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Capitalismo de laços

Sérgio Giovanetti Lazzarini / Foto: Bruno Leite
Sérgio Giovanetti Lazzarini / Foto: Bruno Leite

Sérgio Giovanetti Lazzarini, Ph.D. em administração pela Washington University, é mestre em administração pela FEA-USP.
É pesquisador de estratégias empresariais em mercados emergentes e também em investimentos de impacto. Articulista de “O Estado de S. Paulo”, tem publicado artigos em revistas acadêmicas nacionais e internacionais. Foi membro do conselho executivo e representante global para a América Latina da Business Policy and Strategy Division, Academy of Management, e é membro do conselho da International Society for the New Institutional Economics.
Publicou em 2011 o livro
Capitalismo de Laços e é coautor da obra Reinventando o Capitalismo de Estado.
Esta palestra de Sérgio Lazzarini, com o tema “Capitalismo de Laços”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 14 de maio de 2015.

Quando o ministro Joaquim Levy assumiu, já falou de cara que queria combater o patrimonialismo, ou seja, a confusão entre o bem público e o interesse privado. O que fez com que ele se preocupasse tanto com isso nesse momento de crise e quais são as implicações para as empresas?

Publicamos recentemente um livro em coautoria com Aldo Musacchio Reinventing State Capitalism: Leviathan in Business, Brazil and Beyond, pela Harvard University Press, traduzido e lançado pela Companhia das Letras [Reinventando o Capitalismo de Estado – o Leviatã nos Negócios: Brasil e outros Países], no qual mostramos que a entrada do governo em empresas e negócios não é um fenômeno brasileiro, é mundial. Há dois grandes modelos, um é o Estado como investidor majoritário e outro como minoritário. No majoritário o governo controla as empresas, como na Petrobras. Na China esse modelo é muito forte, com grandes holdings estatais. No outro modelo, relativamente menos compreendido, o governo fica mais escondidinho, ele tem pequenas participações aqui e ali, e não se sabe exatamente onde e quando vai influir. Financia o capital acionário via bancos de desenvolvimento, no Brasil o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], fundos de pensão e fundos soberanos. O que vou mostrar é que o Brasil não privatizou necessariamente, mas reforçou esse modelo de Estado minoritário e, mais recentemente, sob Dilma Rousseff, voltou para o modelo majoritário.

Se tivéssemos aprendido um pouco mais com a história em relação à gestão de estatais não teríamos grande parte dos problemas que estamos vivendo. Getúlio Vargas industrializou a economia, criou grandes empresas, mas o boom de estatais e companhias controladas pelo Estado ocorreu no período militar, após 1964. Chegamos ao final da década de 1980 com mais ou menos 250 empresas controladas pelo Estado. No governo Sarney havia tantas empresas que nem sabiam quais eram, foi preciso criar um órgão chamado SEST [Secretaria de Controle das Empresas Estatais] para fazer o inventário delas.

As estatais, criadas para tocar setores, foram usadas para fins de controle da economia e de preços. Não podiam elevar preços, não podiam fazer um downsizing para não causar desemprego. Durante a crise do petróleo, as empresas privadas encolheram e se tornaram mais eficientes, mas as estatais empregaram mais. Isso evidentemente causou muitos problemas, como a grande dívida pública. E talvez mais por força do que por convicção, tivemos de privatizar.

Privatizações não são processos simples, causam muita reação emocional. Recentemente chegamos a ver movimentos pedindo a reestatização de empresas, como a Companhia Vale do Rio Doce. Quem pediu isso não sabe que a Vale, na prática, é uma estatal. Com as privatizações começamos a reestruturar a economia, atraindo mais capital privado. Paradoxalmente a entrada de capital privado mudou a forma de intervenção do Estado, mas ele não saiu das empresas. Qual foi o mecanismo? Um deles é a formação de consórcios, vários proprietários aparecendo conjuntamente em aglomerações societárias.

O primeiro grande modelo foi a Usiminas, que no começo da década de 1990 foi comprada por um consórcio liderado pela japonesa Nippon, um grupo que já estava na estatal desde sua fundação, nos anos 1950. Faziam parte do consórcio o Grupo Bozzano Simonsen e os fundos de pensão dos empregados da Usiminas e da Vale, além da Previ e de atores estatais. O bloco de controle se torna uma figura muito importante, jurídica e negocial. É um grupo de acionistas regidos por um acordo que na verdade é o aspecto central que define as aglomerações no Brasil.

