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Documento-Ficção

Foto: Cristiano Prim
Foto: Cristiano Prim

"Agregar, preparar e trocar com artistas, público e teóricos, conceitos éticos e estéticos sobre o corpo e o ambiente onde este está inserido."

Desde 1994, o grupo de dança catarinense Cena 11 desenvolve uma técnica particular e instaura projetos de pesquisa e formação, sempre com o propósito de confluir teoria e prática no entendimento de dança. E é assim mesmo que eles, comandados pelo bailarino e diretor Alejandro Ahmed, produzem seus espetáculos tratando a produção coreográfica como um processo em constante desenvolvimento.

Com estreia prevista para o final de 2016, o Cena trabalha agora com "Protocolo Elefante", a conclusão de um projeto homônimo desenvolvido pela companhia desde dezembro de 2014. Desde o dia 2/8, eles ocupam o Teatro Anchieta na Residência Vestígio e Continuidade, que pode ser acompanhada pelo público em duas sessões abertas e gratuitas.

Protocolo Elefante investiga na ação de afastamento e isolamento do elefante na iminência de sua morte uma metáfora de separação e exílio. Um questionamento sobre o modo como fatores contidos no ambiente ao qual pertencemos (pessoas, comportamentos, línguas, afetos, objetos e dispositivos relacionais de convívio) são afetados quando migramos a sós para um contexto diverso e distante destas familiaridades e simetrias do pertencer.

O acionamento do sentimento de falta produzido por este encontro assimétrico de identidades, é um importante condutor para algumas perguntas chave para a pesquisa do Grupo Cena 11:

Qual é a nossa definição de identidade?

O que é pertencer, ou, necessidade de pertencimento?
 

Neste sentido, o grupo convida o público a um mergulho vertical na investigação e treinamento do espaço e condições técnicas onde a montagem coreográfica “Protocolo Elefante” se dá a existir: o palco italiano. 

Estamos acompanhando este processo diariamente, numa espécie de diário de bordo alimentado por Priscilla Menezes que documenta a residência do grupo no Teatro Anchieta até a sua estreia, prevista para o final de 2016. A artista e pesquisadora trabalha com questões que fazem tangenciar vida e ficção a partir da noção de estética da existência. Desenvolve pesquisa plástica nas linguagens da fotografia, do desenho e do texto.  

Vivencie esta experiência através da linha do tempo abaixo:::

 

12 de agosto de 2016

O que reverbera?

Reverberam meus ossos, que adquirem uma mecânica desviante e se deslocam em direções inesperadas. Onde estão habituados a serem alavanca, dobradiça, espátula se fazem ponte, túnel, corredor. Fica também um rastro na  pele, uma vontade de desnaturalizar o que é orgânico e misturar-me à natureza das coisas forjadas. Fica um chamado a tocar no mundo sem amansá-lo, a buscar abrigo no que me faz estremecer. Reverbera um vigor, uma força que se intensifica onde há a possibilidade da falha, onde o que persiste é o que concede com a dimensão precária e variável do que há. Reverbera um traço, um desenho que não quer capturar a imagem, mas o método com  que o movimento se faz. Um desenho que se hipnotiza para falar daquilo que ainda não conhece. Que se faz rarefeito porque quer  tratar do que nesses corpos é vento, turbilhão, neblina. Que se adensa para dar a ver o que é território, inundação. Reverbera uma ideia de criação que não é expressão de uma subjetividade formada, mas constante formação de modos de existir. Uma criação que não é reforçar algo que já existe e tampouco o puro desejo de destruição, uma criação que é sobre criar formas de intimidade com a dissipação, de se perguntar no que consiste uma sobrevivência. Reverbera um fôlego, uma rearranjo de espaços dentro do corpo, um oco que se faz engrenagem, um cansaço que encontra em si um desvio para disposição. Reverbera uma escrita que só se dá quando reconhece que falha, que excede e ignora. Uma escrita a partir da consciência de que há um ponto indizível em todas as coisas e que escrever é reconhecê-lo e nele afiar a espessura do verbo. Reverbera uma política. A noção de que é urgente a tarefa de destotalizar o mundo, abrir frestas, evidenciar linhas de fuga, criar eventos sísmicos que rompam o contínuo das coisas. A noção de que a invenção se faz mesmo nos encontros e que para sustentar um encontro é preciso, acima de tudo, preservar a diferença. Encontrar o outro é sempre esbarrar na alteridade que nos constitui. É encontrar também com esse ponto incolonizável que nos forma, com isso que é tão íntimo quanto forasteiro. Reverbera, enfim, um desejo de encontro.       

