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Rainha Kambinda
HERANÇA DA ARTISTA RAQUEL TRINDADE PULSA NA CENA CULTURAL CONTEMPORÂNEA
"Meu pai tinha uma frase: Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte”, compartilhou Raquel Trindade, filha do escritor Solano Trindade (1908-1974) e da coreógrafa e terapeuta Maria Margarida Trindade, no podcast Em Primeira Pessoa, realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo em 2016, uma das últimas entrevistas da artista, que morreu dois anos depois, aos 81. Estes e outros ensinamentos paternos não só ficaram guardados na memória de Raquel como também lhe serviram como guia ao longo de uma vida dedicada ao fomento e preservação da cultura popular afro-brasileira.
Carolina Maria de Jesus, Raquel Trindade (acrílica sobre tela, 2018) | Isabella Matheus
Nascida no Recife, no ano de 1936, a escritora, artista plástica, coreógrafa, professora, pesquisadora e griot (guardiã de saberes ancestrais africanos) estabeleceu-se com a família em Embu das Artes (SP), onde fundou, em 1975, o Teatro Popular Solano Trindade. Criadora da Nação Kambinda de Maracatu, o que lhe rendeu o título de Rainha Kambinda, pelo qual é conhecida, tornou-se uma importante referência para jovens que sobre ela leem, escutam e aprendem e para artistas que com ela puderam conviver e cocriar. Esse é o caso de Patricia Gonzalez, 59 anos, artista visual que a conheceu ainda na infância, em Embu das Artes.
“Conviver com Raquel era, acima de tudo, uma segurança de amizade. No passar dos anos, minha juventude foi muito intensa e sempre recorria a Raquel para me aconselhar. Quando eu achava que estava sendo invasiva, eu sumia um pouco. Daí ela me ligava, sempre me aconselhando e ensinando letras de músicas e danças”, conta Patricia, que já foi dançarina do Grupo Popular Solano Trindade e é professora de Dança Folclórica e de Artesanato na Secretaria de Educação de Embu das Artes e da Apae de Conceição, em Barra de Minas (MG).
Da mesma forma que aprendeu, Patricia pôde compartilhar com a amiga e artista seus conhecimentos em cerâmica, costura e em informática. “Raquel foi minha aluna de modelagem em argila e, quando comprou uma máquina de costura, pediu que a ensinasse, mas depois disse não ter paciência. Chegou a fazer algumas bonecas de pano, costuradas a mão. Depois, pediu que lhe ensinasse computação, pois queria se comunicar com as pessoas. Nessa fase, encontrei, casualmente, um prêmio e concurso chamado Mulheres Negras Contam Sua História. Raquel contou, eu enviei e ela venceu. Foi impressionante”, recorda.
Desde outubro, Patricia Gonzalez expõe seu trabalho na ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda, no Sesc 24 de Maio, ao lado de dez artistas contemporâneas. Obras que ressoam a influência da mestra e amiga. “Sempre tive habilidade com arte. Meu pai, Hugo Fernando, era artista plástico, e minha mãe, Elza Gonzalez, era artesã. Resolvi me especializar em áreas do artesanato e, em tudo que eu criava, sempre haveria algo da cultura popular ou de afro: referências que não tive com meus pais, mas com Raquel. Trago até hoje todos os ensinamentos dessa mulher, amiga, irmã, mãe, mestra. Raquel inseriu em mim um amor enorme pela cultura popular e também o amor ao próximo. Aprendi com Raquel que vale muito mais a pena crescer juntos que crescer sozinho.”
Ouça aqui o depoimento da artista Patricia Gonzalez:
A artista Raquel Trindade na Bienal Naifs, no Sesc Piracicaba, em 2016 | Alexandre Nunis
NOVAS GERAÇÕES
Destaque na nova geração de artistas da cena contemporânea das artes, Aline Bispo também carrega consigo os ensinamentos de Raquel Trindade para habitar ilustrações, pinturas e, mais recentemente, fotografia e performance. Uma investigação que mergulha na miscigenação brasileira, nos sincretismos religiosos e étnicos, entre outros temas. “Tive a felicidade de conhecer os trabalhos de Dona Raquel quando tinha entre nove e 11 anos. Em um feriado de 1º de maio, fui com um amigo e outras crianças à Feira de Embu das Artes e ele me apresentou à Dona Raquel. Vi seus quadros e ela me contou a origem do meu nome. Fiquei encantada com sua presença e, naquele dia, cheguei em casa contando à minha mãe que havia conhecido uma artista e que ela era filha de Solano Trindade”, lembra.