A partir de 2005 outro fenômeno que ocorre é a entrada de grandes empresas na Bolsa. Aparentemente foi um grande sucesso e atraiu outras companhias, como as empresas X do Eike Batista. O que causou isso foi a melhora da economia. Aparentemente era outro paradigma, estávamos atraindo novas empresas. Não foi bem assim, foi um movimento que não mudou fortemente nossa estrutura empresarial.

Laços

Em 2010, com base nesses estudos de privatizações e mudanças societárias, escrevi o livro Capitalismo de Laços. A ideia era pesquisar quem são os proprietários de empresas no Brasil e ver como isso mudou ao longo do tempo. Vejamos o caso da Vale. O bloco de controle é formado por BNDES, Previ, a japonesa Mitsui e o Bradesco. É muito típica essa característica de haver uma empresa internacional, uma doméstica e um fundo ligado ao Estado. Esse é o modelo em que o Estado é minoritário. Daí o título do livro referir-se a laços, que aqui significam o seguinte: se a Previ e o Bradesco são proprietários da Vale, então eles estão interagindo de alguma forma, têm alguma relação, algum laço.

Pesquisei 800 empresas, de 2003 a 2009, e nesse período houve um reforço dessa característica, ou seja, uma disseminação generalizada de atores ligados ao governo. Essa é a principal conclusão. A mudança foi: de grandes empresas controladas pelo Estado, como Embraer e Vale, passamos para um monte de empresas onde o Estado tem participação minoritária disseminada, notadamente com os dois grandes atores, BNDES e fundos de pensão. Essa é a principal conclusão do livro.

Outros exemplos: no consórcio de Belo Monte, na Amazônia, a composição acionária inicial era formada pelo Grupo Bertin com 49,98%. Detalhe: é um grupo frigorífico entrando num projeto de geração de energia na Amazônia. Mais a estatal Chesf [Companhia Hidro Elétrica do São Francisco], e várias construtoras. A Bertin teve dificuldades para cumprir os investimentos necessários e houve uma mudança na composição que no final ficou assim: Eletronorte (estatal), 19,98%, Chesf (estatal), 15%, Eletrobras (estatal), 15%, mais Neoenergia (Previ mais Iberdrola, um grupo espanhol), Petros (fundo de pensão ligado ao Estado), Vale (quase estatal) e Funcet (fundo de pensão). Ninguém é majoritário, não existe um controlador, mas a quantidade de entidades ligadas ao Estado é muito grande, reforçando a conclusão de que houve uma mudança na participação do Estado.

Um exemplo de concessão privada é o Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, que ocorreu no final de 2013. Primeiro, o governo exigiu que a Infraero participasse como majoritária. Que ator privado vai entrar num consórcio tendo um ator estatal no controle? É impensável, o governo teve de recuar e entrar minoritariamente. Agora anunciaram que vai mudar esse modelo, vai baixar substancialmente o aporte da Infraero. Criou-se um consórcio que tem uma empresa de Cingapura, a Odebrecht, grupo que tem também aparecido em várias dessas associações, e uma nova estrela no firmamento, que é o FGTS, que resolveu criar um fundo de investimentos com a participação de empresas e está com cerca de R$ 30 bilhões de patrimônio. Como se não bastasse, posteriormente houve outra mudança, entrando no consórcio o BNDESPar [BNDES Participações S.A.]. Ou seja, é uma concessão privada com 61,4% de capital estatal, sem contar o empréstimo que o BNDES vai dar para financiar os investimentos.

Esse projeto precisa de tanto capital público? Isso pode se discutir. Sinceramente, gostaria de ser dono desse aeroporto, porque é um monopólio natural, sofre relativamente pouca competição, assumo o projeto hoje e amanhã já está pingando receita, a tarifa aeroportuária. Não é uma planta de geração de energia elétrica, que leva dois anos para o projeto, mais três para construção e mais não sei quantos para gerar receita. Mais ainda, licencio toda aquela área para restaurantes, lojas, estacionamento etc. É um projeto que poderia muito facilmente ser financiado pelo setor privado, mas tem esse montante de participação pública.

Estive com um empresário que participa de alguns desses leilões e que perdeu esse. Ele me disse: “Sérgio, você está batendo muito no BNDES, mas a gente não tem capital de longo prazo, precisamos dele”. Dei o exemplo do Galeão perguntando: por que precisa de capital público? Respondeu: “Porque a presidente quer controlar nosso preço, tabelar nossa rentabilidade, então precisamos de uma compensação”. Vejam o absurdo, o governo cria uma incerteza jurídica ou regulatória, quer tabelar o retorno e depois tem de compensar com subsídios e capital público. Ou seja, cria-se um problema e compensam-se os outros pelo problema que se criou. A solução é resolver o problema.

