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Herói sem rosto

Foto: David Tubau
Foto: David Tubau

COMO LÍDER DO QUILOMBO DOS PALMARES OU SÍMBOLO DA LUTA CONTRA A ESCRAVIDÃO, ZUMBI É PERSONAGEM MARCANTE DA HISTÓRIA DO BRASIL

O personagem Zumbi dos Palmares povoa o imaginário dos brasileiros pelo seu alto valor simbólico, embora se saiba pouco sobre ele. O fato é que esses são justamente os dois pontos de concordância para pesquisadores do tema: a dificuldade de reconstruí-lo biograficamente e sua importância para a historiografia brasileira.

Na introdução do livro Três Vezes Zumbi – A Construção de um Herói Brasileiro (Editora 3 Estrelas, 2012), os autores Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira evidenciam esse aspecto ao dizer que é impossível escrever uma biografia propriamente dita de Zumbi, pois são poucos os traços rastreáveis sobre o suposto homem que liderou o maior quilombo criado nas Américas durante a vigência da escravidão, o Quilombo dos Palmares (localizado na Serra da Barriga, na então Capitania de Pernambuco – atual estado de Alagoas –, na Região Nordeste).

Na mesma linha de raciocínio, os autores chegaram à conclusão de que há uma “biografia” que pode ser contada: “Aquela do Zumbi e dos Palmares que, pacientemente, militares, naturalistas, religiosos, historiadores, pedagogos, antropólogos, romancistas, cineastas e outros homens de cultura do século 17 ao 21 construíram em suas obras”.

LIDERANÇA NEGRA
A trajetória de Zumbi dos Palmares se dá na época do período colonial brasileiro. Não há precisão quanto à data e ao local de seu nascimento, tampouco certeza de como era seu rosto. “Não há imagens de Palmares, porque os artistas, os europeus que vinham para cá, talvez por temor ou por não considerar a importância, não fizeram registros de Zumbi. O que vemos em livros são figuras atribuídas a ele”, explica o jornalista e curador da exposição Zumbi – A Guerra do Povo Negro, em cartaz no Sesc Vila Mariana, Audálio Dantas.

O que se aponta é que Zumbi teria nascido em 1655 e morado no Quilombo dos Palmares antes do período de acirramento que marcou o local. A formação do quilombo, fundamental para juntar os pontos da trajetória de Zumbi, aconteceu por volta de 1580, motivada pela fuga de escravos que se reuniram no local identificado pelo difícil acesso, cercado por palmeiras, as quais camuflavam e davam cor ao tipo de fortaleza que se construiu. Em momento de maior movimentação e atividades, especula-se que o número de moradores chegou a 30 mil.

O quilombo continuou em atividade até o ano de 1700, mesmo após a morte de seus dois líderes, Zumbi e Ganga--Zumba, este último, tema de filme homônimo dirigido por Cacá Diegues lançado em 1964. Ganga-Zumba foi o primeiro líder do quilombo, substituído por seu sobrinho, Zumbi. Indignado com a postura do tio em aceitar o acordo de paz oferecido em conjunto pelo capitão-mor Fernão Carrilho e as autoridades recifenses, Zumbi tomou o posto de líder e resistiu aos apelos oficiais que pediam pelo fim de Palmares. Ganga-Zumba, por sua vez, foi morto por envenenamento.

MUITO A SE DESCOBRIR
Questionado sobre as imprecisões e dificuldades de reconstruir um personagem tão complexo quanto Zumbi, o historiador e professor Douglas Apratto Tenório faz questão de observar que nenhum fato histórico se encontra esgotado em sua análise. “Há sempre um novo estudo a fazer, um fato inédito que surge, uma informação preciosa até então desconhecida. No caso do Quilombo dos Palmares, há um mundo a descobrir”, afirma. “O sítio da Serra da Barriga, em União dos Palmares, aguarda até hoje as escavações arqueológicas e o trabalho dos historiadores para que muitas perguntas sobre a República Negra dos Palmares e seu líder maior, Zumbi dos Palmares, encontrem respostas.”

Em sua opinião, os poucos documentos existentes não impedem que a documentação de outros personagens e do dia a dia da época, a memória oral dos contemporâneos e depoimentos sobre o líder negro “forneçam um quadro bem razoável para sabermos quem era, como se manifestava, suas relações com outras personalidades, o meio natural, e o verdadeiro papel exercido por ele”.

A CARTA
Dantas cita o episódio da carta Pedro II, a qual, em síntese, oferecia segurança real ao guerreiro, sua família e capitães. “Tratam-se de documentos pesquisados nos arquivos portugueses e há uma carta atribuída ao rei de Portugal Pedro II, na qual é proposto um acordo de paz com Zumbi”, e este não foi o único apelo. Outras propostas tentaram dissuadir o líder, todas sem sucesso. O quilombo começou a desmantelar em 1694, depois de uma invasão militar, comandada pelo bandeirante português Domingos Jorge Velho em associação com homens da Capitania de Pernambuco.

