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Entrevista com Vilma Arêas
“Escrever significa reescrever. Ler significa reler, isso eu falo para meus alunos até hoje. De manhã você dá uma olhadinha, dá uma lida, no meio do dia você dá outra olhada com atenção, já muda, você tem que conviver com aquele texto”
Vilma Arêas é fluminense de Campos de Goytacazes, porém vive há muitos anos em São Paulo. Professora de literatura brasileira na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é autora de diversos livros como -Vento sul, Aos trancos e relâmpagos e Trouxa frouxa. É estudiosa da obra de Clarice Lispector, sobre a qual escreveu Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos (2005, prêmio APCA na categoria Literatura), tendo a conhecido no Rio de Janeiro. Pela terceira vez, Vilma recebeu o prêmio Jabuti 2019 com o seu último livro Um Beijo por Mês (Luna Parque Edições, 2018), vencedor na categoria contos. Vilma tem um tempo particular para escrever e nos encanta com suas interpretações do cotidiano.
Mais 60 Vilma, começamos a entrevista pedindo para você falar um pouco sobre sua história de vida, suas origens, a cidade em que você nasceu... você estava falando que tem irmãs. Fale sobre sua família.
Vilma Eu tenho, tinha duas irmãs e dois irmãos.
Você tem duas filhas...
Duas filhas e Francisco, que nasceu em [19]76. Tive ele com 40 anos. E aí eu fiquei perto da casa da minha mãe, que tinha uma casa enorme, meus irmãos eram todos jovens, estava todo mundo ali, então eu ia muito lá, deixava as crianças lá, e não tinha jeito, entendeu? E ficavam lá, meu irmão tinha gato, cachorro, o menor tinha macaco... E o menor era muito amigo delas e elas o adoravam, eu tive essa facilidade do interior. Quando eu me separei, Fernanda tinha seis e Virginia tinha cinco, elas têm um ano de diferença.
Eram lá de Campos dos Goytacazes... E então você veio para São Paulo?
Vim para São Paulo porque estava desempregada no Rio [de Janeiro], daí o Fausto (segundo marido) tinha feito economia na Alemanha e foi chamado para aquele jornal de economia, o Gazeta Mercantil. Então, convidaram ele, que veio um ano na frente, eu fiquei com as crianças para ver se dava certo, e eu vim. Adorei São Paulo. Tinha o apartamento, tinha o trabalho e eu fiz doutorado. Vim pra cá fazer o doutorado. Aí, não conhecia ninguém. Em São Paulo não conhecia nada. Aí fui para a USP [Universidade de São Paulo] e fui ver... o Décio de Almeida Prado que tinha duas vagas. Eu sabia que ele era formidável. Décio foi o meu melhor amigo aqui em São Paulo. Eu tenho saudade dele até hoje. Ele olhou meus papeis e perguntou assim: “Mas por que você veio para São Paulo, tanta coisa para fazer no Rio” e tal... Olhei para ele e tive tanta confiança que pensei, vou dizer a verdade, “vim por amor”. Ele levou um choque, ((risos)). Entrevista de doutoramento, por amor? Ele era assim, recebia um golpe, relaxava, e dizia “me conta essa história...” Contei. Pronto, conversamos mais de duas horas. Isso foi em [19]79.
Vilma, você ficou na Unicamp até que ano?
Até me aposentar, com 70, em [19]83. Aposentei com 50 anos de sala de aula. Fui expulsa da Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. Eu estou aqui por causa da ditadura de [19]64, né? Fui expulsa, fui detida, meu marido foi preso, torturadíssimo, acabou morrendo.
Hoje se fala em feminismo, acho que nunca se falou tanto disso de uma maneira tão generalizada, as meninas falam disso, crianças, adultos e velhos, mas você falando, você teve uma atitude muito feminista naquela época...
Ah, é... Eu me separei com 29 anos do meu primeiro marido. Em Campos de Goytacazes, você fica logo mal falada. Eu não ligava.
