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Ella e John: Uma trajetória pelo amor

Texto: Ioná Damiana de Souza

 

Determinados a fazer uma grande viagem, o casal Ella e John pegam a estrada com seu velho trailer, batizado The Leisure Seeker, título original do filme, que pode ser livremente traduzido como “o caçador de lazer”. O filho mais jovem se desespera ao constatar a ausência dos pais, cuja idade é avançada, e convoca sua irmã para convencê-los a retornar para casa. A trama do road movie vai se desenvolvendo em momentos que revelam os dilemas dos personagens principais.

O ritmo do filme é dado por essa trajetória de carro, na qual há uma percepção imediata da passagem do espaço e tempo pela mudança das paisagens. Essa sensação de presença real entremeada pelas paradas ilustra a rotina que se estabelece entre o casal durante a viagem, e permite revelar de forma delicada sua condição humana, dando outro sentido à jornada. John é um professor de literatura apaixonado por Ernest Hemingway, capaz de recitar trechos da obra de cor e fazer belas digressões críticas conversando com as figuras com as quais vai encontrando. Seu jeito um tanto aéreo, que lhe confere ares de excentricidade, vai aos poucos dando lugar ao reconhecimento de um real problema de memória em decorrência de uma doença degenerativa. No lugar da mulher que se dedicou aos cuidados da família ao longo da vida, um tanto recorrente na geração feminina que chegou à terceira idade nos dias atuais, Ella assume a responsabilidade por todas as providências práticas.  Suas crises de cansaço revelam-se aos poucos como sintoma de um câncer.

Ainda que traga um dos estereótipos que acompanham o envelhecimento, a incidência de doenças, a abordagem mais significativamente trabalhada é a perda de autonomia. Talvez uma das proezas do filme seja justamente a de propor uma trama na qual o casal resolve desfrutar um pouco de liberdade por meio da viagem, desafiando a rotina de cuidados que os limitava. Ella confere a si mesma uma potência realizadora que parecia distante ao levar o marido para conhecer a casa onde morou o escritor tão admirado.

Interpretados por Helen Mirren e Donald Sutherland, os personagens ganham densidade pelo empenho na atuação e, sobretudo, por um entrosamento genuíno, que somente os atores experientes sabem forjar.  Há um clima de cumplicidade comovente entre os dois, mostrando um afeto de amplo espectro, capaz de oscilar entre polaridades opostas sem se quebrar. Absolutamente irascível na tarefa de ajudar o marido a exercitar a memória, Ella estimula retrospectivas constantes que raramente surtem efeito, mas contribuem para conhecer a trajetória dos personagens. Ao citar um evento retroativo, ela traz o contato com o passado, e, ao esquecer tudo imediatamente, John a convoca para uma entrega completa ao momento presente. Esse movimento recorrente traz nuances ora dramáticas, ora cômicas para o tema da degeneração da memória.

A direção de Paolo Virzi resulta em um filme leve que não perde a complexidade do tema a que se propõe explorar, algo que fica patente na abordagem do amor amadurecido, da sexualidade, das vulnerabilidades decorrentes do envelhecimento e mesmo de um processo de elaboração da inevitável finitude da vida. O fator viagem, que impõe novas rotinas e os desafia ao imprevisto, reforça vínculos e ao mesmo tempo permite ao casal a realização do desejo de conduzir seu próprio destino.