Versões sobre a morte de Zumbi surgiram a partir desse fato. Os primeiros pesquisadores davam conta de que, prevendo que o pior estava por vir, ele teria se suicidado, atirando-se de um penhasco. Versões posteriores indicaram que Zumbi teria morrido um ano depois. “Palmares não foi um simples episódio de revolta, mas uma luta pela liberdade que extrapola a questão da raça negra”, explica Dantas. Segundo o pesquisador, a marginalização da história em relação à revolta liderada por Zumbi dos Palmares tem a ver com a marginalização que a população negra sofre no Brasil até hoje. “O Brasil se formou em cima da escravidão, a economia da Colônia e do Império baseou-se no trabalho escravo nos engenhos de Pernambuco, que davam receitas para o império português”, salienta. “Acho que esse episódio foi uma luta organizada e consciente contra o escravismo, e as pessoas precisam conhecer mais essa história para entender a importância da figura de Zumbi, considerado herói nacional não só representando a raça negra, mas um sujeito perturbador da ordem por uma causa legítima e coletiva.”


DOCUMENTOS E VERSÕES
Escassez de documentação e registros confiáveis aumenta a polêmica sobre quem foi e quais eram as intenções de Zumbi

Algumas histórias sobre Zumbi são pura invenção. O jornalista Décio Freitas (1922-2004), por exemplo, disse ter encontrado cartas de um padre que teria educado Zumbi, ensinado a ele latim e o batizado com o nome de Francisco. De acordo com o jornalista Leandro Narloch, autor dos livros Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil (Leya, 2009) e Guia Politicamente Incorreto da América Latina (Leya, 2011), isso é pura ficção.

O pesquisador afirma ainda que há cinco ou seis documentos da época que citam Zumbi, e nenhum deles dá traços de sua personalidade ou de suas intenções. Mesmo a oposição entre Zumbi (“o rebelde”) e Ganga--Zumba (“o traidor, que se aliou aos brancos”) não teria base histórica. “O que podemos afirmar sobre ele vem do contexto da época. Muitos quilombos do Brasil e da África se organizavam como pequenos reinos, com hierarquia, obediência e também escravidão”, diz. “Zumbi viveu no século 17, uma época sem as noções de igualdade e direitos humanos do século 21. Portanto, me parece razoável acreditar no que relataram capitães holandeses da época, para quem havia escravidão no Quilombo dos Palmares.”

No entanto, Leandro faz questão de ressaltar que Zumbi continua sendo um personagem relevante da história do Brasil. “O fato de ter possuído escravos não o torna um vilão, apenas um personagem de sua época”, conclui.


REVOLTA DE UM POVO
Exposição se insere nas comemorações do Dia da Consciência Negra e marca os 360 anos de nascimento de Zumbi

Em cartaz no Sesc Vila Mariana até 31 de janeiro de 2016, a exposição Zumbi – A Guerra do Povo Negro é uma ação artística e educativa que propõe uma mudança de perspectiva, “um olhar mais atento sobre nossa história”, diz a técnica do Núcleo Integrado de Artes (NIA) da unidade Carol Rios. “A exposição prevê ações formativas, como oficinas práticas, vivências, encontros, bate-papos e mediações junto aos visitantes e grupos agendados, com o objetivo de aproximar o público das questões sobre história e cultura africana e afro-brasileira”, informa.

Com curadoria do jornalista e escritor Audálio Dantas, além da participação do ilustrador Fernando Vilela e do fotógrafo Tiago Santana, a mostra também prevê uma programação integrada que envolve cursos e mesas de debates sobre memória e resistência, feminismo negro, o corpo negro e sua imagem e a representação do negro nas artes.

Em janeiro haverá um curso sobre arte africana ministrado por Renato Araújo, pesquisador do Museu Afro Brasil, e um curso sobre reflexões e experimentações gráficas com o ilustrador Fernando Vilela. Além disso, há o projeto Sankofa – Memórias de Mão Dupla, desenvolvido com a intenção de estimular a reflexão sobre as contribuições do continente africano para a cultura brasileira.

Carol Rios destaca as seguintes atividades do projeto Sankofa:
Cinema – A mostra Diz Aí – Extermínio da Juventude Negra, Cinema Negro Brasil/África: Itinerância do Centro AfroBrasil de Cinema.
Dança – A apresentação do espetáculo Yebo e o workshop com Gumboot Dance Brasil, e Vivência em Dança Africana com Flávia Mazal.
Música – Os shows com Batucada Tamarindo, Congada do Parque São Bernardo com Mestre Ditinho, Trupe Benkady.
Literatura – Contação de história: “Luana e as sementes de Zumbi”, com Oswaldo Faustino, e Clube de Leitura sobre o livro Ualalapi, de Ungalani Ba Ka Khosa, mediado por Allan da Rosa.
Artes visuais – Os cursos A Representação do Negro nas Artes Visuais, com Juliana dos Santos, e Tramas da Re-existência, com Juliana Bernardo, e a performance Renda.
Acompanhe as datas das atividades no  sescsp.org.br/unidades.