Danças Natalinas no Embu (acrílica sobre tela, 2012), de Raquel Trindade | Alexandre Nunis
Aline Bispo, que também integra a ocupação Olhares Inspirados (...), recorda que, já mais velha, reencontrou a artista: “Escutei mais histórias nas visitas ao Cita (Cantinho de Integração de Todas as Artes), um espaço de arte e cultura localizado na Zona Sul de São Paulo, ouvindo-a e aprendendo sobre meu território. Também pude aprender vendo e admirando seu trabalho junto à família Trindade e ao Teatro Solano Trindade”.
De lá para cá, a jovem criadora, que já expôs no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), na SP-Arte e em outros espaços, traz essas referências na bagagem. “Eu tenho um respeito por Dona Raquel, pela sua jornada e, especialmente, pela sua capacidade de se comunicar artisticamente contando sua história. Quando penso nela, visualizo a extensão desse conceito para sua vida e isso é incrível. Isso me inspira como mulher e artista”, acrescenta.
Mandala (acrílica sobre tela, 2017), de Raquel Trindade | Isabella Matheus
Nossa guardiã
EM DEPOIMENTO, O MÚSICO VITOR DA TRINDADE REFORÇA A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO E DO COMPARTILHAMENTO DA HISTÓRIA MATERNA
Meu nome é Vitor da Trindade, sou herdeiro do legado cultural deixado por meu avô, o poeta Solano Trindade, e minha avó, a terapeuta ocupacional Maria Margarida da Trindade, que legaram à minha mãe, Raquel Trindade – A Kambinda, pintora, escritora, folclorista, bailarina e professora das culturas afrodescendentes, conhecida como “memória viva da cultura afro-brasileira”.
Desde os 12 anos de idade sou participante ativo do Teatro Popular Brasileiro, criado por meus avós, aprendendo através da vivência que tive com meus pais e avós a dançar, cantar e compreender como se movimentam as questões ligadas à busca de uma democracia racial, através do conhecimento da história de nossos antepassados, os escravizados que foram raptados no continente africano para serem trabalhadores forçados nas Américas.
Isso me torna primo cultural dos ritmos cubanos do bolero e da rumba, por exemplo, que descendem do culto aos orixás, assim como dos spirituals e da música gospel norte-americana, que, como o Candomblé brasileiro, traz toda uma gama de manifestações que incluem o maracatu, o jongo, o frevo, a capoeira, o samba e suas ramificações e muito mais do repertório tradicional de nossa arte, influenciando em tudo que se refere no Brasil ao que chamamos de cultura negra.
Receber esse legado pode ser muito bom e também por menos vezes muito ruim. E vou tentar desfilar aqui um pouquinho desse meu trabalho. A primeira coisa que devemos saber é que esse legado não é exatamente como herdar uma grande fortuna, que você tem que controlar para que ela não se desgaste e de certa forma impedir que ela se espalhe por mãos alheias. Assim você tem que gastar comedidamente o seu dinheiro e, de preferência, não fazer grandes distribuições do que você tem ou em um tempo mais ou menos curto terá perdido tudo. Ao contrário.
O meu legado deve ser distribuído de forma indiscriminada a quem se interessar, sem medir ao menos quanto cada um quer levar. E, ao fazer essa distribuição, quem recebeu deve também distribuir da mesma forma, fazendo com que cada vez mais pessoas tenham alcance, aumentando de forma descontrolada o conhecimento e a manutenção desse patrimônio. Porque essa herdade é intangível, e sendo intangível ela só pode aumentar cada vez que ouvida, tocada ou escrita.
