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Teatro
Gestos brasileiros

Em depoimento exclusivo, o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu conta um pouco sobre a pesquisa que vem realizando e ressalta a força da cultura popular

A cultura popular é universal. Podemos encontrar nas mais variadas culturas os mesmos arquétipos que encontramos, por exemplo, na commedia dell'arte italiana, parecida em alguns pontos com a comédia brasileira. O mesmo vale para a cultura africana e até para a escandinava. É uma questão de investigação. O riso popular é sempre o mesmo e a relação que se pode fazer entre uma série de personagens populares brasileiros é imediata. São elementos muito profundos de reflexão sobre morte e renascimento. É uma visão de mundo, uma visão cômica. Além da visão séria, do trabalho e da tragédia da vida, que é necessária também, o riso traz outra visão do mundo, até mais ampla.
Estamos levantando essa pesquisa para tentar identificar um gesto brasileiro num imaginário popular brasileiro. Isso se revela quando pesquisamos a arte da interpretação, por exemplo. Basicamente o ator é ator em qualquer lugar do mundo, mas ele tem as suas especificidades. Uma característica do nosso trabalho de pesquisa é o espetáculo aberto, ou seja, a comédia sem a quarta parede: o circo e o teatro pré-TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Existe um estilo de representação brasileira que ainda permanece. No interior, por exemplo, vemos como o teatro do século 19 foi importante nos teatros mambembes que ainda permanecem. Há grupos como o Galpão, de outro lado, com toda uma pesquisa voltada para a interpretação popular, para a investigação de um gesto popular e brasileiro. Existe um gesto diferente entre um ator cuja formação ficou num círculo restrito de escola e outro que apresenta uma constante observação, seja da rua ou da praça. A comédia popular é voltada para isso. Há um universo de pesquisa muito mais amplo do que o da mera pesquisa teórica ou o do mero exercício dentro da sala de ensaio.

Um trabalho de investigação
Foi a certeza de que a cultura popular é a base de toda a cultura que me moveu a iniciar essa pesquisa. Na verdade, a cultura erudita não é mais que uma derivação da popular. Qualquer expressão simbólica considerada erudita advém da cultura popular. Os movimentos renovadores, sejam no teatro, na música ou nas artes em geral, tiveram sua base em uma investigação da cultura popular, isso se revela historicamente. É sempre nessa interação dialética entre a vitalidade da cultura popular e a geometria da cultura erudita que se dá a grande arte. E nossa pesquisa caminha para a revalidação de formas teatrais antigas, como o auto; forma com a qual já trabalhamos no Natal e estamos trabalhando agora, o Auto da paixão e da alegria, com estréia prevista para junho. Tudo isso para identificar na cultura popular o sacro e o profano. Uma característica de toda a cultura popular é a religião, que está sempre presente mas nunca isoladamente e sim na relação dialética entre o sagrado e o laico, o espírito e o corpo; dentro dessa dialética, nada é único.
A cultura popular é extremamente requintada, mas a visão que se tem dela é de uma cultura do grotesco, do malfeito, o que é um engodo. Ela, seja na sua expressão pictórica, dramática ou poética, é resultado do trabalho de várias gerações. A geometria de um maracatu, por exemplo, revela um incrível requinte. O que ocorre hoje em dia é que a cultura de massa lança mão de toda a cultura popular e a reduz a seus elementos mínimos.
Cultura de massa X cultura popular
Em geral, ficamos com a dicotomia entre cultura erudita e popular quando, na verdade, a grande dicotomia se dá entre a cultura de massa atual e a popular. A única cultura que pode fazer frente à de massa, a única que pode transmitir experiências humanas por ser plural, é a popular. E a única forma de fazermos frente à cultura de massa é por meio da cultura popular. Para isso, não podemos enxergá-la de forma preconceituosa e sob os olhos da redução, devemos investigá-la no que ela tem de maior e de plural. A cultura popular não é simplesmente folclore, é muito mais dinâmica. Ela é, na minha opinião, indestrutível. Digo isso por tratar-se de uma cultura do congraçamento, do fazer. Obviamente, temos expressões muito fortes da cultura de massa, expressões contrárias à cultura popular. O que consigo perceber é que começa a haver um interesse em torno da cultura popular; o interesse de reavaliar a função e a importância da cultura popular nos dias de hoje. Na minha opinião, ou investigamos a fundo e descobrimos esses valores ou ficaremos em pequenos guetos correndo o risco de nos tornar seres em extinção, isolados numa cultura considerada erudita. A meu ver, a própria cultura erudita tem de mergulhar novamente no caldo ancestral da cultura popular para, daí, buscar a força e a vitalidade que andam faltando.

Luis Alberto de Abreu esteve presente,
junto com o diretor Ednaldo Freire, no evento Rumos do Teatro,
no Sesc Santos, ministrando a oficina O Teatro Narrativo