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Além da sala de aula

Partindo da autonomia e independência, a educação não formal acontece em instituições ou mesmo fora delas. Seja em movimentos sociais, associações, organizações não governamentais, entidades e em outros espaços da cidade, formas de aprendizado que extrapolam o campo formal vão além das salas da aula. No atual contexto, em que pessoas de todas as idades passam por um período de isolamento social para contenção do novo coronavírus, emergem novas abordagens sobre a importância desse tipo de educação. “Nossa experiência nos faz acreditar que os pares de opostos dentro/fora, educação formal/educação não formal, são apenas dimensões de um processo educativo que se propõe a fomentar o pensamento crítico e produzir ação coletiva que recuse a naturalização das violências e violações de direitos”, afirma o educador social João Carlos Franca, diretor-presidente do Instituto Camará Calunga, espaço que desenvolve projetos e programas no campo da educação, entre outras áreas, com sede em São Vicente (SP). Dessa forma, são muitas as janelas que se abrem para o aprendizado. “O desenvolvimento das novas tecnologias digitais, de informação e comunicação, amplia de modo acentuado as oportunidades educativas criadas por esses diversos agentes bem como o acesso a elas”, observa Helena Singer, vice-presidente para a Juventude da Ashoka América Latina, e autora de República de Crianças: sobre Experiências Escolares de Resistência (Mercado das Letras, 2010). Afinal, o que é como se dá essa educação fora da escola? Neste Em Pauta, Franca e Singer compartilham experiências na área e nos convidam a repensar conceitos e práticas.

 

EDUCAÇÃO FORA DA ESCOLA É EDUCAÇÃO DENTRO DE VÁRIOS LUGARES

HELENA SINGER

Estamos tão habituados a reduzir a educação ao que acontece dentro das escolas que normalizamos frases como esta, retirada de relatório de uma organização intergovernamental africana, sobre a educação nos países ao sul do Deserto do Saara: “Nas duas últimas décadas, tem-se registrado uma grande melhoria no acesso à educação em África Subsaariana, mas muitos países no continente ainda têm muito caminho a percorrer no que diz respeito ao acesso universal ao ensino primário”.

O problema de frases como esta, que reduzem a educação à escolarização, é desconsiderar todos os outros sujeitos, símbolos, tradições, conhecimentos, dispositivos e recursos presentes nos processos de socialização das novas gerações nos diversos países africanos. Frases semelhantes são comumente usadas na comparação entre a educação nas diferentes regiões ou contextos socioculturais do Brasil, como se algumas regiões ou alguns grupos sociais fossem mais educados do que outros.

A educação é o conjunto dos processos envolvidos na socialização das novas gerações, na sua introdução aos valores, tecnologias, conhecimentos, histórias, tradições, crenças. Trata-se do universo das iniciativas voltadas para propiciar o desenvolvimento das crianças e jovens em suas dimensões física, emocional, ética, estética, técnica, garantindo-se a adaptação ao meio ambiente, social e cultural. É na interação com o meio que as pessoas se desenvolvem, e a educação é o processo intencional de incidir sobre esse desenvolvimento.

Para somar

Compreendida dessa forma, vê-se que a escola é um dentre os muitos agentes educativos de uma sociedade. Na tentativa de organizar o discurso sobre esse fenômeno, há quem distinga a educação que acontece nas escolas da que acontece nos outros lugares utilizando os qualitativos de formal, não formal e informal, sendo o formal aquele marcado pelo reconhecimento burocrático das certificações. O não formal fica relegado aos demais agentes da sociedade, dentre os quais destacam-se as ONGs, ou organizações não governamentais, o que dobra o número de negativas no raciocínio. Toda definição negativa carrega uma forte valoração, tratando-se de algo menos relevante ou definível.

Ao recusarmos as definições negativas, enxergamos a potência e multiplicidade da educação que acontece nos muitos lugares sob responsabilidade dos diversos agentes. Além da família, mais facilmente lembrada, reconhecemos a educação que acontece nas associações comunitárias, entidades religiosas, empresas, nos movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, coletivos, além dos equipamentos públicos e privados de outros setores, como a cultura, o meio ambiente, os Direitos Humanos, o esporte, a saúde e a assistência social.

O desenvolvimento das novas tecnologias digitais, de informação e comunicação, amplia de modo acentuado as oportunidades educativas criadas por esses diversos agentes bem como o acesso a elas. São milhões de pessoas  envolvidas em processos educativos em diferentes fases da vida.

