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O Brasil segundo a sanfona

Através de imagens e sons, acordeonistas de todo o país mapeiam a diversidade da cultura brasileira a partir do instrumento

Pé-de-bode, acordeom, gaita, fole, cordeona, sanfona, concertina, harmônica e tantos outros nomes para designar um único instrumento. Na caatinga nordestina, na exuberância pantaneira, nas fazendas gaúchas ou no vaivém da cosmopolita capital paulistana, o instrumento põe à prova todo seu vigor e ecletismo.
Criado e patenteado pelo austríaco Cyrillus Demian em 1829, o acordeom ganhou projeção e popularidade ao chegar às mãos do jovem italiano Paolo Soprani, que em 1864 montou uma pioneira fábrica de acordeons italianos. Os primeiros compradores foram ciganos, peregrinos e vendedores ambulantes. A demanda cresceu e junto com ela surgiram outras fábricas, que passaram a exportar o instrumento para todo o mundo.
No Brasil, os primeiros acordeons chegaram empunhados pelos imigrantes alemães e italianos no final do século 19. Em princípio, ficaram restritos a essas comunidades, nas lavouras de São Paulo ou nas fazendas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Porém, com o tempo, o instrumento ganhou espaço e se inseriu de tal maneira nas mais diversas culturas regionais que hoje é impossível pensar em Brasil sem a sua presença.
Nas rodas de choro, entre chimarrões, nos arrasta-pés do sertão ou pontuando o canto sertanejo, filhos, netos ou bisnetos de italianos, uruguaios, africanos e paraguaios, ou mesmo brasileiros a perder de vista, reproduzem a arte de extrair melodia de um instrumento cuja apropriação reflete muito da riqueza e da diversidade do país. De região para região, além de receber nomes diferentes, o instrumento soa das mais variadas formas, deixando transparecer todas as influências e sentimentos relacionados às culturas locais.
Pensando na importância do acordeom para a preservação da memória musical brasileira e em todo seu potencial criativo, o Sesc São Paulo promoveu, em março, na unidade Pompéia, o evento Brasil da Sanfona. O projeto, com curadoria de Myriam Taubkin, faz parte da série Memória Brasileira, que já apresentou Violeiros do Brasil, em 1997, e Percussões do Brasil, em 1999. A cada semana o público pôde conferir uma diferente faceta da sanfona no país: Noites do Nordeste, Noites do Brasil Central, Noites de São Paulo e Noites do Rio Grande do Sul. Nelas, representantes de cada região dividiram o palco e mostraram as especificidades do som de sua terra e seus trabalhos pessoais.
Além das apresentações, o evento promoveu também uma exposição fotográfica de Angélica Del Nery e contou com o videocenário de Sérgio Roizenblit - material colhido durante viagens pelas paisagens onde floresce a habilidade dos acordeonistas brasileiros. Além disso, quem foi ao evento teve a oportunidade de conhecer instrumentos raros do acervo dos colecionadores Lauro Valério e Sérgio Campos.

