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Eliane Robert Moraes

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

A professora fala sobre a representação erótica na literatura brasileira e as fronteiras entre erotismo e pornografia

Eliane Robert Moraes é professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Doutora em filosofia pela mesma universidade, atua como crítica literária e é autora de livros sobre o imaginário erótico na literatura, como O Corpo Impossível (Iluminuras/Fapesp, 2002), Sade – A Felicidade Libertina (Iluminuras, 2015) e Antologia da Poesia Erótica Brasileira (Ateliê, 2015). Nesta entrevista, Eliane fala sobre suas pesquisas relacionadas a esse tema e analisa como o erotismo aparece na poesia e na prosa brasileira: “A gente tem uma literatura erótica e também uma literatura erotizada, mas elas não são lidas como tal, e às vezes ficam meio guardadas e clandestinas”.

 

Como você delimita o que é literatura erótica e o que não é?

Há textos que ficam em uma fronteira, mas, como a gente precisa de uma definição para trabalhar, normalmente a definição com a qual trabalho é a que estabelece que erótico é aquele texto que erotiza toda a experiência que está contando. Ou seja, não é o texto que tem uma cena erótica, mas sim aquele que acaba erotizando todas as cenas ou quase todas, em que vê o mundo pelas lentes do erotismo. Lidar com erotismo é lidar com um dos grandes mistérios da nossa vida, do humano, da nossa constituição. Como todo mistério, dá medo. São essas coisas grandes que a gente não sabe definir, essas coisas das quais a gente não escapa, e o erotismo é uma delas. Como tal, vai ser objeto de escárnio, de depreciação, mas vai ser também o objeto mais sublime de poesia, lirismo e exaltação. É aí, nesse leque imenso, que a gente está quando fala de erotismo. Você pode ter a coisa mais rebaixada, que para mim não tem conotação negativa, e pode ser também a mais estereotipada. A literatura, na verdade, é um lugar ótimo para você entrar em contato com a amplitude do erotismo.
 

Depois de pesquisar o erotismo na literatura europeia, o que despertou as suas pesquisas para o Brasil?

Comecei a pesquisar a erótica literária a partir de Marquês de Sade, com os libertinos do século 18 francês, sempre com literatura europeia. O José Paulo Paes, que foi grande amigo meu, organizou o livro Poesia Erótica em Tradução, e eu conversava com ele, sabia que tinha algo ali e ele me incitava a ver isso. Quando, alguns anos depois, li o Mário de Andrade, que escreveu que o Brasil não tinha uma literatura erótica organizada, achei que ele estava falando comigo e fui atrás. De repente, me dei conta de que tinha bastante coisa. Foi maravilhosa a pesquisa. Não fiquei pesquisando o ano inteiro, fui fazendo devagar e, quando vi, havia coletado mais de 1.500 poemas e reunido algum material de prosa também. A gente tem ainda um tesouro a ser explorado.
 

Na sua opinião, apesar de o Brasil ser um país com fama de ter a sensualidade aflorada, tem uma literatura pudica?

Não diria que a nossa literatura é pudica. A literatura pudica é aquela que aparece, que é elogiada e colocada na mesa. Acho que nos bastidores tem muita coisa, ou pelo menos essa é a minha descoberta nos últimos anos, em que estive mexendo nesses bastidores. Acho que a gente tem uma literatura erótica e também uma literatura erotizada, mas elas não são lidas como tal, e às vezes ficam meio guardadas e meio clandestinas.
 

Por que essa nossa literatura não ganha tanta repercussão?

Até hoje, no Brasil, a ideia de literatura e de livro ainda é uma coisa de elite, seja que elite for. Colocar um poema que fale palavras de baixo calão em um livro é algo que mexe com alguma coisa que ainda vem do século 19 no Brasil. A Hilda Hilst, em 1990, quando já era uma autora consolidada, lançou o Caderno Rosa de Lori Lamby, um livro pornográfico de altíssimo nível, e chocou as pessoas. Existe um melindre. Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo, é um livro que tem sexo do começo ao fim, mas a maior parte das leituras desse livro se esquecem disso e o tratam apenas como um livro relacionado à identidade nacional. Estabelecer uma relação entre a identidade nacional brasileira e o sexo incomoda a elite intelectual. É como não se pudesse sujar as mãos com isso.
 

