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Hoje tem cinema!

Lauro Freire

Crédito: Marcos Garuti

Hoje tem cinema!
E muita gente passava carregando cadeiras e bancos, indo para o cinema ao ar livre. Toda semana tinha cinema. Era jantar correndo, passar na casa dos amigos e ir junto com a molecada ao cinema que ficava num espaço público.
O projetor ficava dentro do bar do Vasco e a tela era amarrada numa árvore e num poste ou então era a parede branca da escola onde todos nós estudávamos. Engraçado que não lembro dos filmes, sei que eram filmes de bangue-bangue ou Tarzan em sua maioria. Daí surgiu minha paixão pelo cinema e, das paixões que tive na vida, foi talvez a mais bem sucedida. Foi o meu Cinema Paradiso.
Um som vindo da rua, vozes misturadas com música, me acorda. Domingo de manhã. Era uma representação de "Pedro Mico", do Antonio Callado. Primeira vez que vi teatro na minha vida. Era na rua e de graça. Mais uma vez me apaixonei.
A arte chegava para nós representada na rua, na praça, no espaço público que era nosso. No mesmo espaço onde acontecia o jogo de futebol e todas as brincadeiras de uma infância que já vai muito longe, feita só de coisas boas. Os teatros ingleses do tempo de Shakespeare eram espaços públicos: na frente do palco, uma praça, onde os espectadores circulavam. Lá atrás, arquibancadas.
Pelas mãos de quem chegou o cinema e o teatro para nós que morávamos num bairro afastado, em Santos? O cinema, me disse o filho do Vasco, hoje ator, através da sociedade de melhoramentos do bairro, com diretores com cara de antipáticos para nós, crianças, e que hoje daqui, homenageio. O teatro veio pela iniciativa do movimento "Teatro ao Encontro do Povo", movimento que se espalhou por outros estados do Brasil e, me lembro, fazia parte a Lizete Negreiros, atriz.
O século vinte inventou a cultura de massa, a indústria da cultura, cultura para ganhar dinheiro vendendo muito, baixando o nível de exigência, padronizando o gosto. Se na Grécia antiga era possível ter Sófocles ou Eurípedes representados na praça, hoje o homem comum é condenado aos programas de televisão ou rádio, repetindo a mesma novela, a mesma música, os mesmos atores.
Que perda! De "Janela Indiscreta", para o "Casa dos Artistas"! Da riqueza musical brasileira, tantos ritmos, tantas danças, para o som monocórdio das tardes de domingo!
Cultura virou coisa de quem pode, os cinemas vão para os shoppings, bilhetes caros. E o teatro? Estão ficando enormes e caríssimos! E quem não pode, se sacode. Mas, como nos filmes de bangue-bangue, lá vem a cavalaria nos salvar! E esse é um filme que insiste em ficar na tela. Os nossos heróis projetam filmes nas ruas, ou pode ser o avô de uma amiga que passava filminhos Super-8 para os netos e amigos, alguém que forma uma biblioteca, monta um grupo de teatro. No final, venceremos ou resistiremos até o último homem.
Junto com o gosto das frutas roubadas dos vizinhos, está o sabor do cinema e do teatro vistos na rua, sabor de infância que me adoça a vida ainda hoje e me faz acreditar que, além dos lucros, da luta por audiência, do modelo cultural excludente, existe alguma coisa maior, que faz com que ainda hoje, crianças e adultos tenham contato com a cultura, fiquem maravilhados com o cinema e viajem por mundos e tempos e pensamentos através de livros.
Existe gente como o Zagatti, o Vituzzo e o Alberico que abrem janelas para um mundo novo, mostram como a vida pode ser melhor. Quantos meninos vão crescer com a paixão pela cultura por causa de gente como os heróis desta nossa história, gente que merece aplausos de pé. E o trabalho dessa gente que gosta de cultura, e não concorda que cultura deva ser vendida como sabão, é que me faz ter vontade de sair à janela e gritar para o povo que passa na rua:
Hoje tem cinema!

Lauro Freire é técnico do Sesc Carmo