Mas e sua família? Você teve essa criação progressista?
Ah, não existia isso. Eu fiz faculdade no Rio, em Campos não tinha. Fiz faculdade entre 1955 a 1958, e o que me salvou é que tive uma bolsa... Eu dava aula, depois que apareceu faculdade em Campos, de letras, então, me chamaram para dar aula lá. Aí fui para Campos, me casei e aí, no meio, o Conselho Britânico passou uma circular convidando professores de universidades do interior para um estágio de quatro meses na Inglaterra, e que estudassem literatura inglesa. Eu tinha que fazer uma prova no Rio. Fiz a prova, passei, daí eles pagavam a passagem de volta, não a de ida, você tinha que pagar a de ida. Era para não pagar a passagem de alguém que depois ficasse lá. Quase fiquei ((risos)), mas eu tinha duas crianças. Daí, eu reuni o pessoal ao redor da mesa e falei: “Mês que vem vou para a Inglaterra”. O mundo caiu.
Como foi essa experiência?
Foi maravilhosa, não só porque eu tive aulas de fonética e tudo mais, mas vi que era um país civilizado. Só para vocês verem, eu queria ter umas aulas de fonética com um professor que era muito bem falado, e fui lá na secretaria. Falei que queria ter aula com o tal professor. Ela perguntou: “Qual o melhor dia para você?” Eu falei: “Quinta-feira”. Ela disse: “Na quinta, ele bebe” ((risos)). Pensei, estamos num país civilizado ((risos)).
Quais são suas inspirações para escrever e onde você escreve, Vilma?
Eu escrevo no papel, quer dizer, eu rabisco, porque eu gosto de escrever no meio de gente. Em ônibus, em trem, assim, na rua, faço um rabiscadinho, porque eu não tenho carro, só ando de ônibus. Eu gosto, você tem uma impressão forte às vezes, e rabisco uma coisa. Tenho um sonho, então rabisco. Depois, vou juntando essas coisas e vai fazendo um sentido.
Tem uma cena, do próprio beijo, do conto, eu adoro. (de Um Beijo por Mês, seu último livro)
Do conto do chofer?
Isso.
É verdade, esse conto.
Então, quero saber disso, Vilma... A personagem fala para o motorista o seguinte quando ele pergunta por que ela não quer um relacionamento: “É que eu cheguei à conclusão de que tenho pouco tempo e preciso me concentrar para fazer mais alguma coisa”.
É verdade. Essa história é formidável, porque quando o Fausto morreu, meu marido... eu me apaixonei por ele com 18 anos, não deu certo. Ele era do Partido Comunista, achava que eu era uma idiota da letras, ele era um ano mais velho do que eu e fazia filosofia. Foi expulso no último ano. Bom, daí ele foi embora para a Europa, voltou 20 anos depois. Quando ele morreu, bem, acho que foi o único homem que me dei bem para morar, porque eu nunca quis morar [junto]. Eu acho que morar não dá certo, mas no fim ele insistiu, eu disse vamos experimentar e deu certo. As meninas aceitaram bem, depois tivemos um filho enquanto ele estava preso. Ele quis, eu disse: “Vamos providenciar”.
E a gente estava falando do conto.
O conto, pois é... então, saí da consulta do oftalmologista, é como está no conto, pupila dilatada, eu fiquei com medo de atravessar a rua, pedi para um motoboy para me atravessar, “você pode me levar até o outro lado, porque estou com medo de atravessar?”. Ele falou “vamos lá”, diante de um chofer, grandalhão, bigodudo, achei ele até simpático, não estava enxergando, aí ele falou: “Vem aqui na frente, para a gente ir conversando”. Eu disse: “ Você não vai bater de frente não, né?”. Ele disse: “Não”. Sentei na frente, achei normalíssimo. Aí, fomos conversando e ele começou a me fazer perguntas pessoais, “você gosta de cinema?”. “Você trabalha?” “Você tem filhos?” Eu perguntei, “você está me cantando?” ((risos)). Ah, eu pergunto logo, eu detesto esse negócio de sedução, fala o que quer ((risos)). Aí ele respondeu: “Estou, estou te cantando, gostei muito de você”. “Ah, não vai dar, eu tenho 80 anos”, e ele disse: “Que coincidência, eu também”. Aí perguntei por que ele estava atrás de mulher aos 80 anos, ele falou: “Não estou atrás de mulher, estou atrás de você”. Olha que sabido!
