), ser reconhecida como uma artista disruptiva e vanguardista. A história clássica da arte moderna europeia é baseada na relação entre vanguarda e masculinidade. O fato de que a Semana de 22 apresentou um novo mapa cultural no Brasil como sintoma da consolidação de outro polo cultural, São Paulo, assinala uma relação com a inovação e a modernidade ao se desvencilhar, naquele momento, do Rio de Janeiro, ligado a um passado imperial. A presença polêmica e rebelde de Oswald de Andrade (1890-1954) ressaltou a ideia de ruptura e estabeleceu um novo cenário. A Semana marcou também a relação entre a literatura e as artes visuais, característica da vanguarda brasileira ratificada pela relação entre Oswald e Tarsila do Amaral (1886-1973), quando formulam o movimento antropofágico [manifestação cultural e artística que ocorreu durante a primeira fase do Modernismo no Brasil]. Esta, aliás, é uma característica poderosa e única da arte brasileira.

A crítica à falta de reconhecimento de mulheres artistas no modernismo brasileiro, exceto aquelas que foram popularizadas, como Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, ganha força e novos contornos. Qual sua reflexão sobre esse cenário?

A arte brasileira é produzida em um cenário em que as mulheres artistas não só participam, mas são centrais. Essa posição não é frequente. São muitas as artistas que ocupam um lugar de destaque internacional. Penso em Lygia Pape, Mira Schendel, Ana Maria Maiolino, Anna Bella Geiger, Carmela Gross e Regina Silveira, dos anos 1950, 1960 e 1970. Ou em Rosângela Rennó e Adriana Varejão, para citar alguns nomes mais recentes. São muitas as artistas brasileiras reconhecidas desde o início do século 20. Ao mesmo tempo, se observarmos em termos comparativos como se constituem as exposições e coleções de museus, ou os artistas representados por galerias, ou presentes em coleções privadas, verificaremos que as mulheres artistas não são representadas de maneira equivalente. E, mais ainda, a perspectiva interseccional, que dá conta da relação entre feminismo e raça, revela a ausência de artistas negras. Essa disparidade e essa falta de representatividade começam a ser revistas com políticas institucionais que envolvem instituições de ensino e museus. O museu Afro Brasil e as ações expositivas do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e da Pinacoteca de São Paulo indicam, principalmente, uma intervenção contundente para ampliar o conceito de arte brasileira e para obter uma representação grandiosa das contribuições de artistas de um país tão rico em tradições culturais, muitas delas decorrentes de sua relação com a África.

 

POR QUE TEMOS QUE PENSAR NA SEMANA DE 22

EM RELAÇÃO ÀS VANGUARDAS EUROPEIAS E NÃO EM RELAÇÃO

ÀS VANGUARDAS LATINO-AMERICANAS, SIMULTANEAMENTE?

 

 

Quais são as semelhanças e diferenças entre o modernismo brasileiro e o que floresceu na Argentina?

Na vanguarda argentina não temos um acontecimento inaugural inovador como a Semana de 22. Porém, a revista Martín Fierro, em 1924 (precedida por Prisma e Proa), e posteriormente, a revista Arturo, em 1944, apontam a singularidade desses movimentos de vanguarda que se originam das revistas. Na Martín Fierro há uma forte relação entre literatura, pintura, cinema e arquitetura. As páginas da Martín Fierro são a plataforma que torna visível a coexistência desse inovador cenário de vanguarda. Um cenário que também possui um episódio “escandaloso”, demonstrado pela exposição de Emilio Pettoruti (1892-1971) na Galeria Whitcomb, em Buenos Aires, no ano de 1924 [na primeira exposição do artista portenho, 11 anos após residir na Europa, suas obras de vanguarda provocaram o olhar da crítica]. E, em 1944, a revista Arturo foi o ponto de partida do movimento regional de arte abstrata que envolvia artistas da Argentina, do Uruguai, do Brasil e do Chile. Também avalio que tanto na Argentina quanto no Brasil são poderosas o que denomino “metáforas de enraizamento”, que buscam a partir das obras e das publicações estabelecer uma relação próxima com o território local. No Brasil com a Revista de Antropofagia, e na Argentina com a Martín Fierro, que traz para o presente o poema de José Hernandez, do século 19. Ambas olham para o futuro, mas também consideram a história ligada à relação com os povos indígenas: na Antropofagia como metáfora de troca com o europeu, e na Martín Fierro como referência à ruptura que leva o gaúcho a conviver com os indígenas. Em ambos os casos, encontramos elementos de ruptura, de futuro e de enraizamento. Sem dúvida, na Semana de 22 ou na exposição de Pettoruti de 1924 estava implícita a ideia de ruptura vanguardista do futurismo, mas esses artistas a registram em seu próprio contexto cultural. A relação com a literatura também é um traço comum em Jorge Luis Borges (1899-1986), Oswald de Andrade e Mário de Andrade (1893-1945). Cabe destacar ainda a presença na revista Martín Fierro de uma artista: Norah Borges (1901-1998), cujo trabalho foi recentemente revisitado numa exposição retrospectiva; no entanto, ela não foi enaltecida como figura central da vanguarda local, como é o caso de Anita Malfatti ou de Tarsila do Amaral.