 

11 de agosto de 2016

 

Há o rigor: um tônus que controla, um desenho que conduz.  Há as formas que ativam a memória e as que fortalecem o lapso, há o que evoca presenças finas e o que demole a estrutura bruta.  Há também qualquer coisa que não se controla: fresta, sede, grão persistente que abala o desejo de destino e convoca ao engajamento no instante. Há a iminência do choque, o chamado urgente à ação, a influência da gravidade que a tudo precede e ultrapassa. Há o reconhecimento do espaço e o gesto que o expande, que o infiltra e o refaz. Há uma cumplicidade tácita entre tudo que ocupa e pesa, pêndulo, corda, corpo, placa, porque retornam ao solo, pesam no salto, inventam outras naturezas no voo. Os corpos se põem em crise de muitos modos: na produção do risco, na repetição do gesto, na disponibilidade ao acontecimento. Não é porque recorrem ao léxico do poder que atingem estados fortes, é porque investem na transformação do fracasso em potência: essa tarefa que se renova, esse gesto extremo, esse chamado que não cessa.    

    

10 de agosto de 2016

O caos não se opõe ao ritmo: ramifica o alcance do seu pulso, fragiliza sua ordem, coloca-o em risco enquanto o gesta. Quando há luz, não é para exibir um evento oculto, é para dar relevo  à opacidade, ferir as superfícies mansas, revelar outras formas de nitidez. A luz pontua e contorna, quando preenche é também para deixar vazar, coincide ali onde oscila. O ritmo instaura uma ordem potente porque prenhe  desse instante de transformação.  A repetição é uma forma de instaurar o tempo do ritual: esse que não convoca a origem, mas persiste na pergunta sobre a criação. O ritual não encena, estabelece condições para fazer existir o acontecimento, faz surgirem outros efeitos a partir das rupturas, das sucessões.  O que se efetua produz a possibilidade de sua contra-efetuação, não para se reconciliar com o seu oposto, mas para evidenciar a fragilidade fundante do que não exibe e sim afirma. Toda afirmação potente contém a fenda pela qual correm os fluxos que a relativiza e a fricciona com o que a contradiz. O ritmo sempre dá notícias disso que é incapturável pela ordem, de que o geométrico é também dispendioso, de que o perene é uma qualidade forte do instante.

 

9 de agosto de 2016

Os que se encontram friccionam o que diverge, o que se ausenta, o que nunca esteve lá. Vínculo é esvaziamento: é pela fenda, não pela consistência, que se cria uma rota para fora de si. Encontrar demanda afrouxar identidade e intensificar variação. É preciso um devir fera para tocar o que é indócil. Um empuxo à escuridão para traçar as geografias abissais, as formas noturnas, o oco do corpo. Ondular-se para reter algo marítimo, fazer-se redemoinho para caçar furacões. Aquele que forja o encontro precisa desse instante em que se investe daquilo que quer encontrar. Por isso que o contato com algo movente há de ser ele mesmo um contato em marcha. Para tocar nas coisas móveis é preciso criar mãos feitas por golpes erosivos, gestos migratórios, correntes de ar. Aproximar-se de algo que dança é criar uma atenção que se desloca, um entendimento que se espanta, uma captura que se expande à beira do colapso. 