Pelas suas pesquisas, você diria que a maior voltagem de erotismo está na poesia ou na prosa brasileira?

Quando a gente está falando de erotismo, tem uma faixa de fronteira em que é muito difícil dizer o que é ou não erótico. Essa delimitação é meio artificial, a gente é que faz. Na poesia é mais fácil perceber isso e delimitar parâmetros. Na prosa, há textos muito erotizados, mas que não poderiam ser chamados de literatura erótica, inclusive em grandes prosadores, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
 

Como você define a fronteira entre o pornográfico e o erótico, dado que existem bons autores, como Henry Miller, que veem as duas coisas como uma só?

Quando Henry Miller teve o primeiro livro proibido, ele escreveu um texto em que diz que não existe nada que seja obsceno em si. Não existe nenhum livro obsceno, nenhum quadro ou peça de teatro obscenos. A obscenidade está na cabeça daquele que ouve, daquele que lê e que olha. Portanto, a obscenidade é uma coisa projetiva. Henry Miller sabia das coisas. Para mim, erotismo e pornografia são a mesma coisa. Acho que não existe, em essência, do ponto de vista literário, diferença entre erotismo e pornografia, porque para o senso comum se diz que o erótico é aquilo que é velado, que não aparece, e o pornográfico seria o que é escancarado, aquilo que mostra tudo. Mas isso realmente é o senso comum, e a literatura, se você colocar à prova disso, não funciona. Por exemplo, o Caderno Rosa de Lori Lamby, da Hilda Hilst, é muito mais obsceno do que O Doce Veneno do Escorpião, da Bruna Surfistinha. A História do Olho, de Georges Bataille, é muito mais obscena que Cinquenta Tons de Cinza.
 

O que torna a literatura erótica uma boa literatura?

Não é o grau de obscenidade que define o que é uma boa literatura. Uma boa literatura pode ser superobscena e pode ser ótima. A literatura erótica é avaliada pelos critérios usados para qualquer literatura, pela qualidade do trabalho de elaboração formal que está ali. Se o autor está usando as palavras mais chulas e mais indecentes, isso não tem problema nenhum. Por outro lado, há grandes livros eróticos que não têm uma palavra obscena. Por exemplo, Lolita, de Nabokov, é muito erótico, e não tem uma palavra obscena, então são modos de trabalhar dos autores.
 

Você observa que existe uma criatividade no vocabulário relacionado à temática sexual?

Existe toda uma ficção no século 18 francês que estava muito ligada às sociedades secretas libertinas e que trabalhavam com vocabulários muito criativos. Essas sociedades libertinas usavam vocabulário náutico, algo muito divertido. Fanny Hill, de John Cleland, que é o grande romance inglês libertino do século 18, tem várias passagens em que mexe com esse vocabulário naval. Voltando à Hilda Hilst, o professor Alcir Pécora fez um levantamento do vocabulário que a Hilda usa para definir o sexo masculino, o feminino e o que é comum aos dois. Ela fez uma pesquisa lexical imensa. É uma lista de nomes, em que ela utiliza desde o vocabulário mais popular até o do século 19.
 

Na sua opinião, ainda hoje o sexo tem o poder de ser subversivo?

O mundo do sexo é um mundo que está fora do mundo da utilidade. As sociedades contemporâneas têm uma coisa perversa de estabelecer um casamento entre sexo e utilidade. A propaganda e a publicidade se valem muito disso, e inserem o sexo dentro de uma programática da utilidade. Oferecem um repertório pronto de fantasias, como um fast food, com lanches rápidos, mas a alta gastronomia está em outro lugar. O erotismo é algo da ordem da singularidade, e no momento em que você propõe um modelo, você tira uma descoberta que só pode ser individual. Porém, o sexo tem, em geral, algo da ordem da resistência. O mundo do sexo não é o mundo do trabalho. É o mundo da dilapidação, do dispêndio, em que há perda de energia. Há algo aí da ordem da subversão, e a literatura, quando é boa, quando toca efetivamente nas bases desse mundo, tem essa capacidade subversiva, sim. Apesar disso, hoje há uma saturação do sexo, que foi condenado a uma visibilidade muito grande. Por isso, é legal você trabalhar com a literatura, porque você sai um pouco dessa visibilidade, diferentemente da internet, que te oferece algo pronto. Se o sexo é um mistério que está na nossa origem, não é em meia dúzia de cliques na internet que você vai desvendá-lo.
 

