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Voluntários culturais

Por Julio Cesar Caldeira

Um catador de papel monta um cinema em sua garagem, um comerciante abre um museu de projetores dentro de casa e um professor de português divide sua biblioteca com os vizinhos. Ações isoladas, sem amparo governamental ou privado, dão alento a comunidades carentes

Quando tinha cinco anos de idade, o catador de papelão José Luís Zagatti, paulista da cidade de Guariba, região de Ribeirão Preto, entrou numa sala de cinema nos braços de uma irmã. Desde então, aquele retrato de imagens projetadas numa grande tela nunca mais saiu da sua cabeça. Quarenta e sete anos depois, José Luís representa para os moradores da sua comunidade, em Taboão da Serra, Grande São Paulo, a idéia que eles têm do cinema. Há quatro anos projeta na garagem de sua casa, em sessões gratuitas com direito até a pipoca, filmes antigos em 16 mm numa máquina que ele mesmo comprou por oitenta reais. Hoje é "dono" do MiniCine Tupi.
Além do lirismo dessa história, há um fato importantíssimo por trás da atitude do projetista, uma realidade que ele conhece muito bem: "Não há como as pessoas daqui irem ao cinema", testemunha Zagatti, que há vinte anos não pisa numa sala de projeção. "É com isso que eu me preocupo bastante. A periferia é esquecida. Em todos os departamentos é assim, principalmente no da cultura." José Luís nunca procurou ajuda do Estado para seguir com seu pequeno cinema ou mesmo ampliar suas instalações. A única ajuda que recebe é da Associação Paulista dos Colecionadores, que lhe fornece filmes novos sempre que pode. "Conversamos bastante. Não sou como eles, sou humilde mas sou considerado um colecionador também", conta com orgulho.
No entanto, sua humildade não o impede de enxergar a realidade na qual vivem os moradores da periferia. E a vontade de propiciar uma luz no fim do túnel, aliada à sua paixão pelo cinema, o motivou a começar e o impulsiona a continuar. "Uma ou meia hora que as crianças ficam reunidas em torno de uma tela e de um projetor já é uma forma de evitar que tenham contato com a marginalidade, o que futuramente evitará problemas para elas e para a sociedade de modo geral", ensina o catador de papelão, que ainda cita uma frase, segundo ele, lida num livro do educador Paulo Freire: "Ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho".

Bons samaritanos
José Luís Zagatti é apenas um dos vários casos que existem em todo o país de pessoas que, cansadas de esperar alguma atitude dos órgãos públicos, resolveram arregaçar as mangas e criar um movimento de reação da sociedade. "É uma tendência que vem se espalhando no Brasil desta década", analisa a ensaísta e professora Walnice Nogueira Galvão. "Uma iniciativa pessoal que tem por ambição sanar lacunas e falhas do tecido social." Ela cita como bons exemplos projetos mais estruturados que, justamente pelo nível de organização, conseguem muito mais atenção e resultados, mobilizando um número maior de pessoas. Entre eles, a professora destaca o Projeto Guri, que ensina música às crianças carentes, e o Coparoca, cooperativa de costureiras formada pelas moradoras da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Porém, reconhece que essa reação por parte da sociedade vem se dando, por sua vez, de diversas maneiras, assumindo diferentes facetas. "Eu já tinha observado, há algum tempo, novidades muito interessantes da cena brasileira", retoma. "Há algo ainda mais privado e de iniciativa ainda mais 'caseira' pululando por aí. O que é uma tendência extremamente interessante: sãos esses bons samaritanos que olham ao seu redor e descobrem que têm vizinhos."
Outro desses "bons samaritanos", como classificou a educadora, é Antônio Vituzzo, um homem que, por si só, é parte viva - e com ótima memória - da história do cinema e da TV brasileiros. Diferentemente de José Luís, Vituzzo não encontrou sua paixão na arte de projetar filmes, mas os projetores, em suas constantes evoluções de modelo e tecnologia, o acompanham e dividem espaço com ele até hoje. Montou no bairro do Cambuci um verdadeiro museu do cinema. Entre as várias "alas" que o compõem, há um galpão coberto - no último andar - onde Vituzzo recebe os visitantes - escolares, amigos, artistas e curiosos de toda sorte - para contar histórias que testemunhou e para exibir parte de seu acervo. "Quando percebi o avanço do vídeo, comecei a separar algumas máquinas. Queria guardar ao menos uma de cada marca. As coisas foram tomando outro rumo, começaram a surgir câmeras fotográficas, equipamentos dos mais diversos ligados ao cinema e à fotografia. Quando percebi, já estava com aproximadamente 1500 peças."
Mais do que simplesmente guardar a memória do cinema, Vituzzo quer que ela nunca se apague. Por isso, além de receber visitantes, com a ajuda de alguns amigos promove eventos no local. Um deles foi a entrega de um prêmio no ano em que o cinema comemorou seu centenário. "Julgava ser um movimento nacional e não foi. Nem aqui nem no resto do mundo. No fim, fiquei só, mas fiz alguma coisa. Criei um troféuzinho com muito sacrifício, produzido por um amigo. Ele tinha uma fundição e me ajudou a fazer a peça a partir da minha idéia."
Quando questionado sobre algum tipo de ajuda do Governo que ele poderia ter recebido ao longo de sua vida dedicada ao cinema, Vituzzo é cauteloso. "Não acho que ele tenha a ver com as minhas loucuras", responde. "O Governo tem de cuidar da saúde, da alimentação, da moradia, da cultura em geral e não somente da cinematográfica."

