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Norval Baitello Junior
PESQUISADOR FALA SOBRE COMUNICAÇÃO, NOVAS MÍDIAS E OS VAZIOS PROVOCADOS PELA MASSIVA PRESENÇA DE IMAGENS NA SOCIEDADE
Professor na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Norval Baitello Junior é desde 2007 coordenador da área de Comunicação e Ciências da Informação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Doutor em Ciências da Comunicação e em Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim, foi diretor da Faculdade de Comunicação e Filosofia e criou os cursos de Comunicação e Artes do Corpo e Comunicação e Multimeios na PUC-SP. É autor de livros como A Serpente, a Maçã e o Holograma (2010), O Pensamento Sentado – sobre Glúteos, Cadeiras e Imagens (S. Leopoldo, 2012) e A Era da Iconofagia (Editora Paulus, 2014), no qual analisa como o ser humano devora imagens e é devorado pelas imagens na sociedade contemporânea. Nesta entrevista, Norval fala sobre este e outros temas relacionados à comunicação, internet, redes sociais e novas mídias.
A internet é tida como um grande meio de difusão de informações, mas o que acaba prevalecendo são as redes sociais. Você acredita que elas difundem algum conhecimento?
De fato, as redes sociais ocupam hoje uma grande parte da internet e, consequentemente, uma grande parte do tempo das pessoas. Quando estão na internet, as pessoas se ocupam com um tipo de entretenimento que é completamente aguado. O custo acaba sendo muito alto, em termos de tempo. As pessoas gastam muito tempo mandando imagens de flores, paisagens, animais. A imagem tem um papel central para captar o olhar do espectador e ele, nesse desfile interminável de imagens, acaba atingindo um grau de repetição que eu diria ser equivalente ao grau de tensão da vida contemporânea. Funciona como um contraponto para a tensão da correria contemporânea. As pessoas jogam o seu tempo fora porque se esgotaram em outro tipo de atividade, a atividade laboral, e não conseguem fazer de outra maneira.
“A imagem tem um papel central para captar o olhar do espectador e ele, nesse desfile interminável de imagens, acaba atingindo um grau de repetição que eu diria ser equivalente ao grau de tensão da vida contemporânea”
O que se perde com isso?
A possibilidade da convivência com outras pessoas. Normalmente, quando não havia a internet, no final do trabalho a gente telefonava para os amigos, saía, recebia gente em casa. Hoje, tanto durante o trabalho, nos intervalos, antes do trabalho, antes de dormir e em todos os horários vazios, trocamos as pessoas, os corpos vivos, pelas imagens. Todo mundo está na tela. Uma imagem é uma abstração de altíssimo grau, porque você transfere uma aparência, que é a luz, para um aparato técnico ou outro suporte qualquer. Essa abstração é uma ausência, é um vazio. Nós estamos enchendo as nossas vidas de vazio.
Isso pode cada vez mais aprofundar a solidão? Como isso afeta a sociedade?
Dentro da sociedade, existe, mais do que uma troca de informações e conhecimentos, uma troca de afetos. Existe um sentimento de pertencimento que é afetivo e que dá o bem-estar quando estamos dentro de um grupo, em uma festa, em família, com pessoas de que a gente gosta. Hoje, essa troca afetiva passa a ocorrer sem a presença da pessoa. Até existe a simultaneidade. A pessoa pode estar lá, na tela, ao vivo, mas existe uma mediação, e é uma mediação complexa, porque é vazia. É uma abstração. A etimologia de abstração é a mesma de subtração, então a gente tira alguns elementos, como o tato, a presença, a espacialidade, o entorno. São muitos elementos que fazem parte de todo um conjunto afetivo do ser vivo.
Como professor, você percebe que no ambiente acadêmico isso gera uma interferência nociva na maneira como as pessoas interagem?
Existe uma grande mudança de comportamento, e não apenas para o mal. Os alunos mais jovens, hoje, são inevitavelmente mais antenados e informados. Eles descobrem, pesquisam e ficam sabendo o essencial antes mesmo das aulas. Isso é ótimo. Do ponto de vista do acesso à informação, que para as gerações anteriores significava recorrer a bibliotecas, ir à livraria e comprar o livro, isso melhorou. O aluno vem mais preparado, mas ao mesmo tempo vem mais ausente. A gente percebe uma maior indiferença em relação às questões políticas, da própria vida, urbanísticas, ambientais. Há uma maior indiferença, como se tudo estivesse em uma tela e bastaria você apagar essa tela ou mudar de tela para não ter mais um problema. Quando a gente fala que essas novas tecnologias da informação são abstratas, significa que elas são também passageiras. Existe um altíssimo grau de obsolescência. O Facebook vai desaparecer, assim como o Orkut desapareceu, e todo esse acervo, que poderia ser um grande acervo de memória, acaba se perdendo. Nós não teremos mais acesso. A abstração é tão fugaz que você apaga com um simples toque de dedo.