Quem manda na Vale?

Esse modelo minoritário, tão comum no Brasil, tem implicações bem interessantes ou complicadas, dependendo da visão, para a estratégia das empresas. Vejamos o caso da Vale. Falei dos donos da Vale de forma simplificada, mas a realidade é mais complexa. Se alguém me perguntar quem é o dono da Vale, é a Valepar. Quem é dono da Valepar? A Mitsui, com 18,2%, Bradespar, com 21,2%, o Bradesco, a Litel, com 49%. Litel são fundos de pensão. Há ainda a Elétron e o Banco Opportunity, com participação pequenininha. São vários atores com participações minoritárias, ninguém com mais de 50%. Só que dois atores são ligados ao governo, a Litel e o BNDESPar, fundos de pensão. Há um debate se fundos de pensão são atores governamentais. Considero que são atores indiretamente governamentais, porque nossa tradição tem sido o governo indicar ou ter uma voz muito forte na escolha dos presidentes de todos esses fundos de pensão ligados ao Estado. Portanto, se juntarmos as participações da Litel e do BNDESPar, 49% mais 11%, temos 60%. Em tese, a Vale é uma estatal.

O interessante é que ninguém é controlador. Até o investidor estrangeiro, que é relativamente sábio, às vezes não percebe. Um deles foi George Soros, que entrou na Vale antes de 2009 e depois saiu alegando que não havia previsto as intervenções.

Em 2009 o governo pressionou a Vale a investir em siderúrgica, para adicionar valor ao produto. Lula pressionou Roger Agnelli, presidente da Vale, para isso. Houve muito debate e Agnelli foi demitido, apesar de a empresa apresentar, naquele momento, lucros 292% maiores que o primeiro trimestre do ano anterior. Enfim, sem querer fazer juízo de valor, o fato é que a privatização que tivemos não foi uma privatização, mas uma troca do modelo de controle.

Na privatização que ocorreu no setor de telefonia, em 1998, formou-se o consórcio Telepart Investimentos e Participações. O Brasil foi dividido em diversas áreas, foram criadas várias empresas e depois todas se consolidaram. Então a Telepart pegou empresas do norte e houve várias consolidações. Os sócios da Telepart eram uma empresa canadense, a TIW, com 49%, o Banco Opportunity com 27% e os fundos de pensão, com 24%. De novo uma situação onde ninguém é majoritário, mas tem um ator estatal e um ator doméstico relativamente importantes ou influentes. O Opportunity de alguma forma conseguiu convencer os fundos de pensão a criar uma nova empresa, 27% mais 24% dá 51%, e fundaram a Newtel. Como o Opportunity tem participação maior que o fundo de pensão (27% contra 24%), ficou com o controle da Newtel. Conclusão: o Opportunity controla a Newtel, que controla a Telepart, isto é, ele tem o controle da empresa. Os canadenses ficaram muito bravos e saíram. Vários outros casos ocorreram nessa linha. Isso vai criando uma imagem negativa.

Criatividade

Vejamos como isso se conecta ao sistema político. O governo em exercício tem direitos de controle ou de influência sobre várias entidades governamentais. São os fundos de pensão, as diversas estatais, os bancos públicos, o BNDES. Essas entidades podem emprestar capital ou oferecer oportunidades para o setor privado. O BNDES pode abrir crédito para um aeroporto, os fundos de pensão ou o FGTS vão querer entrar no capital acionário. A Petrobras vai abrir oportunidades de investimento de conteúdo local, alguém vai querer ser o supridor. As empresas privadas serão atraídas. E nesse contexto podem ter incentivos para manter certo alinhamento estratégico com o governo, dançar conforme a música, como aconteceu com a Vale. Aliás, trocou-se Agnelli por Murilo Ferreira, que era alinhado ao governo. Outro fenômeno que ocorre são as doações para campanhas políticas, hoje sob investigação. As investigações estão tornando aquelas relações público-privadas mais difíceis, mas ainda temos de ver se as punições vão ocorrer. A criatividade não tem limites, principalmente quando se trata de dinheiro.

Como explicar quem recebe mais ou menos capital público? Estudos estatísticos apontam que quem tem mais presença no sistema político é mais relevante. Por exemplo, a JBS patrocinou 164 deputados, um batalhão para apoiar a empresa no que ela quiser. A Odebrecht, idem. A própria Vale, Bradesco, Ambev, várias empresas. Não estou afirmando que todas estão praticando corrupção. Há uma triangulação, um jogo de interesses.