Como isso acabou?
Sabido, eu ri, achei graça, mas perguntei o que tinha acontecido com ele, porque estava assim, sei lá, querendo... Aí ele custou, mas disse, “não, eu fui casado mais de 50 anos, muito feliz. Um dia cheguei em casa, minha mulher estava dormindo, me aproximei dela e ela estava morta. Aí, meu mundo desabou. Agora, passados alguns anos estou querendo refazer a vida”. Eu disse “você faz muito bem”, e ele “ah, então você quer...” Não, comigo não, você pode achar uma mulher mais nova, é melhor. Eu não. Então, ficou esse papo. Depois ficamos amigos, quando chegamos na frente do meu prédio e eu fui pagar, ele não quis, “não, eu vou pagar, nada disso de eu não quero que pague” e brinquei com ele “amores, amores, negócios a parte”. Aí ele falou “eu posso te dar um beijo?”. Sabe esses beijinhos que a gente dá nas pessoas?
Ele te beijou?
E ele me deu um beijo. Eu gostei ((risos)). Gostei do beijo e falei: “Você topa um beijo por mês?”, e fui saindo. Ele falou: “Ah, não dá...”. Uma história ótima!
Em uma entrevista, você falou sobre a sua aproximação com a Clarice Lispector...
Minha amiga, fez análise comigo. Análise de grupo no Rio de Janeiro.
Você sugeriu, na Unicamp, que proibissem por dez anos que os alunos escrevessem teses sobre a Clarice, achei genial: “Clarice é pouco conhecida e virou santa como Fernando Pessoa, se aproximam dela para adorar. É preciso ler sua escrita e abandonar o mito”.
Pois é, porque ninguém mais lê a Clarice, já chegam para adorar. Não é possível.
E a gente vê muito nas redes sociais (Facebook, Instagram etc.) frases referenciando Clarice Lispector...
Nem sei se são dela. Conheço muito a obra dela e fico pensando: essa frase, será que é da Clarice? Como ela é muito irregular..., quando eu falo isso, as pessoas querem me matar. Ela é irregular. Quando ela acerta, ela acerta de boca e por isso que ela é genial. É como nós. Nós temos coisas boas e algumas coisas péssimas. É essa mistura. Isso é risco, colocar a pessoa ali como uma santa. Sem ao menos conhecê-la, conhecer suas obras.
O que é mais difícil, escrever ou envelhecer?
Mais difícil? Envelhecer, claro. Escrever, você escreve. Escrever significa reescrever. Ler significa reler, isso eu falo para meus alunos até hoje. Eu tenho aluno até hoje. Um livro de poema, você tem que ler um poema por dia. De manhã você dá uma olhadinha, dá uma lida, no meio do dia você dá outra olhada com atenção, já muda, você tem que conviver com aquele texto. Eu só escrevo coisas muito curtas. É a mesma coisa. É um tipo de poesia, quer dizer, você tem que ler, reler, a coisa é essa, a receita é essa, mas tem que reler. Escrever é difícil, mas você pode reescrever. Eu deixo na gaveta. Eu tenho dois gavetões que estão cheios de coisas. Sempre coisa de jornal, porque também é uma maneira de você resistir à ficção, que eu fiquei enjoada. O mundo como está, o Brasil como está, você ficar inventando coisa, não quero. Muito chato isso.
O que você acha da literatura brasileira atualmente?