O Brasil tem uma importante história da educação que alguns chamam popular, outros comunitária. O patrono da educação no país, o mais influente educador brasileiro no mundo, Paulo Freire, dedicou sua obra à educação popular. A importância fundamental da educação popular é o reconhecimento e a valorização dos saberes e experiências dos trabalhadores, das comunidades, das pessoas de diferentes origens. Este aspecto contrasta fortemente com a cultura escolar, que prioriza a tal ponto o conhecimento científico, que por vezes chega a negar a experiência prévia dos estudantes e os saberes de suas comunidades.

Foco na ação

Outra característica marcante da educação promovida pelas comunidades, organizações da sociedade civil e equipamentos dos diversos setores é o foco na ação. Ao contrário do que muitos imaginam, a educação que acontece nesses espaços faz uso de metodologias diversas, embasadas em pesquisa e reflexão, reinventadas por educadores comprometidos com o desenvolvimento de seus educandos.

Em geral, predominam metodologias ativas, que valorizam os interesses e as capacidades das crianças e dos adolescentes, possibilitando que desenvolvam projetos do seu interesse e fortalecem suas comunidades. São as famosas metodologias ativas e pedagogia por projeto, que lentamente são introduzidas nos ambientes escolares, embora já sejam presentes há bastante tempo em outros ambientes educativos.

Apesar da sua relevância e qualidade, a educação popular, comunitária, social e especializada – educomunicação, arte-educação, educação para a paz, entre outras – é pouco conhecida, valorizada e, como consequência, são frágeis as políticas públicas que as fomentam e regulam. Não há piso salarial para seus profissionais e os recursos destinados à educação – pela Constituição, estados e municípios devem investir 25% dos recursos advindos de impostos e transferências na Educação – só são investidos no sistema escolar. Na prática, o ministério e as secretarias são das escolas e universidades, não da Educação.

Importante movimento que se fortaleceu no Brasil nas últimas décadas é o da educação integral, que reconhece a educação presente nos diversos espaços, criada pelos diversos agentes da sociedade e propõe uma articulação entre as escolas e as demais organizações. Esta articulação possibilita, de um lado, uma abordagem integrada do desenvolvimento humano, que parte do indivíduo e não das divisões burocráticas da sociedade. De outro, possibilita a elaboração de projetos educativos locais, formulados pelos diversos sujeitos da educação, em torno de objetivos comuns e visões compartilhadas.

A educação integral apresenta-se, assim, como uma perspectiva que supera a visão reducionista à escolarização e uma plataforma para o debate e a elaboração de propostas para políticas públicas que efetivamente valorizem e integrem os diversos agentes educativos do país.

 

Helena Singer é vice-presidente para a Juventude da Ashoka América Latina, membro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo, e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). É autora de República de Crianças: sobre Experiências Escolares de Resistência (Mercado das Letras, 2010), entre outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior na área de Sociologia, com ênfase em Direitos Humanos, democracia, educação e juventude.

 

AS FORMAS E OS SENTIDOS DA EDUCAÇÃO

JOÃO CARLOS FRANCA

As organizações sociais que desenvolvem ações e projetos com crianças e jovens em seus territórios, em complemento aos estudos teóricos que acontecem dentro da escola são reconhecidas como coletivos organizados para produzir atividades educativas e culturais fora da escola, sem o rigor e as exigências próprias ao trabalho de apropriação e produção de conhecimento.

Nossa experiência nos faz acreditar que os pares de opostos dentro/fora, educação formal/educação não formal, são apenas dimensões de um processo educativo que se propõe a fomentar pensamento crítico e produzir ação coletiva que recuse a naturalização das violências e violações de direitos. Assim, educadores sociais e comunitários, artistas e produtores culturais se organizam em grupos e coletivos e convidam crianças e jovens a participarem de encontros de convivência, a partir dos quais novos projetos vão se desenhando e ganhando forma.

Assembleias comunitárias, expedições históricas e culturais, rodas de conversa, produções artísticas e viagens de formação constituem uma espécie de currículo em que os temas gerados nos encontros se tornam pautas de reflexão, estudos e pesquisas, deliberação sobre os rumos das ações no território e análise daquela experiência. Para o educador Jorge Larrosa Bondía, experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. Isso nos leva a considerar a função do vínculo educador-participante como condição para a implicação dos sujeitos no processo educativo.

