Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

No ritmo do sonho

O escritor e sua gata Flanelle (em imagem de divulgação sem data)
O escritor e sua gata Flanelle (em imagem de divulgação sem data)

Dono de um estilo narrativo único, Julio Cortázar cativa gerações de leitores com sua linguagem inventiva e histórias fantásticas

Considerado um clássico da literatura latino-americana e um dos autores mais inventivos de sua época, obra após obra, Julio Cortázar é unanimidade quando se fala em realismo mágico. Se estivesse vivo já seria centenário. Filho de argentinos, nasceu em 1914 em Ixelles, distrito de Bruxelas, na Bélgica, mudando-se para o país de origem dos pais aos 4 anos de idade. Lembranças de infância, na cidade de Banfield (região metropolitana de Buenos Aires), dão conta de um menino de saúde frágil, que passava boa parte do tempo em casa, lendo livros indicados pela mãe. Em vida, o autor afirmou que a postura de sonhador, sem dar muita bola para a realidade, o levou ao encontro da literatura fantástica.

Esse estilo é fortemente identificado com escritores latino-americanos, como Cortázar e o colombiano Gabriel García Márquez. Um dos pontos do gênero é a junção de acontecimentos insólitos que levam à quebra da realidade narrativa. Esse exercício literário criou raízes no absurdo e em Cortázar se construiu sobre características ligadas à ambiguidade, fragmentação do tempo e da linearidade e a presença do duplo. Tais elementos podem ser percebidos em seus contos, entre eles As Babas do Diabo (parte do livro As Armas Secretas, publicado originalmente em 1959). A potência verbal dessa narrativa extrapolou o livro para executar um movimento muito forte no cinema contemporâneo, a adaptação literária. As Babas do Diabo foi parar na tela grande pelas mãos do diretor italiano Michelangelo Antonioni, inspirando o filme Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966).
 

Voz do inconsciente

Em conversa publicada no livro As Entrevistas da Paris Review – Volume 2 (Cia. das Letras, 2012), Cortázar disse que revisava pouco seus escritos, porque o todo já estava em elaboração dentro dele, além de citar que seus contos podiam começar a ser escritos de qualquer ponto e mencionar os sonhos. “Às vezes, a história inteira é um sonho”, declara. Professora titular em Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Cleusa Rios Pinheiro Passos explica que, em seus depoimentos, Cortázar sempre pareceu fiel a sua “maneira” de criar. A especialista cita o conto Casa Tomada, que teria brotado de um sonho angustiante do autor. “ Contudo, pode-se acrescentar que, se no pesadelo afloram traços mais perceptíveis do inconsciente, no trabalho estético operam as três instâncias psíquicas em que interagem desejo pessoal e dados histórico-culturais”, detalha.

Segundo a pesquisadora, Cortázar assinala que, ao transformar as imagens oníricas no conto, “o escritor entrou em jogo” e nessa narrativa introduziu uma personagem feminina, Irene, para ser irmã do narrador e gerar situações ambíguas (entre elas, a sugestão de incesto). Por sua vez, o leitor reconhece, para além do sonho, a reinvenção das mitológicas Moiras na irmã, o tom inquietante peculiar à tradição do fantástico, os ecos históricos da Segunda Guerra Mundial etc. Em síntese, sujeito, história e cultura se interpenetram. Difícil, portanto, determinar o grau de facilidade de tal organização literária, sustentada por dois “processos” que se contaminam: o psíquico e a escrita. “Dois modos de elaboração do material sonhado, o primeiro não constitui o sonho em si, mas seu relato, e o segundo – o processo da escrita – não surge totalmente pronto, completando-se no exato instante em que o autor dá forma literária ao sonho e o altera, pois, se, para ele, a história nasce inteira, a trama não. Ao urdi-la, Cortázar transfigura o mencionado potencial lúdico do inconsciente em potencial lúdico da palavra”, contextualiza a professora, autora de estudos sobre literatura e psicanálise e do livro O Outro Modo de Mirar. Uma Leitura dos Contos de Julio Cortázar (Martins Fontes, 1986, edição esgotada).
 

No gosto dos brasileiros

É mais fácil encontrar fãs ostentando camisetas de artistas e bandas pop do que escritores, mas Cortázar bem que poderia estampar camisetas de seus leitores brasileiros, bastante atraídos pelas suas histórias. O que provoca esse apelo? Na opinião do jornalista, escritor e editor da revista Minotauro, Cassiano Viana, em primeiro lugar vem o caráter lúdico, afetivo, solidário e humano de sua literatura. “Não existe ali uma arquitetura de distanciamento com o leitor, muito pelo contrário. Cortázar era um homem genuinamente apaixonado por seu tempo e pelas pessoas, e isso transbordava em seus textos”, destaca. “Soma-se o seu engajamento político e o reflexo disso em parte de sua obra – algo que caiu muito bem para o leitor brasileiro, sobretudo nos tempos de ditadura e repressão.”