As utopias criadas pelo movimento modernista brasileiro foram reformuladas ao longo das décadas?

Sim, seguramente. Brasília é a radicalização dessa ideologia utópica: fundar uma cidade perfeita no meio do planalto. Mas essa utopia sempre deu lugar a um discurso crítico simultâneo. Brasília logo tornou visível que sua rápida construção era possível devido à exploração dos trabalhadores que a realizavam e que, simultaneamente, erguiam suas periferias pobres e violentas naquela cidade-museu (como fala Rosângela Rennó em seu trabalho sobre os arquivos da construção de Brasília). Portanto, a ideia de ordem e progresso presente, em certo sentido, em conteúdos abstratos, sempre tem outro lado que a acompanha. Penso em, por exemplo, Hélio Oiticica (1937-1980) e sua passagem do núcleo, do plano ao espaço, ao corpo. “Quem quiser construir tem que mergulhar na m...”, disse Oiticica. Em toda a arte brasileira encontramos aquela pulsão entre o utópico e o distópico. Eu definiria assim a tensão ou a oscilação entre duas obras de Lygia Pape (1927-2004): Livro do Tempo (1961-1965) e Caixa de Baratas (1967).

 

EM TODA A ARTE BRASILEIRA ENCONTRAMOS

AQUELA PULSÃO ENTRE O UTÓPICO E O DISTÓPICO

 

Em que medida a arte está influenciando os debates políticos, filosóficos e, principalmente, uma transformação social, na atualidade?

A arte acompanha o pensamento de cada época. Se olharmos para o principal problema pós-pandêmico, a óbvia crise ecológica do planeta (alguns autores argumentam que o colapso já chegou), podemos observar como a arte acompanha a reflexão sobre o estado atual do mundo. Se considerarmos os feminismos, vamos encontrar artistas que abordam a destruição da Amazônia – tanto Claudia Andujar, com suas fotos pioneiras das comunidades Yanomami, quanto Cecilia Vicuña, artista chilena que, para a 12ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, uniu o poema Semiya, que escreveu e entregou a Salvador Allende no Chile em 1971, dos Quipos originados da cultura Inca, com a destruição da Amazônia pelos incêndios de 2020. Assim, nelas encontramos uma reflexão amparada na relação entre os humanos e a natureza, ou sobre a extinção e o ataque sistemático ao povo Yanomami, como demonstra o ativismo e as emocionantes fotografias de Claudia Andujar. A arte acompanha a realidade: ela não é resultado da influência de debates ou de circunstâncias políticas, nem necessariamente influencia os debates. Embora, às vezes, avise com antecedência sobre problemas que mais tarde vão se manifestar na vida social. Assuntos tão urgentes quanto o que devemos fazer para evitar a destruição do planeta.

 

A ARTE ACOMPANHA A REALIDADE: ELA NÃO É RESULTADO

DA INFLUÊNCIA DE DEBATES OU DE CIRCUNSTÂNCIAS POLÍTICAS,

NEM NECESSARIAMENTE INFLUENCIA OS DEBATES

 

 

O QUE FOI?

Revista Martín Fierro

Revista literária argentina publicada entre 1924 e 1927 que teve grande papel para o conhecimento das vanguardas artísticas do país tanto pela divulgação de textos literários e críticas como pela reprodução de obras na publicação. Também funcionou como vitrine do trabalho de artistas como Ramón Gómez de la Serna, Emilio Pettoruti e Arthur Honegger, além de espaço para difusão de textos de escritores consagrados, como Jorge Luis Borges.

 

QUEM FOI?

Norah Borges

Importante nome da vanguarda artística argentina, como a artista plástica Norah Borges (1901-1998) é descrita pelo Museu Nacional de Buenos Aires (MNBA), localizado na capital, “uma exceção rara na história da arte argentina”. Irmã do escritor Jorge Luis Borges e esposa do crítico e poeta espanhol Guillermo de Torre (1900-1971), Norah ilustrou os primeiros livros do irmão e do escritor Júlio Cortázar (1914-1984), da poeta e dramaturga espanhola Concha Méndez Cuesta, além de diversos autores e autoras contemporâneas. Também foi colaboradora de revistas literárias espanholas e argentinas, caso da Martín Fierro. Em 2020, o MNBA realizou, pela primeira vez, uma retrospectiva da artista. Saiba mais: www.bellasartes.gob.ar/pt/exposicoes/norah-borges-uma-mulher-na-vanguarda/.

 

                           

Retrato por Grete Stern - Colección particular | Norah Borges - Niñas españolas - 1933 - MoMa

 

 

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