Olha, eu acho que ela é boa. Eu acho que escrevem muito, mas também acho que... Bom, tudo virou mercadoria, se você resistir a isso, você fica meio fora, não tem jeito. Então, tem que escrever muito. Os editores falam, tem que escrever um livro por ano, o nome não pode sair da vitrine. Sai com isso, não tenho nada com isso, mas é. Gostam de livro grande, gostam muito de enredo. Eu já não gosto muito de enredo, gosto de enredinho, mas não gosto daqueles enredos. Depois de Proust, depois de grandes autores, mesmo Graciliano, Machado... Agora, os meninos vieram aqui para eu dar umas aulas para eles, e eu dou tudo de graça, por que vou cobrar? Bobagem, né.
Quais são seus projetos atuais e futuros.
Bom, o futuro está ali pertinho ((risos)), estou com um livro que tenho que acabar, porque a editora me cobrou. Eles têm que ter uma bibliografia do que eles têm... um catálogo.
Vilma, você consegue olhar para a literatura como algo que te salvou de alguma maneira? Enfim, como você julgaria o papel dela na sua vida?
Foi importante para a minha vida. Eu morreria se não fosse isso. Fui uma criança muito solitária, ficava lendo, rabiscando algumas coisas, isso para mim foi fundamental, e é cada vez mais. Agora, nessa loucura toda... A gente sofre com isso. Eu sofro, tenho uma história mais longa, vivi outra ditadura, perdi o marido que eu adorava, perdi muitos amigos. E aí, quer dizer, sempre vou escrever uma coisa... existe outro clima, não sei, existe uma névoa, mesmo que seja ligada aos assuntos e tal, mas é uma proteção. É outro lugar. Para mim, é vida ou morte. Se me proibissem de escrever, e olha que eu escrevo pouco, eu escrevo muito e publico pouco. A verdade é essa, mas eu escrevo muito. Acho que se me proibissem não daria certo.
Hoje em dia você dá aula em casa?
É, estou dando, mas nem sei se vou continuar. Adoro, leio as coisas todas... Então, têm umas dez pessoas que de 15 em 15 dias se reúnem aqui e a gente conversa, porque eles leem o livro antes, nós conversamos. Então, eu pedi para eles lerem Dom Casmurro. Foi um choque. Eles leram, 15 dias para ler, depois nós vimos a melhor crítica sobre Dom Casmurro, e eles ficaram chocados quando viram que o Dom Casmurro é um crápula. Foi uma americana que leu o livro e disse: “Mas esse cara é um crápula!”. Nós estamos tão acostumados com a indecência social, a verdade é essa, que é normal.
Quer dizer, você continua produzindo...
Continuo, eu continuo escrevendo também.
E o amor existe?
Nossa, amor existe completamente, o que é isso? Não existe amor? Eu era muito tola, do interior. Quando fui para a Inglaterra, entendi o que era a vida, uma vida mais livre, mais madura, mais democrática... Aconteceu uma coisa, para vocês verem o clima. Em Londres, numa rua estreita, atravessei no sinal vermelho. Daí veio aquele guarda, não sei se hoje é assim, um guarda enorme, sem arma, chegou perto de mim e falou “que cor é aquela?”. Eu falei, “vermelha”. “E o que significa?” “Que eu não posso atravessar.” “E o que você fez?” “Eu atravessei, mas não vinha nenhuma máquina.” Não se trata de máquina, trata-se da lei. E podia acontecer alguma coisa inesperada e eu não estava preparada. Então, tem que obedecer, ele falou comigo emburradíssimo “não vou fazer nada porque você é estrangeira, mas considere-se severamente repreendida”. Existe isso? Uma coisa civilizada, né? Considere-se severamente repreendida, eu me considerei, até dei um beijo nele. Fiquei tão contente, me deu um contentamento, na verdade, ele me perdoou. Não há nada como o perdão. É muito bom. Agora, amor existe à beça, a todo momento, o que é isso?