Portanto, o fundamento ético da chamada educação não formal é a convivência com as crianças e jovens em seus territórios, os vínculos que se constroem e que se fortalecem e as experiências que poderão daí decorrer. Isso contribuirá com os processos da educação formal ao criar disposições objetivas e subjetivas para o surgimento do pensamento crítico, do interesse pela pesquisa e estudo da história que a história não conta e das ciências, tão relevantes nos tempos que vivemos.

Em tempos de pandemia

O isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19 trouxe importantes desafios para a sustentação dos laços sociais sem os corpos em presença. Como instaurar uma assembleia comunitária à distância? Como tornar tão interessante um grupo de estudos virtual, de tal forma que os participantes queiram frequentar mesmo sem o calor da presença dos amigos? O que fazer com as conversas paralelas, razão de ser das salas de aula, para os estudantes, e motivo de desespero dos professores?

A esses desafios, os mais jovens respondem com suas incríveis habilidades de manejo das tecnologias, enquanto educadores e gestores se ocupam de enfrentar as enormes dificuldades de acesso aos equipamentos e pacotes de dados móveis. Duplo desafio, criar disposições internas e enfrentar as desigualdades econômicas e de classe social.

Nos encontros virtuais, as perguntas sobre COMO fazer experiências em meio ao isolamento social, vão dando lugar a POR QUE produzir tais experiências. O que o coronavírus escancarou sobre as profundas desigualdades que se naturalizaram nos territórios vulnerabilizados, sob o manto do fatalismo e do determinismo, gerando aceitação e resignação da sociedade e omissão e negligência das políticas públicas?

Outro desafio que decorre do anterior é a urgência em desconstruir o pensamento mágico e determinista que tem se consolidado nesses territórios e trabalhar com afinco para fomentar o pensamento crítico e a compreensão dos processos históricos que organizam a sociedade. E as crianças, o que têm a ver com isso?

A professora e pesquisadora Lúcia Rabello de Castro, em seus estudos e pesquisas sobre a participação das crianças nos espaços de decisão sobre os rumos da cidade, propõe que crianças e jovens sejam reconhecidos como sujeitos políticos, que constroem cultura e história e devem ter espaços próprios de convivência e organização para a ação coletiva.

A divulgação diária nos meios de comunicação de estudos e pesquisas científicas em todo o mundo para a descoberta de vacinas, remédios e testes eficazes para combater o coronavírus pode ser um instigador para colocar em pauta a relevância e o sentido do estudo e da própria escola como o lugar de descoberta de novos mundos e de outras relações humanas possíveis. Lugar perdido por força da precarização e sucateamento das escolas públicas.

Segundo Castro, a experiência de escolarização precisa ser ressignificada de forma que cada criança possa dar sentido pessoal a por que e a para que ir para a escola. Em tempos de isolamento social, os educadores sociais devem assumir o compromisso de ajudar as crianças a darem um sentido positivo à experiência escolar hoje, apoiados no vínculo e no reconhecimento de que são portadores de direitos e produtores de experiência.

Novos frutos

NADA SERÁ COMO ANTES, AMANHÃ! A canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, de 1972, já nos alertava para o risco de tudo voltar a ser como antes, depois que a crise passar. Não vai passar, dizem as crianças e os jovens quando refletimos sobre suas vidas e de suas famílias.

Os efeitos da pandemia são e serão graves e duradouros e exigirão organização das crianças e dos jovens em coletivos para fortalecer a luta por seus direitos, para que as violências e violações de direitos acabem. Esse é o compromisso e a tarefa imprescindíveis que devem ser assumidos por educadores, dentro e fora da escola. Trabalhar e lutar para que um novo tempo surja desta crise, talvez o tempo da delicadeza.

Para concluir, deixo ao leitor e à leitora, três propostas deliberadas nas assembleias virtuais para o novo tempo que virá:

1. Organizar expedições culturais à Bienal de São Paulo, ao Museu de Ciências Catavento, ao Planetário e ao Museu Afro-Brasil;

2. Organizar um baile de máscaras;

3. Realizar uma viagem de formação e intercâmbio à Casa-Memória de Valparaíso, no Chile. A Casa-Memória é um espaço permanente de expressões artísticas e diálogos de Direitos Humanos.

Sonhos, desejos e projetos para os dias que virão.

 

João Carlos Franca é educador social, diretor-presidente do Instituto Camará Calunga (São Vicente, SP), que atua com o propósito de promover e defender os direitos humanos, especialmente de crianças e adolescentes, nos diversos lugares e territórios em que vivem. O instituto produz experiências referenciais de cuidado, formação crítica, pesquisa e intervenção, que incidem na formulação de políticas públicas de infância e juventude.

 

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