“Quando a gente fala que essas novas tecnologias da informação são abstratas, significa que elas são também passageiras. Todo esse acervo, que poderia ser um grande acervo de memória, acaba se perdendo”
Pode ocorrer, então, o contrário do que se imaginava: em vez de preservar, essa tecnologia comprometeria a memória?
Exatamente. E compromete também no sentido presente, de reter coisas. Há estudos de médicos sobre a perda da memória por uso excessivo da informática. A pessoa tem a informação fugazmente e não guarda sequer o horário do voo do dia seguinte, precisando acessar um dispositivo constantemente para lembrar. A gente não está exercitando a nossa memória de curta duração, que é justamente a memória afetada pelo Alzheimer. É a criação de um Alzheimer tecnológico.
Em O Pensamento Sentado – sobre Glúteos, Cadeiras e Imagens, você fala que nunca deve ter havido uma sociedade tão “sentada”. Isso tem reflexos na nossa maneira de encarar a realidade?
Sem dúvida, porque tudo está no nosso corpo. A própria palavra “sentar” no latim tem dois significados, que são o ato de sentar ou de acalmar alguém. Isso está presente na nossa vida. Quando uma pessoa está muito nervosa, a gente logo a coloca sentada. Como primatas, nós não estamos preparados para dar o bote ou fugir do bote quando estamos sentados. Não é uma postura de prontidão e, claro, isso tem consequências bastante profundas para a vida. Se a gente for analisar, qual é a primeira grande dificuldade da escola com as crianças pequenas? Ensinar a sentar, porque a criança quer sair andando pelo espaço. Aos dois anos começamos a ensinar as crianças a sentar e isso vai até os vinte e poucos anos, então são décadas de sedação do corpo. Esse corpo, que já foi um corpo saltitante, das árvores, quando éramos primatas não hominídeos. Depois, com a redução das matas, sobraram as savanas, e nos transformamos em nômades. Muito recentemente, dez mil anos atrás, é que esse nômade assentou, em assentamentos. Nós estamos há dez mil anos sentados, mas o nosso corpo ainda é inquieto, do movimento, e nasceu no movimento e do movimento.
O que seria esse movimento tão marcante no ser humano?
Se a gente observar como pensa uma criança pequena ou como nós pensamos quando não estamos trabalhando com alguma coisa, o pensamento é saltitante. O pensamento lógico é uma coisa que a gente conquista e aprende a duras penas. O nosso pensamento pula de uma coisa para a outra. Não é à toa que os budistas tibetanos falam dos macacos no pensamento. Para eles, as ideias são como macacos, pulam de um lado para o outro. Grandes pensadores como Goethe e Nietzsche só conseguiam ter ideias novas quando estavam caminhando. Goethe caminhava, tinha as ideias, sentava e esquecia, então ele passou a andar com um secretário que ia anotando. O computador nos amarra ainda mais à cadeira. Ele torna o nosso pensamento ainda mais sentado. Hoje é assustador o tempo que as pessoas passam postando, lendo.
Pensando em termos de comunicação, isso traz uma falta de inquietação e reduz a agenda de interesses da sociedade?
Ao contrário do que se imagina, já que você tem mil amigos no Facebook, a agenda de interesses se reduz a quem ganhou neto, filho, como está o filho, o prato de comida. Passa para um nível de desimportâncias cotidianas que ocupam a vida das pessoas. Nós estamos criando um ambiente inóspito, de vazios, de coisas que esquecemos no minuto seguinte. É preocupante. Há uma redução de complexidade, e que significa uma redução na capacidade de pensar, também.
“Estamos criando um ambiente inóspito, de vazios, de coisas que esquecemos no minuto seguinte. É preocupante. Há uma redução de complexidade, e que significa uma redução na capacidade de pensar, também”
Isso se dá em um momento muito complicado, não? Há um enfraquecimento da mídia escrita, por exemplo. Isso é perigoso?
O Brasil nunca foi um país alfabetizado, a verdade é essa. Apesar disso, a mídia se manteve em um bom nível, mas agora degringolou e está perdendo rapidamente o pouco espaço que havia ocupado. Não só na produção de um texto, já que os textos foram se superficializando, e a capacidade de leitura diminuindo. Toda a mídia elétrica, desde a televisão até a internet, vai ocupando espaço, oferecendo outras alternativas, e até mesmo alternativas de leitura. A escrita permanece, mas é uma outra escrita. É uma escrita muito rápida, lacunar, e uma leitura lacunar também. Isso significa, por um lado, a perda da logicidade da escrita, que está na mídia impressa, que estava na literatura, que está no discurso científico. Não dá para fazer nada disso com escrita lacunar. Há grandes mudanças cognitivas que ocorrem, e a gente já percebe nas gerações mais jovens, na dificuldade do domínio da escrita linear. Falta paciência para escrever, porque a escrita e a leitura requerem tempo lento.
É possível dizer, então, que vivemos uma supremacia da imagem?
