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Passei o sábado com meu avô

Foto: Rodrigo Fonseca
Foto: Rodrigo Fonseca

Por Marcelo Tolentino

 

Por volta dos meus três anos de idade meus pais decidiram se mudar para São Paulo. Meu irmão havia acabado de nascer e na época morávamos em São José dos Campos. O sobrado no Tatuapé que nos recebeu era a casa dos meus avós maternos e, na ausência de quartos desocupados, eu e meu irmão dormíamos em colchões que ficavam no pé e na lateral da cama deles. Naquela época tudo era diversão com o vovô Heber, que apesar das tentativas malsucedidas com truques de mágica, datilografava na máquina de escrever sem olhar para as teclas, conseguia mexer as orelhas e tinha uma habilidade incrível para descascar laranjas sem que a casca se partisse. Ele era um homem bom, lembro que passava os dias de aposentado resolvendo burocracias dos parentes, além de sempre visitar diversos mercados para comparar os preços dos produtos e assim garantir que estava economizando. Nos finais de tarde, caminhava fumando um cigarro que era assoprado ao invés de tragado – uma das coisas que reforçava seu ar ingênuo.

Meu avô nasceu em Avaré, em 1925. Aos 17 anos veio com toda a família para São Paulo. Ele me contava histórias que viveu na infância e na adolescência, como quando ajudava seu tio a fazer “pilulinhas” na farmácia, ou quando trabalhou na sorveteria de um parente. Eu gostava especialmente de uma, repetida com certa frequência, em que um amigo, se passando por ele, dedicou uma música na rádio para uma menina comprometida, o que fez com que meu avô ficasse escondido sem ir à escola por vários dias seguidos para evitar uma confusão – ele sempre foi de evitar confusões.

O tempo foi passando, eu já sabia as histórias do meu avô de cor, mas o fato é que nunca entramos em um carro com destino a Avaré para que essas lembranças se ambientassem com mais precisão. Os últimos anos de sua vida foram dominados pelo Alzheimer e com a doença nasceu em mim certa frustração e arrependimento por nunca ter conhecido Avaré na companhia ele.

Quando eu perdi meu avô, no final de 2011, estava morando nos Estados Unidos. Assim que voltei para o Brasil, em uma tentativa de reviver um tempo com ele, decidi fazer, de memória, uma pequena escultura em bronze do seu corpo já fragilizado.

Ao receber o convite para colaborar com essa edição da revista, cujo tema principal é turismo, surgiu a ideia de fazer outro retrato escultórico do meu avô, em uma pose que era cotidiana para ele e que, geneticamente ou por hábito, também se tornou confortável para mim, e finalmente viajar para Avaré na sua companhia, ainda que simbólica.

Em Avaré, visitei lugares que eram sempre lembrados por ele: a fonte da praça, o coreto, a escola, as igrejas, e a rua em que ele morou. Imagino que se ele estivesse lá comigo, se sentiria um pouco turista na própria cidade – ele sempre se impressionava com as mudanças que aconteceram no Tatuapé, era comum ouvir da sua boca “isso aqui mudou muito”. Tenho certeza que seria um choque para ele ver as modernidades que tomaram o espaço da memória.

Uma coisa curiosa foi ver a reação dos moradores da cidade, que ao passarem pela escultura queriam saber quem era a pessoa representada naquela pequena figura de quarenta centímetros. Os que me perguntaram se era uma pessoa importante ouviram que sim, certamente. A escultura de gesso encontrou uma mureta alta na Rua Mato Grosso, onde ele morou, e assim me despedi de Avaré com a sensação de ter diminuído um pouco o débito que tinha com esse cara que deixou tantas saudades.

Não posso deixar de agradecer a companhia do amigo e fotógrafo Rodrigo Fonseca, responsável pelos lindos registros dessa visita, e do sempre generoso Newton Santana, meu mestre de escultura, que acompanhou meus passos escultóricos desde o primeiro dia e passou a fazer parte do meu grupo de grandes amigos.

 

Veja aqui outras fotos com a escultura de Marcelo Tolentino.