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Vida e morte na arte
O POETA GERALDO CARNEIRO RELEMBRA OBRAS DE DIVERSOS PERÍODOS DA HISTÓRIA
EM QUE A LITERATURA ORA CONFRONTOU EPIDEMIAS, ORA SE ISOLOU DELAS
Na literatura nacional ou estrangeira, tanto o mal-estar do mundo quanto os sonhos do ser humano acomodam-se em enredos de ficção e versos de poesia. Nas páginas dos livros, um reflexo impresso do que acontece do lado de dentro e do lado de fora, na sociedade. Em obras como Romeu e Julieta, do inglês William Shakespeare, e Decameron, do italiano Giovanni Boccaccio, epidemias, então chamadas de “pestes”, tornaram-se protagonistas ou pano de fundo. E, assim, o contexto incerto projetado por doenças foi abordado pela arte produzida ao longo dos últimos séculos. Neste momento em que a Covid-19 mostra-se como um novo capítulo na história da humanidade, reler as obras de Shakespeare, Boccaccio e outros mestres é aprender com o passado. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), o poeta, letrista, tradutor e roteirista Geraldo Carneiro olha pelo retrovisor da literatura e faz observações acerca do que já foi escrito sobre o ser humano em tempos de pandemia.
O que ocorre agora com o fechamento de teatros mundo afora, por causa da pandemia da Covid-19, ocorreu já em outros momentos da história. No final do século 16 e início do século 17, William Shakespeare e sua companhia de teatro enfrentaram em Londres algumas epidemias, por exemplo. Como isso se deu?
Diversas vezes os teatros de Londres foram fechados durante a carreira de Shakespeare. Segundo alguns biógrafos e cronistas, uma das piores temporadas foi a de 1593, quando a peste, em seu apogeu, chegou a matar mil pessoas por semana. Se levarmos em conta que a população da cidade era de 200 mil, imaginamos a devastação. Na época, os teatros permaneceram fechados até o final do ano. Com razão, porque abrigavam multidões. Tinham um sistema de lotação parecido com o do antigo Maracanã, que já recebeu público maior do que toda a população da Londres daquela época. As pessoas ficavam grudadas umas nas outras e, assim se contagiavam com a maior facilidade. Não me atrevo a descrever em detalhes a falta de higiene da época.
Tanto que em Romeu e Julieta, uma peça romântica e cruel, Shakespeare faz uma menção direta à peste que assolava Londres.
Romeu e Julieta começa como se fosse um filme de Quentin Tarantino: as duas gangues, Capuletos e Montéquios, trocam baixarias dignas de Samuel Jackson e John Travolta. É um belo contraste com a história de amor, adaptada por Shakespeare a partir de diversas versões de outros autores. Não havia a obsessão da originalidade, talvez inventada pelo Romantismo. Em Romeu e Julieta, já há uma menção à peste no famoso monólogo da Rainha Mab. A mais terrível evocação da peste, no entanto, é feita pelo personagem Mercúcio, quando é mortalmente ferido no confronto das famílias Capuleto e Montéquio: “Que a peste caia sobre vossas duas casas!”. E para que sua maldição se torne definitiva, Mercúcio repete a frase.
Há outras obras do dramaturgo inglês emque ele faça referência a epidemias?
Muitas. O Rei Lear, por exemplo, menciona o tema muitas vezes. Uma de suas frases parece escrita nos dias de hoje: “Tempo empesteado esse, em que os loucos guiam os cegos”. Em Ricardo II, outro verso adequado ao circo de nossas circunstâncias: “Se a peste paira sobre nós, é ele”. Fica a critério do leitor escolher quem é o seu “ele”. Em Otelo, Iago vive falando em “plague”.
Mas pode ser também no sentido de praga e amolação. Ricardo III, meu malvado favorito, proclama: “Que a peste caia sobre todos vós”. Em A Tempestade, o personagem Caliban diz: “Que caia a peste sobre o tirano a quem sirvo”. Há peste para todos os gostos, gregos e troianos: nos sonetos, nas peças, nos poemas longos. Em suma, embora Shakespeare tenha um dicionário repleto de xingamentos, talvez a peste fosse uma de suas pragas prediletas.
Nas tragédias gregas, pragas e epidemias, por vezes, surgem até como personagens, caso de Édipo. Ali não é só uma referência, mas quase um personagem...
É possível. Se você me permite especular, foi a peste que levou Édipo a investigar sua história e descobrir os crimes que cometeu, ainda que involuntariamente, contra os costumes da comunidade. Os gregos chamam a arrogância dos seres humanos de hubrys. Quando se cometia o pecado da hubrys, era inevitável ser punido pela nêmesis, isto é, a vingança dos deuses. Podemos fazer um paralelo entre a hubrys do mundo antigo e a nossa, do mundo contemporâneo, que tem cometido sistematicamente crimes contra a natureza. E a peste do coronavírus pode ser interpretada como a nêmesis da natureza. Se continuarmos a desrespeitá-la, merecemos ser varridos do planeta.