A imagem é muito mais adequada a esses tempos, porque você bate o olho na imagem e pronto. A escrita, não. Você precisa olhar letra por letra, palavra por palavra, o que requer um tempo lento. A imagem te economiza esse tempo. Toda imagem é uma abstração, assim como a escrita, só que a escrita faz com que a gente construa cenários lentos e tenha mais tempo de metabolizar. Já a linguagem imagética, e sobretudo a linguagem imagética acelerada, tal qual na televisão e na internet, não dá tempo de metabolizar, e esse tempo da metabolização é o tempo da cognição. A cognição se dá quando a gente metaboliza as coisas.
Existe uma saída para isso?
Podemos comparar, por exemplo, o que acontece hoje com a ecologia, e perceber que as pessoas que estavam denunciando isso nos anos 1950 foram tidas como loucas, mas estavam com razão. É preciso que haja apocalípticos, porque sem eles essas coisas caem na inércia, elas vão por elas próprias. É preciso estar alerta. É assim que vejo a importância de uma teoria da comunicação e uma teoria da imagem crítica, que analise cenários e impactos. O impacto dessa mídia sobre a população mundial é o que nós precisamos estudar, não as vantagens que ela traz. As vantagens nós sabemos, e a indústria sabe muito bem explorar essas vantagens e vender essas coisas para a gente, mas a indústria também se interessa em esconder esses danos. Esses danos são terríveis hoje, e por isso os centros de pesquisa têm trabalhado em contato com psicólogos e psicoterapeutas. Ao conversar com psicólogos, nós descobrimos que eles estão lidando com casos clínicos dramáticos, por exemplo de jovens e adolescentes com disfunção erétil por vício em pornografia online. Isso comprova a tese de que a imagem é uma ausência, e a pessoa que passa a conviver com ela se contamina dessa ausência. É o que chamo de iconofagia. A imagem devorou a pessoa, e nesse caso devorou a sexualidade. A sexualidade corpórea passa a ser completamente comprometida.
O que isso significa para a imprensa?
Se a gente for ver as reformas por que passaram os grandes jornais nos últimos 50 anos, nota que foram reformas de enxugamento do texto, para um formato rápido. A imagem foi ocupando mais espaço, o que é algo que contribuiu para capturar o olhar, aumentar as vendas, mas ela também cansa e perde seu poder de captura. E aí é preciso que haja, cada vez mais, imagens apelativas. O mundo corporativo não está pensando em sustentabilidade, e sim em lucro. A própria televisão, com raríssimas exceções, não formou telespectadores. Ela simplesmente explorou o telespectador como um número e não melhorou a sua complexidade narrativa, a sua capacidade de fidelizá-lo. A mesma coisa fez a mídia impressa, e então nós temos aí um problema. Se você não forma leitor, e é um órgão de mídia escrita, isso significa que amanhã você vai fechar.
É possível observar hoje na internet, seja em blogs, sites ou perfis de personalidades que têm um grande número de seguidores, uma oposição à grande mídia. Como você vê esse cenário?
Eu tenho dúvida se esses espaços alternativos de discussão que a internet oferece têm alguma efetividade. Primeiro, porque eles operam dentro de um nível de abstração e de imagem. Os movimentos de 2013 de mobilizações populares, por exemplo, se esvaziaram dentro das redes sociais. Eles entraram para as redes sociais e ali foram absorvidos. Eu tenho dúvida se os blogs e os grupos de oposição na internet algum dia irão virar movimento de massa. A gente tem a massa sem a massa, porque eles se desgastam, ficam reverberando ecos e nunca se transformam em uma efetiva atitude política. Você desabafa ali, xinga todos os políticos e fica nisso mesmo. É um tema curioso para a gente entender. A gente vai ter que observar melhor qual é o efeito brochante desse aparato todo de imagens, abstrações e vazios, como isso atua.
“Tenho dúvida se esses espaços alternativos de discussão que a internet oferece têm alguma efetividade. Os movimentos de 2013 de mobilizações populares, por exemplo, se esvaziaram dentro das redes sociais”
Esse aguçamento na sociedade, por outro lado, não teria algo de positivo?
É muito positivo, claro. A minha indagação é se esta mobilização é a imagem de uma mobilização, ou se ela é uma mobilização efetiva. Se ela for a imagem de uma mobilização, ela não mobiliza nada. Só a internet vira uma repetição, em que um fala, o outro concorda, discorda, se transforma em um viral e acabou, isso se esgota ali. Por isso acho que a reflexão sobre o que é uma abstração é, hoje, a reflexão que a gente precisa levar aos nossos alunos de comunicação. Uma abstração é a subtração do sentido, você tira o significado e sobra ali uma imagem vazia. A palavra imagem é boa para isso, embora ela seja também muito ambivalente, já que nós já tivemos imagens que causaram mudanças mundiais. A questão é, se nesse suporte tão abstrato quanto a internet, essas imagens levantam os corpos. Se as pessoas vão deixar as suas zonas de conforto para atuar. Acho que a disposição para isso tem sido cada vez menor.