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Mundo pós-pandemia

Foto: Adauto Perin
Foto: Adauto Perin

HISTORIADOR E ESCRITOR FRANCÊS FAZ UMA ANÁLISE DE COMO
O NOVO CORONAVÍRUS PODE MUDAR OS RUMOS DA HUMANIDADE

Cientistas, pesquisadores, físicos, historiadores e poetas. Esses e outros especialistas, cada qual em sua área de conhecimento, buscam entender o que está acontecendo com a humanidade e a natureza neste cenário de contenção ocasionado pelo novo coronavírus e consequente necessidade de isolamento social das populações. Afinal, isso vai intensificar as relações por meio da internet? Vai mudar a forma como diferentes culturas pensam, trabalham e interagem? Sem arriscar palpites, o historiador francês Roger Chartier, pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e professor do Collège de France, ambos em Paris, levanta reflexões. Em entrevista ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (CPF), o autor de A História ou a Leitura do Tempo (Autêntica, 2009), entre outras obras, falou sobre a tentação de comparar a atual pandemia com outras que marcaram a história mundial. Chartier também destaca uma intensificação da comunicação digital e as ações a assumir agora para as atuais e futuras gerações.

 

Um novo capítulo

A tentação dos historiadores consiste sempre em comparar os eventos contemporâneos com eventos análogos do passado. Por exemplo, hoje, comparar a Covid-19 com a grande peste de 1347 a 1349, ou com a gripe espanhola de 1918 a 1919. Se é verdade que se podem encontrar comportamentos semelhantes em cada evento (como em Decameron de Boccaccio), o risco das comparações é fazer esquecer a profunda, e espantosa, originalidade da pandemia que sofremos. Universal porque se localiza nas dependências múltiplas que caracterizam o mundo globalizado. Nesse sentido, é a primeira verdadeira unificação viral do mundo. As consequências são paradoxais. Por um lado, em todo o mundo, encontram-se as mesmas incertezas perante a pandemia. As mesmas medidas para limitar seus efeitos mortíferos, as mesmas transformações dos comportamentos. A humanidade inteira pratica o isolamento, respeita (mais ou menos) as mesmas proibições, inventa uma sociedade sem contatos nem sorrisos, ocultados pelas máscaras. Por outro lado, essa universalização não apaga as desigualdades. Desigualdades em cada sociedade diante do risco de morte ou das condições do confinamento.

 

Outras trocas e diálogos

As possibilidades oferecidas pelo mundo digital são o diferencial entre as epidemias do passado e a Covid-19. Devemos imaginar como seria nosso presente sem a comunicação digital que assegura a presença na ausência. Permite a continuação da administração pública, de algumas atividades econômicas, do ensino, dos intercâmbios individuais. Skype, Zoom, WhatsApp e muitas outras plataformas de transmissão eletrônica são os instrumentos que evitam a paralisia total das sociedades ou o desespero dos indivíduos. Aumentam em proporções consideráveis as reuniões virtuais, as classes online, o e-commerce, as leituras sem livros, os abraços sem braços e os beijos sem lábios. Então, uma pergunta fundamental: o tempo excepcional da pandemia será o tempo normal do futuro?

 

Coletividade e intimidade no digital

O perigo será grande se as práticas digitais que compensam a impossibilidade de manter as formas presenciais se tornarem normais e obrigatórias da vida coletiva ou íntima. As telas, grandes ou pequenas, trazem tanto satisfação quanto frustração. Cada um pode perceber a infinita tristeza do ensino sem aula, das cidades sem livrarias, das relações sem corpos. A “intensificação do mundo digital” nunca deve conduzir a pensar que seus magníficos recursos são equivalentes das experiências permitidas pela dramaturgia do cotidiano, os encontros, as alegrias ou as tristezas vividas na proximidade dos outros. Nenhuma tela pode substituir a emoção produzida pelo espetáculo vivo, sobre o palco, no circo ou na rua. 

 

Como será o amanhã

A questão nos atormenta, talvez porque a resposta seja impossível. Ninguém pode ser profeta. Não só porque nem a história nem as ciências sociais podem predizer o futuro, mas também porque esse futuro não está escrito. Depende das decisões dos governos, das escolhas das instituições, dos compromissos e das ações dos cidadãos. A situação atual é profundamente contraditória. Mostra as fragilidades da economia globalizada, as ameaças contra a vida democrática, o aumento das desigualdades sociais, a proliferação das falsificações. Mostra, também, que as sociedades podem conjurar os perigos se seus cidadãos defendem os valores democráticos, impõem limites ao mercado selvagem e exercem sua exigência de verdade. O pior é possível, mas não é inelutável. Tenho consciência de que minha resposta não é um diagnóstico baseado em conhecimentos certos. Expressa o desejo de uma sociedade mais justa, capaz de rechaçar as aspirações despóticas, e tem confiança na verdade e na razão. Como será o mundo pós-pandemia? Não sei. Mas podemos sonhar e agir juntos para que seja menos cruel.

 

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