A peste bubônica, então conhecida como peste negra, matou milhões de pessoas no século 14. Mesmo assim, autores que viveram durante esse período, como o poeta Petrarca (considerado o inventor do soneto), escreveram obras poderosas. Teriam eles aprendido a conviver com a morte?
A literatura é sempre uma vitória da vida sobre a morte. A poesia de Petrarca, se não me falha a memória – e ela falha muito –, é toda em louvor de sua amada Laura. Mas só conheço o repertório de seu Cancioneiro.
A presença da Igreja Católica à época da peste bubônica é muito forte, ao pautar com mão de ferro costumes e condutas. A obra Decameron, de Giovanni Boccaccio, que descreve jovens que se refugiam da peste nas montanhas e passam os dias em alegria, pode ser vista como uma reação à igreja?
Por acaso, o narrador começa falando de Deus. Creio que as epidemias suscitam – ou ressuscitam, se você me permite correr o risco desse verbo – a ideia de Deus, a suposição de que há alguma arquitetura por trás da natureza. Em algum lugar de sua obra, aliás, o próprio Nietzsche [filósofo alemão, 1844-1900] diz que o cristianismo é a religião dos oprimidos.
De fato, a ideia de que há um outro mundo, melhor do que o daqui, é altamente sedutora para os deserdados, os carentes de tudo. E o ateísmo talvez seja a religião chique das elites, que podem se dar ao luxo de descrer em Deus.
Na Guerra do Peloponeso, confronto entre Atenas e Esparta descrito por Tucídides, também há uma menção da peste chegando às cidades. Como os gregos tratavam a morte, seja pela doença ou pelas guerras?
Os gregos da Ilíada [um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, de autoria atribuída ao poeta Homero] achavam a morte uma beleza. Cá entre nós, eram um bando de narcisistas querendo conquistar a posteridade através da guerra. O pior é que conquistaram, por obra e graça da poesia. Se eu vivesse naquele tempo, proporia a Homero (se é que ele existiu) uma greve literária semelhante à greve sexual que Lisístrata fez com os rapazes de Atenas: enquanto durar a guerra, não tem poesia.
Manuel Bandeira era tísico, assim como Paul Éluard. Ambos, quando jovens e doentes, ficaram internados na Suíça, no mesmo hospital, por vários anos. Mas a obra dos dois traz um olhar sobre a vida cotidiana muito feliz. Um olhar que valoriza os pequenos detalhes.
Não considero Manuel Bandeira feliz. Ao contrário, ele me parece quase sempre melancólico, fala da “vida inteira que podia ter sido / e que não foi”. Nos momentos em que parece feliz, cria utopias como a de Pasárgada e as “inacessíveis praias” ao sul do Rio de Janeiro. Lugares sempre inalcançáveis. Curioso que, apesar de tísico, desenganado desde os verdes anos, Bandeira é dos escritores mais longevos de sua geração. O camarada não se detona; o doente se cuida mais. Já Paul Éluard guarda uma inocência permanente e nunca dá bandeira – se você me permite o trocadilho – de sua condição de tuberculoso. Pelo menos não nos poemas que li dele.
Ambos, ao voltarem para seus países de origem, se tornaram figuras centrais na renovação da literatura. Será que há alguma relação entre doença e ruptura com a tradição?
É uma boa ideia, nunca tinha pensado nisso. Mas desconfio que, para lutar pela ruptura, a pessoa tem que ter uma saúde boa. Alguns artistas tombaram pela peste – caso do pintor austríaco Egon Schiele e de sua mulher, Edith Schiele, ambos derrubados pela gripe espanhola. Schiele tinha 28 anos. Não era privilégio dele. A “espanhola” foi um desastre planetário. Entre 50 e 100 milhões de mortos. E a população da Terra era, no máximo, um quinto da que é hoje. No Rio de Janeiro, a melhor narrativa a respeito foi feita por Pedro Nava, em sua coleção de memórias – que, aliás, é uma obra-prima. Havia engarrafamento de carros fúnebres nas ruas. Em compensação, o carnaval do ano seguinte tem fama de ter sido o melhor da história do Rio.
Até a Primeira Guerra Mundial, no início do século 20, havia uma espécie de honra em morrer pela pátria, uma coragem herdada por um romantismo tardio. Mas a morte do poeta Guillaume Apollinaire, que foi baleado em batalha e depois sucumbiu à gripe espanhola, foi um choque entre seus companheiros de geração. Você vê alguma diferença entre as mortes provocadas pela peste e pela guerra?
