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O valor do conhecimento
O REITOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS DEFENDE
O ENSINO SUPERIOR COM CURRÍCULO MAIS FLEXÍVEL, AUTONOMIA E LIBERDADE ACADÊMICA
Se a história do Brasil data de pouco mais de 500 anos, a origem dos cursos de formação no Brasil também é recente. Foi em 1808 que Dom João VI fundou a primeira instituição de ensino superior, a Escola de Cirurgia, que veio a se tornar a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. De lá para cá, esse número vem se multiplicando. Segundo o último Censo de Educação Superior, no Brasil há mais de 2,3 mil instituições de ensino superior públicas e privadas. Parte delas entra no rol das universidades, que têm garantidas pela Constituição Federal autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecem ao “princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Na prática, como as universidades públicas vêm atuando hoje? E quais desafios encontram pela frente?
Físico, professor, editor-chefe da revista Ciência e Cultura, da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), e atual reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Knobel comenta sobre o tema.
Quadro complexo
O cenário da educação superior brasileira é bastante delicado e complexo. No Brasil, pouco menos de 20% dos jovens entre 18 e 24 anos estão nas universidades. Há lacunas que os impedem de entrar no ensino superior. No Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, uma rede mundial de avaliação de desempenho escolar], com jovens de 15 a 20 anos, o Brasil está entre as últimas posições. Isso todos nós já sabemos. O que a gente não sabe é que, no país, 40% dos jovens que fazem o Pisa tiram nota zero. O que isso significa? Vou dar um exemplo de uma questão básica no Pisa: “Se um dólar vale hoje cinco reais, e eu tenho cinco dólares, quantos reais eu tenho?”. Essa é uma pergunta típica de Matemática, uma regra de três, a que 40% dos nossos jovens não conseguem responder. Além disso, menos de 1% tira nota 5 ou 6, consideradas notas mínimas para poder acompanhar um curso de ensino superior. Ou seja, temos aí o problema da qualidade desde o ensino fundamental para o acesso às universidades. Outro problema é a desigualdade. Muitas vagas das universidades públicas, até recentemente, eram preenchidas por pessoas mais ricas, com condições de fazer um cursinho, por exemplo. Essa situação está mudando com o sistema de inclusão social e de cotas étnico-raciais implantadas nas universidades, a fim de buscar uma equidade cada vez maior.
Currículo e mobilidade
No Brasil, temos um sistema de currículos engessado, mal estruturado e muito conteudista. Para um engenheiro se formar, ele passa cinco anos dentro de sala de aula sem a possibilidade de realizar atividades extracurriculares, tão fundamentais para a formação. Além disso, há outra questão: não é justo alguém com 17 anos ter que escolher a profissão para o resto da vida. A chance de errar é imensa, e isso acontece no mundo inteiro. Mas não temos uma flexibilidade na universidade brasileira. Não existem, por exemplo, cursos como nos Estados Unidos, o “Liberal Arts College”, de formação geral. Hoje esse papel é preenchido por cursos de Direito, de Administração, por exemplo. Quando as pessoas não sabem o que fazer, elas os escolhem. Depois de ingressar é difícil mudar de curso e o aluno precisa voltar à estaca zero, sem aproveitar disciplinas. Então, além de um currículo engessado, há pouca mobilidade.
Fomento à cultura
Ajudei, na Unicamp, na concepção e criação do programa Aluno-Artista, para o qual temos um edital semestral e convidamos os alunos da universidade, não só da área de artes, a enviar projetos que serão financiados com bolsas. Projetos de teatro, cinema, grafite, entre outros. A única contrapartida é que apresentem os projetos para a comunidade universitária. Com esse projeto temos uma parceria com o Sesc Campinas, onde são apresentados os trabalhos realizados pelos alunos. Na Unicamp há uma visão de que é por meio da cultura que a gente pode ter uma formação acadêmica ainda mais forte. A pessoa tem que ter essa dimensão cultural muito bem estabelecida. Isso é algo que falta muito nas famílias brasileiras, de modo geral. Há poucos espaços, há poucos equipamentos culturais e as universidades também realizam essa formação.
A GENTE PRECISA DE UMA CONEXÃO MAIS DIRETA
COM A SOCIEDADE PARA MOSTRAR
A IMPORTÂNCIA DA UNIVERSIDADE
Pesquisa em xeque
Há dois pilares fundamentais para qualquer universidade: autonomia e liberdade acadêmica. Sem esses pilares não existem boas universidades. Temos que lutar para manter esses pilares firmes. Além dos ataques recentes a esses valores, temos tido também uma diminuição significativa no financiamento à pesquisa. Um exemplo: a última notícia da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação do Ministério da Educação para expansão e consolidação de mestrado e doutorado no país] é que vão redistribuir as bolsas de mestrado e doutorado mediante o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] das cidades onde as universidades estão localizadas. Só que as boas universidades de pesquisa estão, muitas vezes, em cidades com o IDH mais alto porque, provavelmente, conquistaram esse IDH justamente por causa das universidades. Na hora de pensar uma política pública, é necessário pensar em todas as consequências. Vivemos um momento bastante preocupante na história da pesquisa no país e isso é algo que tem sido repetido pelos reitores, pelas sociedades científicas, por todos os integrantes dessa comunidade. Insisto que a comunicação é fundamental para que a sociedade apoie mais a ciência, a tecnologia e a inovação. Por exemplo, pergunte na rua: O que é Capes? Ou, o que é CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, fundação pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, que tem como atribuição fomentar a pesquisa científica, tecnológica e de inovação]? Poucos saberão responder, infelizmente...
Opinião pública
Temos uma dificuldade intrínseca na comunicação. Do ponto de vista das universidades, a gente não consegue hoje falar a linguagem do público jovem e da sociedade de maneira geral. A gente tem sofrido, como universidade pública, ataques sem precedentes, e esses ataques não vêm gratuitamente, eles respondem a uma parcela considerável hoje em dia da sociedade que não tem ideia do que a gente faz. Por mais que a gente se esforce, não estamos conseguindo comunicar adequadamente a importância das universidades públicas para o futuro do país. Então, estamos tentando mudar e entender um pouco mais essa linguagem. Talvez estejamos muito encapsulados na nossa realidade, na nossa bolha – como isso costuma ser dito –, e a gente não percebe a realidade de fora. A gente precisa de uma conexão mais direta com a sociedade para mostrar a importância da universidade.
MARCELO KNOBEL esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 12 de março de 2020.