ESTA HERDADE É INTANGÍVEL,
E SENDO INTANGÍVEL ELA SÓ PODE AUMENTAR
CADA VEZ QUE OUVIDA, TOCADA OU ESCRITA
Para que o processo de distribuição funcione, você terá muitas perguntas e respostas para fazer e para dar, assim como decidir entre várias escolhas que direcionarão por onde e para onde e de que forma você quer seguir com este espólio. Você quer ser um artista plástico que transmite através de sua pintura ou escultura as formas e cores das manifestações culturais negras; você vai ser um escritor que contará sobre os vários segredos e sagas dos brasileiros que transpuseram o sacrifício involuntário da escravidão; você vai tocar um instrumento ou cantar as dores e alegrias do nosso povo; vai ser um religioso afrodescendente que cuida da autoestima dos seus fiéis; um jornalista que fala da mortalidade dos jovens negros ou da violência policial nas comunidades; um político que lutará pelas questões afirmativas no Congresso; um jogador de futebol que herdará as pernas organizadas e seguras de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.
Tudo isso é este legado. E a escolha não está em qual profissão você vai escolher, mas para onde você vai direcionar o seu dom, a sua dádiva, o seu testamento. Se você é um jogador que desenha a flecha de Oxóssi para comemorar um gol, ou outro que grita contra o racismo ao final da partida quando foi ofendido por um torcedor, ou quando você se assume negro frente às câmeras de televisão, contrariando o processo de embranquecimento e exclusão da pessoa negra na tela, estará vivenciando este legado que se inicia com o avô de meu avô, que, como Solano dizia, lutou na Revolta dos Malês [movimento de libertação dos escravos liderado por grupos de muçulmanos libertos que aconteceu na Bahia em 1835, 53 anos antes da Lei Áurea, sancionada em 1888].
Ou seja, toda escolha profissional pode ser parte desse legado, pois está conectada a cada pessoa negra que está no planeta Terra. Seja nas Antilhas francesas, nas ruas de Chicago, no Brooklin, no Acarajé, patrimônio de Salvador, no Baque Solto de Pernambuco, nas lojas de produtos religiosos de Madureira, no Rio de Janeiro, ou na Vai Vai no Bixiga, aqui em Sampa, é tudo nosso. É parte da luta organizada pela Frente Negra Brasileira, pelo Teatro Experimental do Negro e pelo Movimento Negro Unificado. Pela criação da Lei 10.639, de 2003 [que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e da cultura afro-brasileira nas escolas], ou pelas cotas raciais na universidade pública. Tudo é este legado que recebo, pois a vida de cada negro é ligada à de outro.
A parte ruim é que todo esse legado exige um esforço de quem o recebeu para poder cobrir as expectativas que o nome traz. Neste lugar, as pessoas sempre contam e esperam alguma atitude especial que se conecte ao que fizeram nossos antepassados, mas nem sempre podemos cobrir o que se anseia da gente. Desde que minha mãe me definiu como herdeiro do trabalho da Família Solano Trindade, tenho diariamente buscado honrar essa importante missão.
Obviamente, nos primeiros tempos após o falecimento dela foi muito difícil. Acostumados a receber sempre suas ordens, que dificilmente poderiam ser contrariadas, ficamos todos, os mais próximos, um pouco perdidos, e até mesmo no teatro, o elenco e a diretoria, desnorteados. Mas aí as coisas foram se movimentando e a forma foi se remodelando na memória e sendo reorganizada, trazendo um pouco de nossa própria forma de encarar os novos e velhos processos deixados sob nossos cuidados.
Estamos aqui firmes e fortes, reaprendendo todos os dias. Contando as histórias que vivemos com Raquel Trindade, suas mudanças quando convalesceu de uma doença grave e que repentinamente, ao som do tambor, saía dançando como se não estivesse sentindo dor cinco minutos antes. Ela que era corintiana e Vai Vai, filha de Omolu, que sempre via o mundo em preto e branco ou branco e preto. Uma mulher que tornava o transporte público em festa, que recebia qualquer pessoa em sua casa, e sempre tinha um café para oferecer, no mínimo. Nós tentamos ser um pouco assim em ação e palavras, mas mesmo não podendo ser tão Raquel, tentamos manter o legado Trindade.