Questões prementes
Aliás, a parceria Governo/cidadão é uma questão que exige mais que discursos inflamados e pontos de vista unilaterais. Para o diretor da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA/USP), o professor Waldenyr Caldas, é preciso ter muito claro de qual perfil de país estamos tratando. "Para falarmos sobre isso é necessário, em primeiro lugar, que façamos uma análise do sistema político no qual vivemos, que é capitalista", começa ele. "Para democratizar a cultura é necessário antes democratizar a economia, o que é impossível no capitalismo porque esse sistema político permite a concentração de riquezas. O ideal seria que o Estado fizesse isso, o que ele deseja mas não faz, entre outras coisas, porque não tem dinheiro mesmo." Waldenyr avalia que o Brasil ainda carece de itens básicos e fundamentais que, num primeiro momento, são mais importantes que a cultura. "Veja que não estou falando de educação, e sim de cultura. Existe algo mais premente que a cultura, que é a sobrevivência física das pessoas. O Estado ainda não fornece nem saneamento básico."
Sobre a solução de tão intrincada questão, o professor acredita que ela possa estar numa parceria entre o Governo e a sociedade, entre o Estado e a iniciativa privada. "O Estado não pode ser o mecenas de tudo. Não acho que ele tenha a obrigação de dar tudo à sociedade, esta deve criar seus mecanismos de auto-ajuda também", avalia. "Na minha opinião, o Estado deveria fazer parceria com o capital privado. Mas veja, uma coisa é parceria e outra é deixar que a propriedade privada seja produtora cultural. Parceria é parceria. Você me dá o capital, eu produzo e depois você recebe benefícios por meio de impostos e outras coisas", afirma.

Dinheiro público
Waldenyr acha que é preciso que o Estado tenha um staff para discutir com as empresas dispostas a investir em cultura. "E essas duas pontas devem se reunir e chegar a um consenso. Caso contrário, vira a chamada cultura afirmativa, ou seja, a cultura de reprodução do capital pelo capital. E assim não dá", afirma.
Outra voz que se levanta para questionar o papel do Governo no que diz respeito às suas políticas públicas em cultura é a do dramaturgo Aimar Labaki. Membro do movimento Arte Contra a Barbárie, uma espécie de fórum permanente de discussões acerca do assunto, Labaki expõe seu ponto de vista: "Todo o dinheiro usado pela Lei Rouanet, por exemplo, provém 100% de impostos. E imposto é dinheiro público. Esse capital é aplicado pelas empresas com critérios particulares e não públicos. Quem resolve onde irá se investir é o diretor de marketing, e a equação que ele tem de resolver é como fazer para que isso se reverta da melhor maneira possível para a imagem da sua empresa", reclama. Para Labaki, a verba conseguida por meio de concessões fiscais deveria ser aplicada considerando-se a melhor forma de fomentar a produção cultural que não pode sobreviver apenas do mercado. E qual a maneira de esse dinheiro garantir o direito do cidadão de ter acesso aos bens culturais? "Não faço juízo de valor quanto aos artistas com os quais o Estado promove shows. Se a população não tem acesso aos seus ídolos, independentemente deles serem bons ou não, e o Estado pode promover esse encontro, isso não deixa de ser uma manifestação cultural. Agora, outra coisa é dizer que há um plano que prioriza coisas que talvez não sejam as mais adequadas. Há o risco de dizer que estão investindo em fulano em vez de investir no grupo teatral X. O problema não é esse, o problema é não haver uma compreensão do lugar adequado para A e para B e compreender que as duas realidades devem ser contempladas pelo Estado", afirma.

