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O brilho das janelas do computador

Editoria de arte
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Em homenagem à memória de meu médico

José Raimundo Nonato Magalhães Avelar,

um dos milhares de vítimas da Covid-19

 

Um lençol cheio de estrelas me cobre por inteiro. “Eu não estou aqui, isso não está acontecendo”. Essa sensação é familiar.

Jovem, fones de ouvido, andando pelas ruas sozinho. Repetia isso mentalmente, traduzindo o refrão de uma música do Radiohead, enquanto observava as pessoas me perdendo por lugares que não conhecia.

Me escondo de minha filha em uma de suas brincadeiras prediletas. Estamos há dias sem sair de casa, em quarentena, vendo uma epidemia crescer como um inimigo invisível, como estar em uma praia esperando o tsunami. Estou encolhido, escondido embaixo do lençol de estrelas impressas. Por instantes respiro fundo e repito mentalmente.

“Eu não estou aqui, isso não está acontecendo.”

A estreia é amanhã no palco do Anchieta, Sesc Consolação. Sempre quis estar nesse palco, mas menos de um dia antes da abertura do espetáculo, que é estruturado totalmente na tecnologia, o ensaio é uma catástrofe. Temos quatro países conectados para fazer o espetáculo simultâneo em quatro palcos do mundo. Telas, áudios corrompidos, mensagens no celular, delay de informações. Não conseguimos estabelecer a conexão, problemas em todos os países. Estamos entregues aos limites da virtualidade.

Minha filha beija os avós no celular. Está fixada na tela ou sabe que são eles? Ela quer agarrar o celular e acaba sempre por desligar a chamada. Minha mãe já é péssima no celular, a conversa é inviável. Ela quer me encontrar. Tenho receio.

Me escondo da minha mãe atrás da porta. É hora de ir para escola, mas eu não quero ir. Acabo dormindo escondido. Acordo no meio da tarde desorientado, não sei onde estou, que horas são, a sensação é estranha.

Os dias se confundem em quarentena. Aproveito que minha mãe está passando a quarentena fora de São Paulo e visito sua casa com quintal para minha filha brincar um pouco ao ar livre. A casa abandonada, desde a morte de meu pai a casa mudou de aspecto, sem aquela energia vibrante. Levo minha filha ao meu antigo quarto de criança, hoje cheio de quadros e arquivos. Minha filha não conheceu meu pai, eu o apresento pelos seus quadros.

“Vovô”, diz minha filha em seu quarto quando acorda, apontando para o quadro de flor acima de sua cabeça.

Ela já está há mais de um mês falando apenas virtualmente com seus avós, já chama de vovô ou vovó, mudando a entonação e até pedindo um ou outro no telefone. Está aprendendo a falar. Podemos acompanhar a passagem do tempo de perto.

Os relógios de quatro países se acertam no grande telão do Sesc Consolação. Vai começar Babylon Beyond Borders, quatro plateias simultâneas em quatro cidades do mundo, quatro fusos horários, nossos celulares em fúria, um rádio comunicador para o técnico de palco avisar os atores do que está acontecendo. Temos um atraso para começar e a plateia acompanha os relógios projetados por mais tempo que o previsto.

Quando vamos sair? Descemos para uma laje do prédio quando não tem ninguém para nossa filha ao menos correr um pouco ao ar livre. Impossível conter a mão e a boca de uma criança, impossível privá-la por completo do ar livre. Vemos sua felicidade ao correr pelo quadrado de cimento, imediatamente um nó na garganta. A sensação de estarmos presos aumenta.

Sigo ouvindo o disco do Radiohead. How to Disappear Completely, e na minha confusão adolescente começo a ter ataques de pânico sozinho. Minha cabeça ferve, falta o ar, não consigo andar em linha reta. Pergunto ao médico “Vou melhorar?”.

Tento acalmar minha equipe. Temos vídeos com vinhetas para cobrir a falta de conexão. Começa a peça, as quatro imagens de quatro países se fundem na tela. A conexão da tecnologia é mágica.

Resolvo apresentar meu pai para minha filha pelo celular. Se ela já reconhece os quadros do avô pode agora reconhecer sua imagem. Mostro vídeos de entrevistas, um vídeo dele dançando, o YouTube me oferece imagens de seu funeral. Posso pela primeira vez ver uma imagem minha andando ao lado de seu caixão, transmitida pela TV, disponível na internet.

Memes, imagens de outros países, bailarinos dançando no enterro, covas anônimas em cemitérios por todo o mundo. Eu não acharia mal ter uma despedida dançante. No enterro do meu pai colocamos músicas que ele gostava. No link da internet está essa informação. Pulo para outra entrevista, quero apresentar o avô para minha filha, não notícias da sua morte.

Não podemos ter um ataque coletivo de pânico. Medo terrível de mortos sem funeral. Nascimentos sem a presença do pai, família acompanhando online.

Meu amigo celebra seu pai virando avô pela internet.

Um bom vídeo do meu pai. Ele define a vida como uma “jornada”, mais rápida do que ele esperava. Parece uma mensagem póstuma. Eu lembro que chorei a primeira vez que vi essa entrevista e mandei mensagem pra ele dizendo como tinha orgulho dele. Minha filha diz “vovô” enquanto ele fala. Pega o celular e dá dois beijinhos. Muita tristeza e muita alegria misturada. Olho para minha mulher chorando, choro também, uma onda forte de sensações.

Ela conheceu o avô pelo celular. Ela ama o avô virtual.

A vida parece uma série, um filme.

Acaba a peça e foi incrível. Conseguimos o que parecia impossível. Mas não podemos encontrar nossos parceiros nessa jornada insana. Eles estão em outras cidades do mundo, trocamos mensagens pelo celular, mandamos beijos a distância. Estranho fazer uma peça e não encontrar a equipe, poder abraçar todos.

Sigo brincando de esconde-esconde com minha filha. Fazemos uma “cabaninha” com o lençol de estrelas e ficamos ali embaixo, olhando as estrelinhas. Não é o mesmo céu de estrelas que quando ouvia música em meus fones na minha adolescência me fez entrar em pânico. O céu que me dava a dimensão do nosso minúsculo tamanho e me assustava, deixava impotente, insignificante. É um céu de estrelas que podemos pegar com as mãos. Minha filha aprendeu a amar as estrelas olhando para a tela da TV, cantando “brilha, brilha, estrelinha”. Pela janela, agora com o ar mais limpo da cidade, posso às vezes apontar uma estrela de verdade, aquela que nos deixa minúsculos, e dizer para minha filha “olha, a estrelinha”.

 

 

 
Pedro Granato é ator, diretor, professor de teatro e dramaturgo. Autor e diretor das peças Fortes Batidas – que ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de Melhor Espetáculo em Espaço Não Convencional e o Prêmio Especial pela Experimentação de Linguagem no Prêmio São Paulo –, 11 Selvagens, entre outras. Também dirigiu Babilônia: Sem Fronteiras, projeto teatral multimídia e internacional que esteve em cartaz no Sesc Consolação, em fevereiro de 2019.

 

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