A participação minoritária do governo em um montão de empresas via fundos de pensão também coloca gente do sistema político nos conselhos de administração. Na Previ, um levantamento do jornal “Valor Econômico” revela que um terço dos indicados tem conexão com o PT e aliados. Muito dessa estrutura se montou durante as privatizações, mas depois ela se potencializou.

Duas características do capitalismo brasileiro são muito marcantes. A primeira é todo mundo ligado com todo mundo, os consórcios, todos entrelaçados. E a outra é a grande participação do governo em tudo o que é consórcio. É ruim? Não. Há aspectos positivos. Por exemplo, a junção de capitais permite redução de riscos. Mais empresários podem participar. Um empresário individualmente não pode tocar Belo Monte, mas quatro ou cinco podem. Ótimo. Mas negativamente vemos conflitos societários, como no caso da telefonia e na Usiminas atualmente. E há menos competição, porque o comportamento que se disseminou é de todo mundo participando conjuntamente no mesmo consórcio. E aí surge aquela prática: neste você lidera, eu naquele. Como todo mundo está entrelaçado, todos são sócios de todos, ninguém vai querer competir. Se não houver uma política antitruste forte examinando essas coisas, realmente, vai dar problema.

O Cade começa a perceber essas relações, mas é difícil. O marco jurídico do antitruste é muito claro em relação a uma firma individual. Se a empresa começa a ter mais de 20%, acende-se o sinal amarelo. Mas quando se fala em participação minoritária em outra empresa, fica mais difícil juridicamente.

Mas há aspectos positivos. O capital estatal ou dos fundos de pensão é mais de longo prazo, é extremamente interessante. É um acionista um pouco mais paciente, é ótimo para um projeto de investimento. Mas por que dar capital para esse e não para aquele? Por que esse empresário está recebendo mais FGTS e aquele não? Há uma falta de critério, há questionamentos. É o toma lá dá cá, o governo dá capital e aí recebe apoio para o partido e assim por diante.

Leilão direcionado

Quando Graça Foster assumiu a Petrobras, o preço da gasolina estava represado e ela já foi declarando de uma forma muito enfática: vamos corrigir o preço. Sinalizou, pelo menos para mim, que ela teria certa autonomia para fazer uma declaração dessas. Mas foi desautorizada, não pôde mais falar a respeito, teve que dizer depois que o controlador estava definindo que não ia haver reajuste de preços. Isso foi lá por abril de 2012, e o governo também fez intervenções no mercado de juros, principalmente na Caixa Econômica Federal. Os bancos públicos, que no final do governo Lula tinham mais ou menos um terço do crédito, foram para 50% e a percepção do governo foi de que essa intervenção funcionou, porque a Caixa aumentou o lucro e sua participação de mercado. Isso gerou ainda mais gás para fazer outras coisas.

Em transportes foi mudado todo o marco, por exemplo, de ferrovias. Na verdade houve outro movimento importante, o das concessões. É assim: vamos tabelar o retorno do investimento, não pode ganhar mais que X por cento, tem de haver um equilíbrio entre o privado e o público e vamos fazer o leilão. O mecanismo do leilão é justamente para achar o preço verdadeiro. Mas o governo quis fazer um leilão direcionado, o que é um certo contrassenso, porque começou a tabelar a rentabilidade do setor privado e pouca gente acabou se interessando pelas concessões. No setor elétrico também houve uma proposta de antecipação de concessões, jogaram o preço da energia elétrica para baixo, algumas empresas não quiseram participar e os contratos foram para o colo das estatais majoritárias.

Nenhuma dessas iniciativas funcionou. O controle do preço da gasolina causou um grande problema na Petrobras. A gente fala da corrupção na Petrobras, mas só o controle de preços causou algo em torno de R$ 80 bilhões de perdas, o que é muito superior a qualquer outra consideração sobre Pasadena. Os juros subiram, agora os bancos públicos estão com uma carteira de clientes mais arriscados, enquanto o banco privado se retraiu e aumentou a qualidade de sua carteira. O setor de transportes parou, agora estão reavaliando o processo. No setor elétrico o preço da energia teve de subir, também por que houve a seca e o uso de termoelétricas. Mas a percepção é de que muitas empresas não entraram nas renovações de concessão. E as empresas públicas que entraram tiveram de arcar com vários prejuízos em função dessa renegociação e agora estão tendo que reajustar preços.

