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Algaravia

Ilustrações: Juliana Vomero
Ilustrações: Juliana Vomero

Algaravia

vozes em curto-circuito

 

Todo um módulo sobre sobrevivências,

leio na sua programação de aula

e já não quero saber do que trata:

importa, agora, suspender a leitura

antes de preencher os sentidos

o olho deve ser ágil no assalto

– entre caça e passeio –

ou apenas postar-se diante

do que, por si mesmo, salta:

uma expressão ou frase ou letra

um vaga-lume na noite.

Colher palavras soltas:

lembrar-se:

 

Tudo também pode girar em torno

de imagens fugazes,

desvio-me para outra página,

a vida orgânica das formas

você não entende bem o meu modo de ler

girar em torno, eu poderia dizer

as palavras dançam como dervish.

 

Minha tarefa era te ajudar a escolher

o curso deste semestre

você me pergunta o que acho

enquanto anoto no guardanapo

as cintilações desta noite

e tento imaginar o que seria

um módulo inteiro sobre sobrevivências,

: o que há de orgânico e fugaz

em permanecer.

 

Não vou escrever agora.

Na próxima limpeza da bolsa

– que me salva os restos dos dias –

vou achar o guardanapo, abri-lo

: novo salto e caça e silêncio

outro giro dos sentidos:

dança, desvio

 

Você se deita no sofá com camisa e calça de brim.

Visto apenas camiseta e calcinha. Como sempre.

Vamos ver um filme.

Você está sempre pronto para sair.

Eu troco a roupa no último minuto, gosto

de estar à vontade em casa.

Quando precisamos de pão, ou de algo da farmácia,

geralmente você vai.

E reclama que eu não gosto de fazer compras.

Você não gosta de listas.

 

Desde que me casei, multiplicaram-se as listas:

areia para as gatas, ração, leite para a bebê, todos os grupos

de alimentos para o almoço e o jantar da bebê,

pomada para a bebê, fraldas para a bebê, etc. etc.

Listas para poemas:

– você com calça de brim no sofá

– você que me pede para fazer uma lista de filmes

– comparar as minhas duas novas cicatrizes

– as fotos que recebo no celular com a legenda Olhares

– a filha que quer brincar com as tomadas.

 

Falta de tempo para escrever os poemas que estão

na lista de ideias para poemas.

Falta de tempo para rever a lista.

 

Antes, você ficava com sapatos em casa.

Agora fica de meias e chinelos.

Uma concessão que faz para mim. Não gosto

de sapatos dentro de casa.

Você mistura o dentro e o fora. Tento separar:

a rua vem até aqui.

Tento pensar o que isso quer dizer de você e de mim. 

 

Você reclama que faço poucas concessões.

Penso no significado jurídico de concessão:

explorar uma atividade, assumir riscos, prestar contas.

Tento pensar numa lista de concessões. Mas me

desvio na exploração das águas, da energia elétrica,

do subsolo, o casamento como um Estado

delegando os seus serviços.

 

Não gosto de dormir vestida, mesmo no frio.

Você aprendeu esse hábito dormindo comigo.

Acho que as minhas concessões são assim, não como

‘tirar a roupa no frio’, quero dizer: como um

novo hábito. Mas há algo de choque, então:

posso combinar as metáforas.

Já é inverno. Mesmo assim, continuo de calcinha

e camiseta. Não gosto de sentir frio. Gosto menos

de estar sempre pronta para a farmácia ou o

supermercado, preciso de um pijama quente, saio e

compro coisas para a nossa filha, me desvio, posso

chamar de concessão o que é puro amor?

 

Ontem perguntei por que você estava se

arrumando às 7 horas da manhã.

‘Porque vou sair depois do almoço e é mais fácil

já estar pronto’, você respondeu, enquanto servia

o café que eu fiz.

Fazer café todo dia para nós é talvez concessão,

ou amor, ou talvez o casamento seja também como

uma lista em sobreposição: opostos são sinônimos,

atravessados; o que antes eu só sabia fazer num poema.

 

Penso no que tudo isso quer dizer de você e de mim.

 

Como no poema de Joseph Stroud:

depois de cinco anos de casamento,

alguém pensa que encontrou

A mais difícil tradução do amor:

“Mas foi como aquela noite na mostra

de filme estrangeiro

quando de repente no meio do filme

as legendas sumiram e entrou a dublagem

e por um segundo pensou que entendia romeno.”

 

Penso nos meus pais

eles não gostam de acompanhar as legendas,

por certa preguiça (ou descuido) preferem

filmes dublados

talvez o amor seja isso, língua escolhida

sem mistificação.

 

Passo o dia pensando em amor, filmes e tradução

penso: talvez amor seja o oposto:

ver um filme dublado que muda o idioma

ganha legendas

mas som e texto não se encaixam no tempo.

 

Lembro de você no café da manhã lendo

as notícias no seu celular

enquanto no meu eu lia A mais difícil

tradução do amor

 

Ou: o filme perfeitamente dublado ganha legendas

e toda a história parece contada em um cenário

distante demais.

Abandono a sala. Penso em países que não vou conhecer.

 

De tarde, pensar: a tradução parece cinema mudo.

O que dá certo ar cômico à ideia do amor

 

‘Depois de um ano de casamento’ seria o início

do nosso poema,

o que não dá a devida seriedade à ideia de tradução

 

ou: quando no meio do filme entram as legendas

você percebe que a história acontece em uma língua

estrangeira

– que nenhum dos dois conhece –

o amor é dublagem inventada, você finalmente entende

sobrepondo outra história:

é quando o próprio filme desaparece.

 

Mônica de Aquino é poeta, autora de Sístole (Bem-Te-Vi, 2005), Continuar a Nascer (Relicário Edições, 2019) e outras obras. Foi finalista do 61º Prêmio Jabuti na categoria Poesia com o livro Fundo Falso (Relicário Edições, 2018). Os poemas desta seção fazem parte do projeto Mofo em Floração, feitos em diálogo com textos, sons e imagens de Alejandra Pizarnik, Joseph Stroud, Carlito Azevedo, Gustavo Silveira Ribeiro e Georges Didi-Huberman.