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Alegria de viver: Envelhecimento com poesia

Foto: Karla Priscila
Foto: Karla Priscila

Texto: Paula Cristina Bernardo

 

Relatar a experiência do Sarau Alegria de Viver, que faz parte do Trabalho Social com Idosos (TSI) do Sesc Jundiaí, é falar essencialmente de vida e superação de desafios na construção coletiva de um projeto feliz de velhice. Há um ano e meio o projeto está se apresentando enquanto laboratório para um exercício protagonista dessa velhice, ao mesmo tempo em que busca desconstruir estereótipos e preconceitos. Surgiu a partir de um Ponto de Encontro (reuniões mensais com os idosos frequentadores) em que foram elencadas sugestões de temas para o trabalho ao longo dos anos de 2018 e 2019.

Com participação de 85% de mulheres, o grupo do TSI do Sesc Jundiaí tem como principal

 característica o gosto pela dança, música e atividades esportivas. Até então, tinha pequeno contato com a poesia e poucos participantes, inclusive, tinham prazer ou hábito de leitura. A ideia de fazer um sarau surgiu de uma provocação poética, um desafio proposto que foi aceito pelos idosos. Foram pautadas oficinas que tratavam do conceito, um pouco da sua história e como organizá-lo. Um grupo de dez voluntários se reuniu com assessoria do Sarau da Coisa e do Núcleo 12, especialistas na produção desse tipo de evento em Jundiaí. Com o auxílio dos contratados, juntos, formataram uma proposta em que o protagonismo era dos idosos e idosas. A assessoria ajudou na produção, na organização da atividade e do grupo, que inicialmente era pequeno. No entanto, ao longo do processo de preparação, outras pessoas se interessaram em ajudar e o grupo cresceu.

A primeira apresentação aconteceu em 2018, na Área de Convivência do Sesc Jundiaí, envolvendo cerca de 25 pessoas com 60 anos ou mais, inclusive pessoas que não frequentavam constantemente as reuniões do Ponto de Encontro mas se identificaram com a proposta. Foi uma onda de alegria, uns contagiando os outros, em um sarau em que expressaram suas histórias e anseios, mas que acima de tudo celebrou a vida! Na programação havia de tudo um pouco, dança, poesia, causos, apresentações musicais etc. Foram criados por eles alguns quadros como:  A Fila Anda, uma fila de pessoas em que uma lê um verso ou pensamento e passa a vez para a próxima; a Tia Mônica, dança sincronizada com um trava-línguas que colocou todo mundo pra dançar e se divertir; e a Gaiola dos Pensamentos e Poemas, com uma gaiola cheia de textos em que os participantes podiam sortear e ler; entre outros. 

Durante as oficinas e os encontros muitos talentos foram revelados, entre eles o mestre de

 cerimônias, que tem apresentado todas as edições com esmero, e as dançarinas e coreógrafas, que criaram, dirigiram e ensaiaram vários quadros. Alguns idosos já estão escrevendo seus próprios poemas, perdendo a vergonha de ler em público e descobrindo o mundo da poesia. Muitos obstáculos estão sendo superados, entre eles a mediação de conflitos entre os participantes, que estão exercitando a alteridade e a empatia.

Uma das coisas que chamou a atenção no primeiro sarau foi o envolvimento intergeracional. Diferentes gerações participaram do evento e adoraram a experiência. Isso nos despertou uma reflexão que ainda está presente em nossas reuniões mensais: expressar essa alegria de viver é uma forma de superar paradigmas e desconstruir preconceitos? Se foi possível cativar as pessoas e envolvê-las nessa alegria, é possível provocar essa reflexão de forma desarmada? A interação com o público interno e externo ao Sesc foi muito espontânea e deu visibilidade a outras possibilidades de continuidade. Uma delas surgiu com o convite da Gerência de Estudos e Programas Sociais (Gepros) do Sesc São Paulo para participar da inauguração do Sesc Guarulhos, onde levamos uma delegação de Jundiaí com os sarauzeiros e um grupo de agregados que vem acompanhando, divulgando e prestigiando as apresentações.

Ainda em 2019, surgiu um desafio maior: organizar um Cá Entre Nós (encontro em que os idosos de uma unidade do Sesc preparam um dia de programação para receber pessoas com 60 anos ou mais de outras unidades), em que o protagonismo idoso fosse ainda maior. E foi exatamente o que aconteceu. O grupo de sarauzeiros aumentou, foram criadas equipes de

 trabalho, cada uma responsável por uma tarefa: se dividiram para selecionar os poemas, confeccionar os adereços, ensaiar as danças, escrever o texto do mestre de cerimônias etc. Foram realizadas mais oficinas para confecção de figurinos e rever os quadros, dando mais tempo também para a participação da plateia. O sarau aumentou de 30 minutos para 2 horas e o Alegria de Viver continuou cativando corações.

Depois dessa oportunidade, o Sarau Alegria de Viver ampliou seus horizontes e hoje pode ser considerado como uma referência, em construção, de protagonismo idoso. Apresentou-se em mais dois grandes eventos em que o idoso era o centro dos debates: o Longevidade Expo Fórum e o Seminário sobre Envelhecimento, Atividade Física e Cognição. Após todas essas apresentações o sarau já possui dois formatos, um completo, de 2 horas, com todos os quadros criados, e uma versão pocket de 30 minutos.