 

8 de agosto de 2016

Praticar a atenção como um músculo: tensiono a escuta para depois afrouxá-la. Como quem coloca os olhos muito próximos de um objeto delicado e mantém as pálpebras cerradas para encarar coisas imensas, uma grande onda que chega, um eclipse solar. Tudo que é vivo é, ao mesmo tempo, frágil e desmedido. Para olhar o que vive é preciso manter os olhos tão mais plenos quanto precários.  O que é vivo trepida e oscila, pode ser fértil e pode ainda mais certamente desaparecer.  Essa dança é sobre a vida. Melhor: essa dança é tensa, forte e incontornável como viver. 

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O que é vivo está sujeito às contingências, se assombra com o que irrompe, quebra e se desprende. Também mexe no estado das coisas: quando inventa, quando acolhe o que desvia sem aviso. Acima de tudo, o que é vivo persiste em sua possibilidade de se dissipar. Muda o mundo quando diverge, com o modo singular com que se afirma, com que desaparece. O vivo nunca está garantido, ganha intensidade ali onde não tem defesa, se conserva tão intensamente quanto varia. O vivo nunca se isola,  tampouco se funde: desvia ou acompanha. Às vezes tangencia ou atravessa. A vida é menos a conservação da matéria formadora do que o jogo interminável das formas que insurgem e essa dança é sobre a vida.

 

6 de agosto de 2016

Desenho tentando capturar algo do modo como essa dança emerge. Então repito o gesto sem saber até onde ele irá, deixo que a repetição crie o instante e o modo de parar. A caneta encontra o papel sucessivamente enquanto um corpo persiste em giros sobre o próprio eixo e sobre os eixos que mapeia no espaço. Uma espécie de transe se instaura. Um toque preciso ao lado de outro mais irrefletido, um giro que quase faz cair seguido de um que sustenta. Não a deriva, mas um estado marginal entre o controle e a contingência, esse litoral que revela a vocação instável de toda centralidade. Isso me faz pensar que é do mais profundo da terra que emergem os rompimentos, as atividades vulcânicas. O que estrutura não é o que mantém, é justamente o que arrebenta as continuidades. Esse centro sísmico da existência nunca foi uma certeza, mas uma vertigem de impessoalidade. Junto, tento tocar nessa intimidade entre o que é centro e o que é tremor.

Os bastões com que dançam  acordam a geometria, os eixos latejam, as paralelas se reconhecem, as tangentes se tencionam. O espaço produz uma espécie de ginástica na qual os corpos se engajam. Recuar enquanto indivíduo é evidenciar uma gestualidade, uma pura medialidade que perturba as cadeias de causa e efeito, de demanda e produção, de significante e significado. É preciso criar encontros improváveis entre essas instâncias e tomar fôlego nesses cruzamentos. Os corpos ocupam o espaço não para preenche-lo de sentidos, mas para evidenciar a vocação ocupável da espacialidade. Isso implica em tomar para si o que não é próprio, transformar em elemento estruturante aquilo que se apresenta indócil. Tornar ferozmente seu o gesto que faz o eu ceder.

 

5 de agosto de 2016

escrever-com: a partir do contágio, da colisão e do que reverbera como rastro. uma escrita que se desloca e estatela, imantada de corporeidade. não é escrever para esclarecer, é para fazer tremerem as paredes, testar a dilatação do espaço, marcar alguns estados, fazê-los desaparecer. 

documento-ficção: experiência de estar junto e de produzir o contato através da diferença.   

 

 

as coisas quando se chocam, quando são arremessadas, quando caem. há uma evasão suspensa, densidade que se faz passagem, a qualidade oblíqua de toda afirmação. as coisas quando se chocam, o que se captura e o contágio incalculado. a potência de uma evasão, um corpo todo rastro, a impressão de uma permanência que oscila. a atração é um chamado à coragem, o encontro é tanto rota quanto choque, é também a constatação de algo que se ausenta, das coisas que se atingem, quando são arremessadas, quando caem. há o que se despede sem lamento, o que persiste e o que concede em faltar. o acontecimento que corta o corpo é indício de que tudo que é corpo é passagem. que aquele que ocupa é  o que se deixar ocupar.