Creio que esse heroísmo moral e cívico perdurou, entre os pobres de espírito, até pelo menos meados do século 20. Essa história de morrer pela pátria é ridícula. Como diz o Dr. Samuel Johnson, a pátria é o último refúgio dos canalhas. E, se posso acrescentar, dos cretinos também. A peste (ou sua versão atual, o coronavírus) desperta em nós a consciência da finitude. E há de nos despir da arrogância (olha a hubrys de novo aí, gente!) de imaginarmos ser os donos da natureza. Espero que isso nos faça mudar radicalmente nossos “ideais” de consumo. O consumo selvagem de tudo: do ar, do mar, dos outros. Não somos os reis da cocada preta. Como a pandemia demonstra, estamos mais para o cocô do cavalo do bandido.
Há quem diga que o distanciamento, ou certa frieza, do europeu é motivado pela sucessão de epidemias enfrentadas por eles ao longo de séculos. Seria então primeiramente uma maneira de se proteger de contágios. O que acha?
Não saberia generalizar. Já conheci muitos europeus calorosos. Até franceses, tidos anedoticamente como frios. Italianos e espanhóis, em geral, são calorosos como nós, ou vice-versa. Nossa diferença talvez seja a herança afro-brasileira, ou relativa à nossa estrutura (ou falta dela) social. Nas favelas do Rio, por exemplo, há uma afabilidade encantadora. E também há um senso de comunidade que o pessoal “do asfalto” – como se dizia nos anos 1960 – raramente tem. Por outro lado, as paixões de alguns poetas europeus posteriores às diversas pestes são fervorosas. Você vê isso em Camões, em John Donne e outros. Não há peste que segure. Esse distanciamento referido por você talvez seja um efeito – ou quem sabe um defeito – da civilização ocidental.
Pedro Nava era médico, além de escritor, e teve um olhar, digamos, sanitário sobre o que era o Brasil daquele início de século 20, vitimado pela gripe espanhola e pela briga de sanitaristas, como Oswaldo Cruz ao tentar vacinar toda a população. Tanto lá como agora há uma resistência às orientações médicas. Será que não aprendemos?
Pedro Nava nasceu em 1903. Quando encarou a gripe espanhola, tinha 15 anos. Deve ter ficado assombrado a vida inteira com o que viu. Se não me engano, era especialista em Reumatologia. Chegou a tratar de meu pai, nos anos 1960, a quem prescreveu um tratamento à base de raios X, que não tinha nada a ver com a doença. Acontece. A medicina enfrenta sempre a obtusidade dos leigos. Imagine só a loucura que Oswaldo Cruz encarou para convencer os debiloides da pátria a fazer a vacinação. Tivemos lideranças horríveis no princípio do século 20. Não podíamos imaginar que iríamos piorar tanto na segunda década do século 21.
Não é curioso o Brasil ter perdido um presidente para a gripe espanhola, ter havido tantas revoltas contra a vacinação em massa e, no entanto, haver poucos registros na literatura brasileira?
Li recentemente discussões sobre a causa mortis do presidente Rodrigues Alves. Creio que Metrópole à Beira-Mar (Companhia das Letras, 2019), excelente livro de Ruy Castro, fala sobre o assunto. Quanto à ficção escassa sobre o tema, talvez se deva ao fato de que o antagonista – ou seja, o vírus – é um inimigo invisível. O ficcionista precisa ser um craque pra fazer do vírus personagem. As melhores ficções virais que conheço são algumas obras de Franz Kafka. Depois O Rinoceronte, de Eugène Ionesco. E, por fim, Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Todas essas ficções partem de uma alegoria, que aos poucos se torna concreta. E nos aterroriza para sempre. Entre as tragédias brasileiras, talvez a mais notável seja a de Canudos, descrita por Euclides da Cunha. E A Retirada da Laguna, escrita pelo Taunay. Machado não gostava de tragédia. Esse gênero não agradaria às suas leitoras. Digamos que ele fosse tragicômico.
Como você tem enfrentado o isolamento? Quais livros tirou para ler?
Tirei vários livros da estante. Tinha planos incríveis para o período da pandemia. Em vão. Não consegui ler quase nada. Li Hamlet [obra de William Shakespeare], pela décima vez. Tentei ler O Amor nos Tempos do Cólera [de Gabriel Garcia Marquez], traduzido por Antonio Callado. Descobri que já o havia lido. Em suma, em matéria de leitura, tenho sido um fracasso.
Acha que o isolamento social no Brasil pode resultar em obra literária? Ou tudo será esquecido?
Difícil fazer conjeturas a respeito. Se for pra chutar, acredito que teremos uma epidemia de poemas pandêmicos. Como nos séculos 15 e 16, em que todo mundo imitava o Petrarca, falando sobre as mesmas coisas. O futuro vai fazer uma seleção e avaliar se alguma coisa presta.