Ainda que vários estudos apontem para o aumento da população de pessoas com 60 anos ou mais, concomitante ao aumento da expectativa de vida, o preconceito ainda impera. Arraigado nos alicerces da sociedade está a ideia de velhice enquanto preparação para o fim da vida, atribuindo a essa fase menos possiblidades criativas e de integração social. O que nos leva a perguntar sobre o papel social do velho e da velha na sociedade contemporânea. Para além disso, nos arranjos familiares, muitas vezes, são arrimos de família e/ou responsáveis por parentes (filhos, netos, mães, pais etc.). Nessas circunstâncias, ficam em segundo plano seus desejos, vontades e sonhos em favor do cuidado com os familiares. Isso ocorre, principalmente, na velhice feminina, restringindo as possibilidades de interação social e relegando o idoso ao convívio familiar em detrimento de novas descobertas com pessoas da sua geração. A família é um alicerce muito importante na velhice. Constitui uma rede de apoio necessária no acompanhamento afetuoso do envelhecimento dos entes queridos. Mas há que se interrogar: até que ponto essa rede liberta ou aprisiona? Até que ponto se compreende a necessidade de novas experiências e novas descobertas na velhice? Por que parece estranho às pessoas, em geral, a ideia de descobrir novos talentos, novas habilidades, competências, novos sonhos, novos desejos na velhice? Por que ela não pode ser a fase da ousadia? É muito importante a convivência com filhos e netos, mas é tão importante quanto a ampliação dessas redes de inter-relação social, com pessoas que estão além do núcleo familiar. Nessa ampliação de horizontes é possível experimentar o que até então se considerava restrito aos jovens: a alegria de viver. E assim descobrir um novo hobby, um novo talento, um novo amor...

Em um diálogo que tivemos sobre os sentidos da velhice, várias falas dos idosos participantes do projeto demonstram sua leitura sobre ser velho e ser velha, entre elas: “Eu estou aposentado, já dei minha contribuição à sociedade, hoje quero desfrutar a vida e fazer tudo que gosto, praticar esportes, viajar, namorar sem ter que provar nada a ninguém. O que eu quero mostrar é minha alegria de viver” (Carlos Alberto de Oliveira). Em outra fala surge a seguinte reflexão: “A velhice é uma fase de descobertas também. Sim, é verdade que tem dores, perdas, limitações, mas precisamos celebrar que estamos vivos! Ser feliz, fazer novos amigos, conhecer novos lugares e sempre estar conectado com o mundo” (Rosalva Teixeira). “Quem não envelheceu é porque já morreu” (Maria Lúcia Esteves).

Assim nasceu e dessa forma vem caminhando o projeto do sarau, como uma fonte de alegria e descontração. Nos relatos sobre suas memórias de vida, vários idosos declararam que estão dispostos a viver fora dos padrões impostos, mas para compreensão dos significados implícitos nessa fala, se faz necessário dar continuidade aos questionamentos sobre a relação entre ser velho e velha e outras intersecções sociais. Neste momento, para redesenhar contornos e conteúdos do projeto para 2020, surgem mais interrogações e elas são extremamente importantes para aperfeiçoar a experiência. Em que medida o sarau os coloca num lugar de fala protagonista? O que ele representa do ponto de vista de mudança de paradigmas e desconstrução de estereótipos e preconceitos? Mais que isso, quem são essas pessoas depois de passar por essa vivência?

São interrogações que levaremos adiante, mas, por hora, o Sarau Alegria de Viver tem sido para aqueles que o assistem, mas principalmente para quem dele participa, uma oportunidade de aprendizado sobre o outro e com o outro, em que se aprende a respeitar limites e potencialidades, exercitar a empatia e a alteridade, além de uma forma de expressão de sentimentos, emoções, memórias, leituras de mundo e reflexões.

Os novos capítulos dessa história apontam para um redesenho e aperfeiçoamento do trabalho, levando o grupo a experimentar outras estéticas poéticas e outras formas de fazer um sarau, provocando reflexões não só sobre o seu papel social, bem como o que é ser velho ou velha na sociedade brasileira do século XXI. Recentemente, a poetisa e atriz Elizabeth Brait Alvim veio dar sua contribuição, trazendo a percepção da linguagem do corpo poético, da voz e suas dramaturgias e, assim, propondo um novo desafio de experimentação. Ela trouxe outra estética para a pauta, desvelando sentidos e formas de expressão que ampliam horizontes e nos colocam diante de novos desafios e aventuras para o próximo ano.

Num constante desafiar de valores, limites e criatividade, esse projeto tem por meta sensibilizar as gerações para a compreensão de que a velhice não é o fim, é apenas mais uma outra fase da vida, que pode ser tão alegre quanto qualquer outra, afinal é preciso: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz! Cantar e cantar e cantar a grandeza de ser um eterno aprendiz!” (Gonzaguinha).