Sem tempo para esperar
Despreocupado, porém, com o que o Estado iria fazer pela sua empreitada, o professor de inglês e português Alberico Rodrigues criou, há 22 anos, um espaço cultural que tem como objetivo promover a cultura para todos aqueles que freqüentam o local e mesmo para toda a vizinhança. Localizado na praça Benedito Calixto, na região de Pinheiros, o espaço conta hoje com um café; salas de múltiplo uso, onde geralmente são dadas aulas de inglês, português, história da arte, cinema e literatura; e uma biblioteca com 40 mil títulos. "Hoje, conto com várias doações de livros, mas a biblioteca começou comigo dividindo meu acervo pessoal com os vizinhos."
Alberico mantém o local sem pensar em pedir ajuda a nenhum órgão público. "Não tenho condições de ir atrás de incentivos à cultura e nunca ninguém veio atrás de mim", explica. "Acho que se o Governo quer apoiar iniciativas privadas voltadas à cultura, a seleção deveria ser feita por uma comissão de pessoas que realmente conhecem as propostas. Acho que muitos se aproveitam disso enquanto sobram iniciativas humildes que precisam de apoio. Eu até que precisava receber algum incentivo para continuar meu trabalho, mas quem sabe um dia possa ter alguém que cuide disso para mim. Hoje, eu não tenho tempo", afirma.

Julio Cesar Caldeira é jornalista

TV de um homem só
"Emissora" faz sucesso em Minas Gerais

É quase uma regra: as ações culturais por parte de pessoas comuns são, antes de tudo, uma paixão individual dividida com a comunidade, que, geralmente, é composta de pessoas em situação de carência de bens culturais diferenciados. "A origem dessas iniciativas muito restritas, em geral ligadas à vizinhança e com um caráter mais doméstico, é um hobby pessoal", define a professora Walnice Nogueira Galvão. "E o gosto por esse hobby leva a pessoa a querer dividi-lo com outra, o que é muito bom."
No caso, o hobby do funcionário público Francisco Dário dos Santos, o Chiquinho, é a TV. Diante da impossibilidade de conseguir um emprego ou uma ocupação num grande canal, Chiquinho não pensou duas vezes: criou a sua própria emissora. Com menos de cem telespectadores e um alcance de pouco mais de cinqüenta metros, a TV Muro faz grande sucesso na cidade de Sabará, em Minas Gerais. O canal exibe jornalismo, comerciais e até "pegadinhas" para atrair o público na rua. Seus espectadores acreditam que a programação ajuda a preservar a cidade e ocupa de maneira criativa o tempo das crianças.
O nome vem do modo como a TV se mostra ao seu público. Para aqueles que não conseguem receber o sinal em seu próprio aparelho, Chiquinho colocou um pequeno televisor sobre o muro da sua casa e nele exibe o Jornal Legal, atração única da "emissora" que vai ao ar das 18h às 21h.
Segundo Chiquinho - dono, apresentador e repórter -, o jornal traz ainda blocos de conscientização ecológica, cultura e folclore. A "equipe" é formada por seis repórteres-mirins, escolhidos entre as 35 crianças para as quais dá aula de teatro em um curso da prefeitura da cidade. "Um dia decidi que, se não conseguisse emprego em uma emissora grande, iria montar a minha", começa explicando Chiquinho. Sem ocupação fixa, o futuro dono da emissora fazia brinquedos de sucata. Com os cursos de artesanato que ministrava em escolas juntou dinheiro e, em 1997, comprou a primeira câmera. Em 1998, adquiriu um televisor e um videocassete. A TV Verde tinha, então, som e imagem exibidos para amigos e parentes. Com alguns cabos de áudio e vídeo emendados, em 1999 a emissora saiu pela primeira vez da casa, foi para o muro e ganhou seu nome atual. Segundo ele, o sucesso maior da programação pertence às "pegadinhas" - que ele mesmo produz. Mas, alerta: sua intenção não é expor ninguém ao ridículo. Está mais para uma ingênua traquinagem televisiva. "Em uma delas, eu subia a rua com uma caixa nas costas. Quando passava alguém, deixava a caixa cair e a pessoa se assustava", conta, rindo. "Mas, ao virar para me xingar, a pessoa me reconhecia e percebia a brincadeira. Sabará é pequena. Todos me conhecem", orgulha-se Chiquinho, que defende sua iniciativa definindo-a como "uma forma de arte".