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A identidade da língua

por Fábio Lucas

Minha concepção de literatura deu-se quando criei minhas primeiras revistas, a Revista Vocação e a Revista Tendência. A partir da segunda, toda a minha concepção de literatura voltou-se para a literatura brasileira. O meu foco tem um cunho nacionalista, por assim dizer. É claro que uma vez ou outra temos que prestar tributos a grandes autores internacionais - afinal, não somos uma ilha -, mas é preciso enfocar principalmente autores brasileiros que muitas vezes são esquecidos e postos em segundo plano por uma espécie de falta de auto-estima. Um problema que resulta no enfraquecimento deste país que, a meu ver, nasceu para ser grande e para ser líder, dadas as suas dimensões, diversidade cultural e potencial econômico. É preciso que a nossa classe dirigente compreenda isso. Não devemos permanecer sempre subservientes àquilo que vem de fora. Devemos ter um projeto nacional para enfrentar os problemas econômicos, sociais e políticos, e assumir uma liderança, que é esperada. Constatei isso quando, certa vez, estive numa feira de livro em Santiago do Chile e tive uma reunião com os escritores de diferentes países da América Latina. Pude verificar que todos ansiavam por um diálogo entre si e pela formação de uma entidade. E esperavam que essa iniciativa partisse do Brasil. Por isso, acho que há, latente, uma espécie de liderança brasileira que precisa ser explorada. É preciso que isso volte a brotar dentro do brasileiro. Nossa auto-estima está sendo castigada por uma imprensa viciada e por um espírito de dependência muito avantajado.

Autonomia brasileira
Basílio da Gama, escritor brasileiro que teve problemas na época da expulsão dos jesuítas e foi para Portugal, acabou se inscrevendo na Arcádia de Roma. Ao se inscrever, ele, adiante de seu nome, escreveu "americano". Não colocou "português", mesmo provindo do império lusitano. O mesmo fez seu amigo e discípulo Silva Alvarenga quando escreveu Glaura e pôs lá os dizeres "poema erótico de um americano". Sérgio Buarque de Hollanda levantou a hipótese de que essa diferenciação entre europeu e americano começa a existir na língua portuguesa. Ele acredita que somente depois o espanhol e o inglês adotaram o designativo para separar as pessoas nascidas na América e na Europa.
No período de marquês de Pombal tornou-se obrigatório o ensino da língua portuguesa, que depois se disseminou. Pelos princípios então editados, o ensino tinha de ser feito primeiro por meio da leitura, depois pela escrita. Assim, a leitura era feita em voz alta, porém não havia professores portugueses em número suficiente. Então, adotou-se buscar alfabetizados brasileiros, que liam já com a pronúncia brasileira. Ou seja, o ensino começou com essa diferenciação entre a dicção portuguesa e a brasileira. Essa diferenciação foi se aprofundando e acabou resultando num estilo brasileiro da língua portuguesa, que é um estilo muito próprio. Há autores brasileiros que são passíveis de introdução em qualquer outra língua. No entanto, se pegarmos Guimarães Rosa, por exemplo, vemos que mesmo as melhores traduções haverão de perder muito do sabor da linguagem, pois ela está entranhadamente no Brasil. Acho que um leitor inglês, espanhol, italiano ou francês que ler Grande Sertão: Veredas não terá a capacidade de alcance do seu sentido como um brasileiro teria. Essa é a autonomia da nossa língua e da nossa capacidade.

Literatura e educação
Sem leitores não há salto em direção à civilização; e a principal resposta ao problema da leitura no Brasil é perceber que só há um meio de se formar leitores: o ensino básico, chamado atualmente de ensino fundamental. Ou seja, começar pelas crianças. Precisamos ter um Governo que se dedique a alfabetizar o povo brasileiro, pondo brigadas de professores bem pagos de Norte a Sul do país, encarregados de formar alunos. Imagine uma geração de brasileiros, dos sete aos onze anos, sendo alfabetizada adequadamente numa visão global. Ter-se-ia um efeito multiplicador infinito, pois cada criança voltaria para influenciar o seu ambiente. Assim, o ensino estaria criando o cidadão. A pessoa precisa aprender, por exemplo, noções de higiene, atravessar uma rua corretamente nos grandes centros urbanos e, principalmente, exigir que os outros façam o mesmo, inclusive as autoridades. Isso é gravar uma pessoa de cidadania. Ela poder exigir dos outros o cumprimento de uma regra social básica. E nem as autoridades podem escapar disso. Se o sujeito é um policial e estaciona o seu carro em lugar indevido, deixa de ser exemplar. E nós temos de fazer de nossas autoridades um exemplo. Sem o exemplo uma sociedade não se forma porque precisa-se de uma base moral. A lei é o mínimo moral exigido, mas é preciso interiorizar de tal forma as regras que elas não precisem de lei. É a lei da convivência. Se em vez de olhar o meu interesse de atravessar a rua, eu olhar o do outro também, estabelecemos um ponto comum. Todas essas coisas são transmitidas no ensino fundamental. Se houver uma geração que passe por isso, fecharemos muitos hospitais e muitas prisões. Afinal, estaremos investindo no ser humano no sentido lato. Fazer cidadãos e não consumidores, que é o espírito que precisa gerir o ensino hoje.