Axé Odara!
VITOR DA TRINDADE é músico, compositor, filho de Raquel Trindade e herdeiro do legado da família Trindade. Participou, com a artista e curadora Renata Felinto, da abertura da Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda, transmitida pelo canal do YouTube do Sesc 24 de Maio.
Olhares inspirados
MOSTRA REÚNE ACERVO PESSOAL DE RAQUEL TRINDADE E OBRAS DE ARTISTAS CONTEMPORÂNEAS
A vida e a obra de Raquel Trindade são o ponto de partida da Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Kambinda, no Sesc 24 de Maio. Sob curadoria da pesquisadora, educadora, artista e doutora em Artes Visuais Renata Felinto, a ocupação dedica o núcleo central à vida e obra da artista e reúne não só trabalhos, mas também objetos pessoais, como fotografias reproduzidas do acervo familiar, livros da biblioteca pessoal e sua árvore genealógica.
A artista Aline Bispo em obra-performance Tudo Que Não Cabe em Outro Lugar Se Encaixa Aqui (2021) | Alberto S. Cerri
“Buscamos mapear a biografia de Raquel Trindade de forma a apresentar a importância de sua educação informal e familiar para o desenvolvimento de todas as atividades que desempenhou como profissional, trazendo, portanto, uma inseparabilidade entre a casa e a vida, o privado e a rua, como espaços de formação de sua identidade e de suas habilidades”, explica a curadora. Esse terreno familiar seguro e fértil foi essencial “para que se dedicasse e persistisse nas suas atuações profissionais como griot, educadora, coreógrafa, pesquisadora, pintora e gestora, sempre envolvendo as pessoas que estavam ao seu redor”, acrescenta.
Para o segundo núcleo da mostra, a curadoria da equipe de Artes Visuais do Sesc 24 de Maio convidou 11 artistas cujos trabalhos dialogam com a herança de Raquel Trindade. São elas: Aline Bispo, Aretha Sadick, Bianca Foratori, Charlene Bicalho, Daisy Serena, Eve Queiróz, Ione Maria, Maria da Trindade, Nenê Surreal, Patricia Gonzalez e Soberana Ziza. Criadoras que homenageiam a pluralidade da Rainha Kambinda e que reverenciam sua potência negra e feminina.
Além da mostra, serão realizadas atividades nas plataformas digitais e redes sociais do Sesc 24 de Maio: ações educativas e artísticas com arte-educadoras(es), dançarinas(os), pesquisadoras(es), cineastas e roteiristas que estão em constante diálogo com a produção artística afro-brasileira. “Olhares Inspirados é uma celebração da figura da multiartista pernambucana, seu legado e defesa da cultura afro-brasileira ao convidar artistas negras e afroindígenas, de diferentes linguagens, para fazer novas criações inspiradas em dimensões da vida e obra de Raquel Trindade”, diz Suamit Barreiro, coordenador de programação do Sesc 24 de Maio.
Entre as artistas que participarão da Ocupação Raquel Trindade, Rainha Kambinda, está Nenê Surreal, artista visual, educadora social e estilista que utiliza o grafite como meio para discussão do preconceito étnico-racial e de gênero | Alexandre Nunis
A ocupação ainda destaca “a presença desses corpos dissidentes – mulheres negras, com diferentes orientações sexuais e identidades de gênero – que fazem frente a uma linha do tempo frequentemente habitada por masculinidades hegemônicas”, complementa o coordenador. Para agendar sua visita à ocupação, que fica aberta ao público até 12 de dezembro, acesse: sescsp.org.br/exposicoes ou no aplicativo Credencial SescSP. A programação integrada ocorre nas redes sociais do Sesc 24 de Maio.
*Confira relatos compartilhados pela artista Raquel Trindade no podcast Em Primeira Pessoa – A Kambinda, produzido pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo: sesc.digital/conteudo/cidadania/491/em-primeira-pessoa-a-kambinda.