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Messalina dos telhados

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Messalina dos telhados

por Juliana Frank


A casa foi vendida. Minha mãe se chamava, nessa época, Cirandela. A mãe é minha eu chamo como eu quiser. Tivemos que fugir mais uma vez. Algo aconteceu. Por isso coloco minha boneca Ilália ouvindo tudo o que se passa na sala conjugada do apartamento antigo, atapetado, aturdido de porcarias porcelanadas. Objetos e mais objetos, quadros semiapagados pelo tempo, uma lareira e os ouvidos plásticos/atentos da minha informante. Enquanto isso sou obrigada a permanecer no castigo do meu imenso quarto repleto de animais mortos, cobertos por pelos e com os sorrisos costurados na cara – nunca tive animais de estimação, apenas ursos de pelúcia –, o que me pareceu sempre muito bem assim, desde pequena evito usar minha tirania. Minha bonequinha informante – mistura de Ilá com Lalia, Ilália, nunca frequentou castigos ou passatempos forçosos. Era uma coisa que minha mãe fazia comigo, apenas comigo, porque:

“Só você, Doralice, tem a boca cheia de sujeira, o cerebelo com lesmas, amebas e maldades. Puxou o pai”.
Minha mãe, quando dizia “eu só falo o que eu penso”, me ensinou a jamais acreditar em palavras. São mundanas, claro, cadê novidade? Estão sempre se arrastando pelo lodo humano, criando coincidências, destruindo e montando planos, arquitetando egos, transformando pequenos bacilos comuns em grandes ameaças.

Guerras são feitas porque são guerras de linguarudos que não tinham muros ou mulheres para trepar. Desde pequena descobri que o grande jeito de viver é ignorar esses presunçosos cuspes humanos. E é por isso que hoje, com tranquilidade, não acredito em palavras, nenhuma delas.

“Doralice, come este peixe ou eu vou te matar!”

Imagina se eu acreditasse? Temos aí duas grandes guerras para provar que fazemos muito estardalhaço por uma frase banal como essa.

Nem a palavruda da Ilália consegue me convencer. Preciso apenas que ela me explique o que acontece na sala, porque minha mãe quer vender esta casa e fugir DE NOVO? Em que rala ou rola ela se enroscou desta vez?

Ninguém nunca lavou minha boca nazistamente com sabão, como faziam as mães das vizinhas. A minha, que era filha de árabe com alemão, tinha a psicanálise como aparato principal para a base do seu humanismo. Por isso acreditava que eu precisava soltar meus desejos. E que eu deveria ouvir Paulinho da Viola para sentir alguma docilidade. Já que nesta vida eu estava destinada a não conhecer virtudes como esta. Vivia repetindo as palavras: doce, terno, amigo, bem, bondade, fidelidade, esperança, gratidão. Mas penso que ela estava enganada. Porque apesar dos meus pequenos delitos, Ilália recebia meu amor e eu até dava na cara a vácuo dela uns beijos sufocantes.

Acredito que eu e ela temos o mesmo “destino”, por isso somos uma a boneca da outra. Não temos pelos pubianos. Nos usamos, sim, para propósitos pérfidos. Mas para além de interesses de como destruir o real, nos elegemos por identificação de caráter. O que eu preciso para destruir o real é apenas descrever, escutar, prestar atenção, fingir frivolidade e balançar a língua jorrada de sangue, desinventar. A missão da boneca, ao contrário, é entender a construção aristotélica do mundo. Os começos, meios e pontos finais e nunca invejar pelos pubianos. Nosso pacto, afinal, é contar essa história. A história do presente, com toda sua obscuridade, com a segurança de que esse não é nosso lugar e que jamais vamos ter uma caixa, uma jaula, um arame farpado roível. Vamos contar a história, podemos enlouquecer se quisermos, mas não queremos. Nossos planos serão desenhados a partir do reposicionamento das aeronaves.

“onde é a saída de emergência do boingulho? não sou clarisse mas adoro-ro voar.
assinado: para sempre – sua, Ilália”

Ilália tem manias literárias, frequentemente se dubla, se entope de verdades. Acha que escritores não são desimportantes e repetitivos. Então ser genial e fumar é a dieta da minha boneca. E ela insiste que eu faça sua dieta também, como todas as pessoas que querem melhorar. Mas este nem está entre seus piores defeitos. Quando ela fuma muito, costuma pedir desculpas. Fui eu que ensinei minha boneca a fumar.

“Ilália, eu tenho 6 anos muito bem vividos, minha mãe precisa fugir de um estelionatário e nós duas vamos pegar o jeito de escapar. Começa assim: ultrapassamos a primeira esquina com a trouxa amarrada no cabo de vassoura. Depois dobramos a segunda encruzilhada, deixamos ali algumas moedas e seguimos, adiantadas. Ninguém aqui nessa história, como posso pressentir, precisa exatamente de prudência.”

 

Juliana Frank é roteirista e escritora. É autora dos livros Meu Coração de Pedra-Pomes (Companhia das Letras, 2013), Cabeça de Pimpinela (7Letras, 2013), Quenga de Plástico (7Letras, 2011) e participou da coletânea 50 Versões de Amor e Prazer: 50 Contos Eróticos por 13 Autoras Brasileiras (Geração Editorial, 2012).