A obra de Cortázar também refletiu na formação de novos escritores. Um deles é Julián Fuks, que nasceu em São Paulo, em 1981, mas os pais vieram da Argentina. Na relação que desenvolveu com o mestre, diz que o que mais o atrai nele é o fato de ter realizado aquilo que algumas vezes pregou em seus ensaios. “Cortázar se tornou um ‘audaz libertador das formas’. Durante toda a vida ele defendeu um rompimento com as técnicas antiquadas do realismo, um desapego às normas da objetividade ou, como ele dizia, ‘o fuzilamento pelas costas de Descartes’”, afirma Fuks. “E foi isso em grande medida o que ele executou em cada um dos gêneros. Fez do conto o império da liberdade, fez do romance um jogo de montar, mergulhou até o ensaio na subjetividade.” O autor sugere aos curiosos a leitura do conjunto de artigos do argentino publicados no Brasil sob o título Valise de Cronópio. “Ali, todo esse projeto se explicita com transparência invejável”, acrescenta.
 

Homem de letras

O escritor conheceu o lado prático de lidar com as palavras. Nos anos 30 formou-se em Letras pela Escuela Normal de Profesores Mariano Acosta, chegando a dar aulas em áreas rurais e universidades. O rompimento dessas atividades se deu no momento em que o peronismo – como era conhecido o conjunto de ideias políticas populistas de Juan Domingo Perón, que foi presidente da Argentina por três vezes – fortaleceu-se no país. Contrário à ideologia em voga, foi convidado pelo governo francês para estudar em Paris. Tomada a decisão, mudou-se com um plano de dez meses de estudos na Europa, que acabou se transformando em residência fixa. Chegou a Paris nos anos 1950, com 37 anos, e lá permaneceu até a morte, em 12 de fevereiro de 1984.

Apontado por críticos como renovador do conto, por alterar a dimensão dada ao gênero ficcional, Cortázar segue popular e tem suas obras disponíveis em catálogo de editoras brasileiras. Em contato com os livros do autor desde adolescente, Cassiano Viana tem planos de lançar uma biografia do contista. “Além do acesso à correspondência e a alguns livros publicados lá fora sobre o autor, consegui entrevistar pessoas ligadas a ele, como o artista plástico Julio Silva, capista e seu amigo íntimo. Outro que entrevistei foi o artista plástico Luis Tomasello, para quem Cortázar escreveu dois poemas: Un Elogio del Três e Negro el 10, este último no leito de morte”, detalha. O jornalista esteve na Argentina e visitou a primeira casa da família em Banfield, cenário de vários contos, “sobretudo do livro Bestiário”, e Paris, rota privilegiada que deve estar no imaginário de leitores fanáticos pelo escritor argentino.
 

ESTILO EM JOGO

O argentino deixou sua marca ao dominar a técnica sem perder a elegância da escrita


Um dos atrativos aos leitores de Cortázar é seu estilo narrativo. É o que explica Maria Amélia Mello, editora no grupo Autêntica e com experiência de mais de 30 anos no mercado editorial. Segundo ela, o autor era um inovador, com uma atmosfera especial de contar uma história. “Humor e o clima imponderável são características interessantes também, acrescentando o nonsense com visão crítica do mundo, da vida e das relações”, comenta.

A seguir, indicações de livros e contos que podem ajudar a entrar no jogo literário do escritor.

O JOGO DA AMARELINHA: lançado na Argentina em 1963, é um livro instigante, que faz refletir, buscar nas linhas – e entrelinhas – aquilo que Cortázar narra. Um jogo, um salto, uma vertigem só.

AS ARMAS SECRETAS: publicado originalmente em 1959, reúne cinco contos clássicos do autor, entre eles “O Perseguidor”, inspirado na vida do jazzista americano Charlie Parker. Cortázar era um apaixonado por jazz, gostava dos sons e do ritmo. Os instrumentistas norte-americanos Bix Beiderbecke, Louis Armstrong, entre outros, também estão nas narrativas do escritor argentino. É a liberdade criativa do jazz com seu fraseado sincopado.

BESTIÁRIO: o volume de 1951 traz o conto “Casa Tomada”. Sintético, revela em menos de dez páginas a inventividade do escritor, servindo de base para análises e especulações sobre o seu processo criativo e a relação com onírico.

Fonte: Maria Amelia Melo, poeta e editora


MULTIPLICADO EM FORMA E CONTEÚDO

Obra de escritor argentino inspira monólogo da artista Denise Stoklos


O teatro Anchieta do Sesc Consolação recebeu em dezembro passado o solo da diretora, atriz e escritora Denise Stoklos. Vendo Gritos e Palavras – Um Recital teve como base a literatura de Julio Cortázar. Não é a primeira incursão de Denise nesse tipo de intercâmbio entre expressões artísticas. Cartas ao Pai, de Franz Kafka, também foi transformada em espetáculo no ano de 2013, no mesmo teatro.

Denise conta que o valor da palavra de Cortázar assume a frente para quem se pretende colocá-lo, como foi feito por ela no espetáculo em questão. “O puro conteúdo é a forma em si da apresentação. Esse momento aparece como uma primeira fase de leitura e pode ser categorizada como a primeira parte da apresentação, o primeiro andaime de uma edificação teatral, necessária para existir o próximo andar, no qual deverá entrar com primazia, então, a coreografia, o desenho corporal”, justifica. “São esses fundamentos essenciais que levam a palavra enquanto tema, formato, recurso, ênfase para transformar-se em montagem cênica.”