Personagens
A paixão dos que se dedicam à sanfona parece surgir cedo. A maioria dos instrumentistas começou a tocar ainda criança, incentivados pelos pais ou por estímulos pouco habituais, como é o caso do baiano radicado em Goiânia, Zino Prado, 72 anos, que se apresentou nas Noites do Brasil Central. "Com quatro anos de idade tinha um sonho na cabeça me dizendo para tocar. Então fiz uma sanfoninha com um cavaco de pau quadrado - só imitação do que eu sonhava. Diziam que eu era doido, já que ninguém, nem mesmo eu, tinha visto um instrumento daquele na vida. Aos cinco anos fiz outra com folha de coqueiro - havia até fole, mas também não tocava, era só de aparência", recorda Zino. Mas de onde teria surgido tamanha fixação? "Da cabeça mesmo. Naquele tempo, nos anos de 1930, não tinha rádio. Lá onde eu morava só tinha feijão e carro-de-boi, e eu, que sempre andava pelado, miudinho, miudinho. Ganhei minha primeira sanfona aos seis anos. Quase deixei meu pai louco, que não tinha nem idéia de onde arranjar uma coisa daquela. Mas conseguiu", rememora ele.
Desde então, Zino não parou de tocar. Aos dezessete anos, resolveu ir em busca de uma sanfona melhor: "A que eu tinha era uma pequenininha, pé-de-bode, de oito baixos". Junto com dois amigos, partiu então, a pé, para Goiânia. "Passei um mês viajando. Naquele tempo não tinha estrada. Vim fugido porque meus pais não admitiam."
Hoje, Zino é um dos poucos fabricantes artesanais de um instrumento que não conta mais com fábricas no país. Tem o ouvido quase absoluto - ao afinar o instrumento, não precisa de nenhum auxílio. Corta madeira, emenda, afina e testa os instrumentos que produz ou conserta: "Vivo disso e gosto muito - sempre tem gente procurando meus serviços", esclarece.
O pernambucano Dominguinhos, que também se apresentou no evento, também tem muitas histórias para contar sobre a sanfona. "Quando tinha oito anos, tocava com meus irmãos nas ruas de Garanhuns. Um dia, uma figura apareceu e deu dinheiro para tocarmos para um sujeito que vinha de fora. Fomos ao hotel, tocamos e ele gostou muito, deu até o seu endereço no Rio de Janeiro. Nem sabíamos quem era", recorda o sanfoneiro. "Em 1954, eu, meu pai e meus irmãos decidimos ir para o Rio, foram onze dias de viagem no pau-de-arara. Tínhamos o endereço na mão e fomos procurá-lo. Era Luiz Gonzaga: 'Ói os menino de Garanhuns', disse. Até ele falecer, nunca mais deixei sua companhia", relembra nostálgico.
Nas Noites do Rio Grande do Sul, apresentou-se o virtuoso Gilberto Monteiro, nascido em Santiago do Boqueirão, remota cidade próxima à fronteira com a Argentina. Com 39 anos, o gaiteiro lembra que aprendeu o instrumento com o pai. "Comecei a tocar com cinco anos. Lá pelos quinze, comecei a tomar uma cana brava com os amigos nos galpões. Sentava num banco de corticeira e danava-me a tocar. Tu imaginas um gaiteiro dessa idade, bêbado, em cima de um toco: era gaita para um lado, gaiteiro para o outro", lembra risonho. "Foi lá que percebi que era isso que queria fazer da vida. Tocava as músicas da região - vaneira, xote gaúcho, vaneirão. Fazia muita farra", conta.
Um dos representantes de São Paulo, o requisitado sanfoneiro Toninho Ferragutti, ressalta a importância do instrumento durante sua infância. "Na década de 1960, a sanfona era muito popular no interior de São Paulo", recorda o músico nascido em Socorro, a 130 km da capital. "Sou de família de músicos. Meu pai era saxofonista e meu tio tocava acordeom. Além disso, pessoas próximas da família também tocavam o instrumento. Comecei moleque, depois fiz uns anos de conservatório. Mas o grande aprendizado foi nas rodas de choro. Além do ritmo, tocávamos valsa, frevo e marcha", afirma Toninho, que acredita que no interior paulista existe uma forte influência da maneira de tocar dos italianos. "Tem uma certa nostalgia, um trinado. Trabalham sempre em terças e sextas. Às vezes se nota também uma influência da música do Centro-Oeste." Para ele, faz parte do aprendizado musical não se limitar a um só instrumento. "Os acordeonistas geralmente são exímios percussionistas, a exemplo do Dominguinhos." Para comprovar sua tese, Ferragutti cita outro participante do Brasil da Sanfona: o poliinstrumentista paraibano Sivuca.
Natural de Itabaiana, Sivuca começou a tocar aos nove anos de idade, em feiras, festas e batizados. Aos quinze foi para Recife, onde começou a carreira profissional na Rádio Clube de Pernambuco. Poucos anos depois, tornou-se aluno do célebre maestro e compositor Guerra-Peixe, com quem aprendeu arranjo e composição. O sanfoneiro, hoje com 71 anos, gravou seu primeiro LP em 1950. De lá para cá, nunca mais parou. Com dezenas de discos e apresentações nos quatro cantos do planeta, Sivuca é hoje um dos mais respeitados instrumentistas da música mundial. Para ele, a diversidade musical que se manifesta através das diferentes maneiras de tocar a sanfona advém da riqueza cultural do país. "O nordestino tem a sua linguagem musical, e quando pega a sanfona ele é um nordestino tocando sanfona. O músico toca exatamente o ser humano que ele é. Se eu tocar outra coisa que não seja o Sivuca que nasceu na Paraíba, não vou ser eu - perco minha identidade cultural."
O paraibano enxerga com otimismo o futuro do instrumento e das manifestações artísticas brasileiras. "Sinto que está havendo uma busca muito salutar, nos últimos tempos, dos jovens pelas suas origens. Ele parece estar querendo saber quem é, de onde veio. Calça jeans é muito pouco - é preciso saber de onde se vem para saber para onde se vai", pondera.

Os sons do país
Projeto tem edições em Araraquara, Bauru e Piracicaba

Durante todo o mês de abril, o projeto Brasil da Sanfona percorrerá três unidades do Sesc São Paulo. Bauru é a primeira parada. Entre os dias 10 e 14, a unidade receberá a Noite de São Paulo e a Noite do Rio Grande do Sul. No Sesc Araraquara, de 17 a 21 de abril, poderá se conferir as noites de São Paulo e do Brasil Central. Três dias depois, é o Sesc Piracicaba que recebe o evento, com as apresentações da Noite do Nordeste e da Noite de São Paulo.
Nas apresentações no interior, além da exposição de fotos e de instrumentos, Toninho Ferragutti ministrará workshops de sanfona. A noite paulista contará com o reforço de Mário Zan e de Gabriel Levy e Quarteto Original.

Confira os participantes da edição do Sesc Pompéia:
Nordeste - Dominguinhos, Arlindo dos 8 Baixos, Sivuca, Zé Calixto e Camarão.
Brasil Central: Elias Filho, Zino Prado, Lenilde Ramos e Dino Rocha.
São Paulo: Moçambique de Bastão de São Benedito de Guaratinguetá, Regina Weissmann, Caçulinha, Gilda Montains e Meire Genaro, e Toninho Ferragutti.
Rio Grande do Sul - Orquestra de Câmara da Unesp, Luciano Maia, Gilberto Monteiro e Renato Borghetti.