Nossa privatização, portanto, não foi privatização, mas um reforço do modelo de Leviatã minoritário, o governo participando em várias empresas. Sob a presidência de Dilma houve grandes intervenções diretas e de participações nas empresas. Já havia sinais em relação a isso. Deu no que deu, a economia não está crescendo, os investimentos caindo, grande incerteza por parte do empresariado, inflação em descontrole, déficit fiscal, tudo desarrumado. Temos de resolver o problema por necessidade, porque o risco de downgrade está batendo.

Pessoalmente acredito que a principal coisa que assusta é o Brasil perder seu grau de investimento. O pêndulo vai ter de retornar, mais por necessidade do que convicção. Vamos ter de reduzir o BNDES, pelo menos nas transferências diretas do Tesouro. Todas essas participações grandes do governo têm de ser reduzidas. Nelson Barbosa já sinalizou que as concessões privadas terão menos recursos do BNDES e de atores governamentais.

Mas precisamos caminhar muito além desse ajuste macro, há outras coisas a fazer. Eu mesmo estou envolvido em vários grupos de discussão, inclusive um sobre reforma das estatais e governança. Por exemplo, precisamos melhorar o marco legal para casos em que o Estado é acionista relevante. O BNDES precisa de um mandato claro. Se está apoiando grandes grupos, diga por que está dando recursos para este e não para aquele. O porto em Cuba chega a ser folclórico, o banco diz que é um projeto interessante, gera divisas. Então mostre de quanto foi o subsídio, quanto gerou de emprego, de equipamento.

Critérios para a composição da gestão de conselhos de administração também. No estatuto da Petrobras está muito vago quem deve ser indicado pelo governo. E eu não perderia de vista os casos em que o Estado é minoritário, também, temos de disciplinar casos de que os fundos de pensão participam, quem pode compor os conselhos e assim por diante.

Outro fato importante: durante as privatizações foram criadas agências reguladoras. Muitos dizem que podiam ser melhoradas, que ficaram aquém do desejável, ocorreram probleminhas aqui e ali. Mas deveríamos ter seguido uma trajetória de aprimoramento. Logo que o Lula entrou, em 2003, houve um reajuste de preços na telefonia. Ele reclamou: “Como é que essa agência aumenta o preço sem eu saber?”. Mas o objetivo de uma agência reguladora é exatamente para ele não saber, perdeu-se a noção da institucionalidade. Agência reguladora existe para definir parâmetros técnicos justamente para ter menos influência do governo. O que se fez foi um desmonte das agências, um enfraquecimento. Se houvesse uma agência reguladora forte no setor de petróleo, no Brasil, dificilmente teria ocorrido essa interferência no preço da gasolina, prejudicando não só a própria empresa como setores adjacentes, como o do etanol.

O fato de uma empresa ser controlada pelo Estado não é necessariamente um problema se houver esses mandatos nas agências. Mas na pauta de agência reguladora ninguém quer mexer. Porque, infelizmente, elas viraram cabide de emprego, ninguém quer entrar nesse vespeiro.

Outra coisa muito importante: criar condições competitivas nas áreas em que o Estado está participando. Se a Petrobras é monopolista ou está participando de todos os campos do pré-sal, significa que controla praticamente tudo. Isso cria uma grande oportunidade para o setor político botar a mão. A melhor prática de empresas geridas pelo Estado é haver outras empresas competindo também. Algumas pessoas às vezes me perguntam se não é bom ter uma empresa estatal controlando tudo já que o petróleo é nosso. Não necessariamente. Temos o mecanismo de leilão que é belíssimo. Para alguém pegar concessão no pré-sal, não só tem de pagar muito para a assinatura como vai partilhar o lucro. Se houver muitos competidores, a partilha do lucro tende a aumentar. O petróleo vai ser mais nosso se aumentar a competição via mecanismo de leilão. Infelizmente, esse governo não tem isso na cabeça, mas já existem algumas propostas em curso. Inclusive Eduardo Braga, ministro das Minas e Energia, já disse que uma coisa a ser revista é a exigência da Petrobras de 30%.

Custo das campanhas

Quanto às doações privadas de campanha, não sou totalmente contrário a elas, pela seguinte razão: se você proíbe a doação privada, não mexe necessariamente no custo de campanha. Ou seja, proibir a doação privada não vai mudar o custo de campanha. O que vai acontecer será um incentivo ao caixa 2. Podem dizer que há instrumentos para coibir. Existem, mas a criatividade humana é imbatível, principalmente quando há dinheiro envolvido. Então o debate principal a ser feito é o de reduzir o custo de campanha.