Como fica a presença feminina na autoria dessa produção literária erótica?

Atualmente, temos muitas mulheres escrevendo literatura erótica, mas no século 19 elas eram raríssimas. Na antologia temos duas mulheres no século 19. Efetivamente, a mulher aparece do século 20 para cá. Surgem Adélia Prado, Ana Cristina Cesar, Maria Lúcia Dal Farra, Hilda Hilst, entre outras.
 

E em relação à produção homoerótica?

Fica mais presente a partir dos anos 1950 e 1960, com a contracultura. Temos grandes poetas homoeróticos, mas existe muita coisa também escondida. Junqueira Freire, por exemplo, que é um poeta do romantismo, tem uma produção homoerótica. Dos anos 1950 para cá, há grandes poetas homoeróticos, como Mário Faustino, Antônio Cícero e Roberto Piva. Isso é algo mais recente e vemos mais produção homoerótica masculina.
 

Você acha que o politicamente correto já se reflete na maneira como as pessoas produzem literatura erótica hoje?

Não vi isso. Diria que seria a via oposta. A poesia erótica brasileira é muito fortemente cômica, burlesca, satírica. Há muitas paródias, os poetas fazem isso muito bem, e há coisas ótimas nesse sentido. O Brasil não tem uma erótica trágica, como tem a França. A linha de força vai para o riso. Nas últimas décadas, a gente tem uma poesia erótica mais elegíaca, que é muito bonita, que aparece como uma força. Por exemplo, o poema do Mário Faustino, do Cícero. Na linha hétero, existe também o Bruno Tolentino, o Paulo Henrique Britto e o Paulo Franchetti, que fazem uma poesia muito satírica também.
 

Examinando esses poetas com o olhar do feminismo atual, alguns deles poderiam ser acusados de machistas?

Qualquer um pode ser acusado, é uma questão delicada. Considero-me feminista, mas vejo uma distinção entre o plano do real, das nossas relações, e o plano da fantasia. Não dá para praticar tudo o que é fantasiado. A fantasia tem uma dimensão livre, ela abre as asas e vai, então não dá para tomar a fantasia por realidade. Um livro é um livro. Ele pode ter uma cena sádica, mas é um livro, não é o plano da prática. Acho que, às vezes, o feminismo falha por querer cercear a liberdade da imaginação. O erotismo tem duas matérias, uma é o corpo e a outra é a fantasia. Só corpo, no erotismo humano, não funciona. O mais rude erotismo humano terá um pouco de fantasia. O erotismo é uma capacidade de fantasiar e nessa capacidade você pode pensar em uma orgia com 400 pessoas, como uma cena de Marquês de Sade em Juliette. Se quiser imprimir um olhar politicamente correto para a erótica, isso vai virar uma censura. Existe uma linha tênue entre conceber o inconcebível e praticar o impraticável. Praticar é outra coisa, mas, na imaginação, tudo é possível.
 

Nesse universo do erótico, houve recentemente o fenômeno best-seller da série Cinquenta Tons de Cinza. A que você credita esse tipo de sucesso?

O que foi diferente nessa série é que foi uma pornografia dirigida à mulher. Se você pensar bem, geralmente a pornografia é dirigida ao homem. De repente, apareceu um livro para a mulher, que elas liam até no metrô. Na trama, a autora juntou uma história de amor de uma estudante que encontra um empresário rico, em que se desenvolve uma relação sádica. Portanto, a autora pegou todo um conteúdo que estava na literatura adulta para homens e juntou a uma história romântica. Muitas mulheres ainda sonham com um príncipe encantado, mas estão no mercado de trabalho, afirmando a igualdade. Essa questão amorosa e erótica da mulher ficou complicada, porque ainda se sonha com um grande amor, ao mesmo tempo em que há uma vida erótica mais variada. Acho que ela mexeu com uma espécie de inconsciente feminino.