O artigo 24 do Código Eleitoral diz que quem é concessionário ou permissionário de serviço público não pode doar. Aí há várias distorções. Por exemplo, se um grupo qualquer monta uma sociedade com o propósito específico de explorar uma concessão, essa concessão não pode doar, mas o grupo pode. É um contrassenso, a empresa não pode doar, mas o controlador pode.

Quanto à transparência de dados, não abrem os dados para analistas. No Brasil já temos um grupo de escolas e institutos de pesquisa prontos para analisar dados, o problema não é o analista, é a falta de dados mais dados para análise. Valeu a pena o porto de Cuba? Pode ser que sim, mas mostrem os dados para se calcular o que foi subsídio, qual foi a geração de emprego.

Também é fundamental, sempre que envolver subsídios e participações acionárias do Estado, uma análise mais seletiva, com ênfase em impacto e em restrição de crédito. E estímulo a instrumentos inovadores. Uma coisa que o governo poderia fazer já de cara é criar um marco regulatório muito claro para essas concessões e a segurança jurídica de que o investidor vai receber os pagamentos. Participei de uma discussão com um empresário juntamente com um grande grupo numa concessão. O BNDES exigiu dele, que é menor do que o grande grupo, uma fiança bancária de 20 anos. Alguém aqui já viu uma fiança bancária de 20 anos? Praticamente impossível. Outra coisa interessante é o pay for impact of contract. Nos Estados Unidos estão surgindo alguns contratos em que você entra numa concessão e, se ajuda a reduzir o custo de energia, tem um compartilhamento dessa economia com o investidor. Na Inglaterra há um projeto de presídios, em que o investidor entra e se articula com empresas que vão ajudar na reintegração do preso na sociedade. Se a taxa de reincidência do preso for reduzida, ou seja, ele sai da prisão e não comete crime, você vai gerar uma economia para o Estado, e isso é compartilhado com os investidores.

Para finalizar, acho que a primeira coisa a fazer é tirar o bode da sala, ou seja, acabar com as intervenções excessivas do governo. Isso já ajuda muito. E criar mecanismos garantidores para evitar o tabelamento de retorno, esse afã de controlar. E vamos achar formas inovadoras de buscar investimento privado. Já estão saindo alguns tipos de project finance nessa linha de usar o fluxo de caixa dos recebíveis para ter sinais de garantia.

Debate

PAULO LUDMER – Há uma coisa importante a ser mais detalhada, que é a forma como se dão os juros subsidiados. Um projeto eólico ou de energia solar é inviável, pois daria um retorno de 7% ou 8%. Com os juros subsidiados e carência, o investidor ganha tanto no mercado financeiro que esses projetos começam a dar retorno de 20%, 30%, até 50%.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Minha pergunta é em relação ao conceito de Estado nação, que no meu entender hoje não consegue enfrentar a realidade da mundialização. Imagino que o centro de poder está migrando do Estado nação para as multinacionais. Que tipo de impacto isso pode trazer para alguns Estados ainda em fase de adaptação a esse capitalismo internacional?

LUIZ GORNSTEIN – Nos governos militares os fundos de pensão eram induzidos a comprar títulos públicos. No governo do PSDB havia mão forte na privatização, escolhiam o vencedor. No do PT tem de haver consórcios e parece que os empregados estão felizes. Por que os fundos de pensão não são independentes e não decidem o que quiserem? Por que a mão do governo, se eles são dos empregados?

SÉRGIO – Em relação aos juros subsidiados, existem justificativas teóricas para subsídios nos casos de novas tecnologias, investimentos muito mais arriscados e de longo prazo, em que o empresário individual teria mais dificuldade. Portanto, precisa de uma motivação adicional. A energia alternativa é um caso típico, projetos que deveríamos enfatizar e oferecer subsídios, sem dúvida.
Estado nação é um tema bem interessante. Danny Roderick, um grande defensor de políticas industriais, diz que é muito difícil conciliar os interesses da globalização com os do Estado nação, porque há um processo democrático interno em que determinados grupos que perdem com a globalização podem se opor a isso. O cerne da questão é até que ponto temos de proteger determinadas indústrias em detrimento de outras. Se protegemos o setor de papel e celulose, causamos problemas para as gráficas. Se protegemos as gráficas, complicamos a vida de quem compra serviços gráficos, que vai pagar mais caro. Então há ganhos e perdas. É recomendável fazer isso em debate aberto, verificando se há interesse público etc. E depois avaliar o que aconteceu com essa empresa, se não evoluiu, aborta-se o processo. As iniciativas de proteção em países desenvolvidos têm adotado essa perspectiva: você pode até selecionar os vencedores, mas os perdedores têm de sair.
Os fundos de pensão têm uma montanha de recursos e onde há dinheiro o político quer intervir, quer botar a mão. Tanto o governo quanto sua coalizão política quer ter meios para influenciar a economia. Daí a relutância em se criar um maior isolamento. Os empregados até agora estavam felizes, porque os fundos estavam indo bem. Investiam em empresas, o mercado acionário estava subindo, nem precisavam fazer mais aportes. Não é o caso agora, quando vários começam a ter problemas atuariais. A pressão dos empregados pode até ser salutar.

NEY PRADO – Duas observações. Uma é que precisamos distinguir capitalismo de economia de mercado. Capitalismo é uma doutrina, doutrina até recente, ao passo que economia de mercado é um produto da história. Outra observação é sobre a definição do Estado. O Estado é uma abstração e o que julgamos serem seus propósitos são na verdade os propósitos dos indivíduos que o dirigem. O Estado é um conceito jurídico. Se substituíssemos Estado por governo, estaríamos no mundo da realidade, não da abstração ou da juridicidade.

JOSEF BARAT – O capitalismo de laços, em que se fortalecem as relações do Estado com grandes grupos empresariais, não tem um pezinho lá atrás no fascismo?

MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Uma observação: fizemos no PNBE, há alguns anos, um levantamento informal sobre campanhas eleitorais e chegamos à conclusão de que entre 60% e 70% dos gastos não são declarados, como o caixa 2 e outras formas de contribuição. Outro ponto: o ministro Joaquim Levy tem ressaltado muito a questão do patrimonialismo, um dos problemas do Brasil. Mas temos também o corporativismo e o paternalismo e todos justificam a maior presença do Estado. No patrimonialismo, alguém quer ter sua parte, no paternalismo querem receber do Estado e no corporativismo quem está no Estado está sempre se beneficiando, tanto que lá os salários são maiores que no setor privado.

SÉRGIO – Concordo que o Estado é uma abstração, mas poderíamos, no Brasil, nos mover um pouco mais na direção de tornar esses instrumentos mais de Estado e menos de governo. Com um mandato claro. Se a Petrobras quer se desviar de um objetivo econômico, diga exatamente que objetivo é esse e como vamos acompanhar isso. Por exemplo, controle de preço de gasolina é uma coisa importante para a sociedade? Podemos discutir. O que não podemos ter é o governo controlando o preço da gasolina para se beneficiar politicamente.
Que tipo de empresa o BNDES tem de apoiar? O Chile tem um banco de desenvolvimento que não é mais banco, porque na verdade só repassa recursos para outros bancos emprestarem. Ele não empresta para a grande empresa, isso está claro no mandato. O apoio é para novos empreendedores ou empresas menores. Eles têm lá o fundo mineiro, que vem da extração de cobre, que apoia empresas inovadoras. É um mandato claro, que não temos aqui. O que estamos propondo é que se obriguem as estatais a deixar bem claro no seu estatuto qual é o seu objetivo social, seu mandato.
Quanto ao fascismo, de fato várias economias depois da crise de 1929 e depois da Segunda Guerra caminharam nessa linha. Herdamos várias dessas coisas. Nos livros de história do ensino médio a visão da primeira república no Brasil é de que era um bando de cafeicultores, política café com leite etc. Mas havia uma indústria prosperando, existia negociação de debêntures, a Bolsa movimentava bem, houve o episódio do encilhamento.
A governança das empresas, por exemplo, tinha ações só com direito a voto. Mas quando entrou Getúlio Vargas, criou-se um sistema em que as empresas privadas estariam sob a tutela do Estado. Ele retirou vários parâmetros de governança. Por exemplo, criou ações sem direito a voto, estimulou a criação de grandes grupos etc. Sedimentou na verdade o modelo que temos hoje. Não sei se é necessariamente fascismo, mas é consistente com o modelo de um Estado oferecendo favores, tutelando. Economistas de cunho heterodoxo até valorizam o apoio aos grandes grupos, desde que haja suporte a emprego etc.
Sobre o caixa 2, concordo totalmente. Há estudos que mostram, por exemplo, que a empresa se valoriza mais quando doa para políticos vencedores, ganha mais contratos de concessão, do BNDES. As doações são como um iceberg, as oficiais são apenas a ponta.

EDUARDO SILVA – Tivemos um sistema ferroviário que durante anos foi muito eficiente. De repente essa atividade passou para a iniciativa privada com uma série de confusões. Hoje no transporte público em São Paulo quem manda mesmo é um grupo muito reduzido de chefões. O poder da área concedida fica muito concentrado. Seria importante não só uma fiscalização, mas a comprovação do desempenho dessa atividade. Nos portos, por exemplo, já fomos muito melhores do que somos atualmente.

LENINA POMERANZ – Quero colocar só um probleminha, que é o papel que deve desempenhar o Estado na economia emergente. Primeira questão: somos ou não emergentes? Se somos, o que cabe ao Estado e o que não cabe? Você falou em eficiência, capacidade de lucro. É isso que se espera de uma empresa pública numa economia emergente? Outra questão: as empresas estatais no Brasil surgiram, praticamente todas elas, exatamente com a função de promover o desenvolvimento. Hoje o mundo mudou, estamos em outra realidade. Será que o setor privado não pode tomar conta de um monte de coisas? E por que não faz isso?
Suas propostas são muito interessantes, merecem uma discussão. Nesta altura do campeonato, o que o Estado tem de fazer? Todos os erros atribuídos a Dilma tiveram origem numa perspectiva de desenvolvimento que ela tinha na cabeça, que não funcionou. Aqui vai uma crítica construtiva a sua exposição, o aspecto político só apareceu para criticar o governo de Dilma e do PT. Assino embaixo nas críticas que você fez. Mas e o aspecto político relacionado com a perspectiva de desenvolvimento? O que quero dizer é que precisamos discutir também a natureza política, o que interessa e o que não interessa, qual é a perspectiva de crescimento que se tem e qual a estratégia. Essas empresas estão perdidas porque não existe uma definição de estratégia de desenvolvimento do país.

ZEVI GHIVELDER – Você disse que o grande surto de estatização se deu durante o regime militar. Sabemos que a estatização é uma bandeira da esquerda. Como se explica essa contradição de militares anticomunistas levantarem essa bandeira da esquerda?

SÉRGIO – Se pegarmos uma estatal e a jogarmos no setor privado sem regulação, sem marco, sem fiscalização, vai dar problema. Isso ocorreu, por exemplo, na Rússia, onde se transferiu o controle estatal para um bando de oligarcas. Algumas pessoas têm me perguntado se a solução para a Petrobras não seria a privatização. Podemos até discutir se vale a pena privatizá-la, mas antes temos de resolver todos aqueles problemas que citei. Se não acertarmos o ambiente regulatório, o regime de combate à corrupção, o regime de competição e vários outros, a privatização não vai adiantar. Precisamos de instituições fortes para perseguir qualquer movimento, seja ele de mais estatismo seja de mais privatização.

LENINA – E petróleo é bem estratégico. Veja os Estados Unidos.

SÉRGIO – É estratégico, mas o que precede tudo isso é essa discussão da institucionalidade que perdemos. O cerne da questão de privatizar e passar para a iniciativa privada é o receio da população, justificado, de que a empresa privada vai se corromper ou não vai atender aos objetivos sociais. Por exemplo, nos Estados Unidos foram privatizadas as prisões. O que aconteceu? Os donos das prisões começaram a corromper juízes para mandar gente para a cadeia. Esse problema aqui a gente não tem. Para passar alguma coisa para a iniciativa privada devemos ter parâmetros de regulação e de medição de impacto. Esse aliás provavelmente será o tema de meu próximo livro: como mecanismos de pagamento ou de mensuração por impacto podem realinhar os atores privados participando de projetos de interesse público. Como combinar a eficiência do setor privado com a busca de maior impacto e o governo se especializar em áreas onde ele pode fazer diferença. É uma tese em gestação.
Quanto à crítica ao governo do PT, coloco muito peso no que aconteceu mais recentemente. Mas no Capitalismo de Laços dou algumas alfinetadas em Fernando Henrique Cardoso. Por exemplo, esse modelo de Estado minoritário se consolidou durante o período FHC, isso é fato, como é fato que durante o governo do PT essa coisa se multiplicou. Acredito que a discussão deve ser apolítica, mas não podemos fugir dos fatos.
A pergunta sobre os militares é interessante. No Chile os militares levaram economistas da Universidade de Chicago, totalmente liberais, e privatizaram empresas. Aqui fizemos o contrário. É a ideologia.
Para concluir, uma história engraçada. Élio Gaspari conta em seu livro que perguntou a Ernesto Geisel: “Uma empresa que se chama McDonald’s vai entrar no Brasil. O que o senhor acha?”. Geisel: “O que faz essa empresa?”. “Faz sanduíche.” “Você está louco? Isso a gente consegue fazer.” Essa era a visão: se consigo fazer, vou fazer.